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Antônio Cícero 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Poesia:

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Ruth, by Francesco Hayez

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

Antônio Cícero

Folha de São Paulo

15.11.2008

João Cabral e o verso livre

 

 


Por trás de uma mudança superficial, encontra-se a profunda coerência da sua concepção de poesia
 

EM 1953, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou em entrevista a seu colega Vinicius de Moraes: "Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria, para mim, como banir a poesia do mundo moderno".

Trinta e cinco anos depois, em 1988, ele afirmava a Mário César Carvalho que "uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil".

Como se explica tal inconsistência? Teria João Cabral mudado radicalmente de idéia sobre esse assunto? Certamente houve uma mudança. Creio, porém, que, por trás de uma mudança apenas superficial, encontra-se a profunda coerência da sua concepção de poesia.

Cabral costumava dividir os poetas em dois grupos. O primeiro é o daqueles para quem tudo o que não é espontâneo -logo, tudo o que dá trabalho, tudo o que é difícil- é falso. O segundo, no qual ele mesmo se colocava, é o daqueles para quem tudo o que é espontâneo -logo, tudo o que dispensa o trabalho, tudo o que é fácil- é falso. Para ele, o fácil e espontâneo jamais passava de eco ou repetição inconsciente de vozes alheias. Como se verá, tanto ao defender o verso livre em 1953 quanto ao atacá-lo, em 1988, ele estava tomando posição contra o fácil, espontâneo e repetitivo, e a favor do difícil, trabalhoso e único em poesia.

"O poeta", disse Cabral uma vez em entrevista a Arnaldo Jabor, "é aquele que nunca aprende a escrever". Poderíamos também dizer que o poeta é aquele que está sempre aprendendo a escrever. Nas palavras do famoso "O Lutador", de Drummond: "Lutar com palavras / É a luta mais vã. / Entanto lutamos / Mal rompe a manhã". O poeta luta para dar forma a um poema, isto é, a um objeto estético memorável -ou seja, a um objeto que mereça existir em virtude de seus próprios méritos, mesmo que não sirva para nada ulterior- feito de palavras.

A predileção pelo fácil e espontâneo pode manifestar-se de dois modos. Em primeiro lugar, ela pode manifestar-se como o desprezo por todo trabalho e toda técnica. A "poesia" fica assim reduzida a uma expressão pessoal em que a língua é usada, não para dar forma a um objeto de palavras, mas para dizer alguma coisa, como na vida cotidiana. Não ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.

Em segundo lugar, a predileção pelo fácil, espontâneo e repetitivo também se manifesta como o artesanato de escrever versos em formas tradicionais. Através de estudo e exercício, o versejador adquire destreza em, entre outras coisas, escrever redondilhas ou decassílabos, rimar versos, compor em formas fixas etc. Com a prática, ele aprende, por exemplo, a improvisar sonetos adequados às mais diversas ocasiões. Para o versejador que atingiu mestria em determinadas técnicas, nada parece mais fácil ou espontâneo do que fazer um "poema", através da repetição do que é convencionalmente "poético". Tampouco nesse caso ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.

Cabral achou um modo próprio de evitar tanto a facilidade dos versos livres e sem rimas quanto a facilidade do uso convencional das técnicas tradicionais. Entre outras coisas, ele usava métrica, mas procurava evitar os ritmos associados a ela; e usava rimas, mas não perfeitas, e sim toantes. Naturalmente, essas soluções foram úteis para ele, e não são universalizáveis. Elas indicam, entretanto, que, na prática, ele não estava tão preocupado em rejeitar os procedimentos tradicionais quanto em usá-los na medida em que aumentassem, e não, como o versejador, na medida em que aliviassem, a dificuldade do seu trabalho.

Frente às tendências contemporâneas de dissolver e diluir a poesia e a arte, talvez os poetas -e os artistas em geral- devam refletir sobre essas idéias de Cabral. Longe de rejeitar toda regra ou de apelar a regras que facilitem a elaboração ou a recepção da obra, será talvez mais produtivo que o artista imponha a si mesmo determinadas condições -pouco importa se por ele inventadas ou se tomadas de empréstimo à tradição- que, dificultando o seu trabalho, tomem-lhe mais tempo e exijam dele um maior esforço de pensamento e elaboração.

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

     
 
Wilson Martins

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)
 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Eloí Elisabeet Bocheco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gizelda Morais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rita Brennand

 

 

 

 

 

 

 

Tércia Montenegro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Deise Assumpção

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antônio Cícero


 

 

Guardar

 

 

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma

Em cofre perde-se a coisa à vista.

 

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por

admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

 

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por

ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,

isto é, estar por ela ou ser por ela.

 

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro

do que pássaros sem vôos.

 

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,

por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que quer guardar.

 

 

 
 

T r a n s p a r ê n c i a s


venho da praia de um verão em que as ondas rolam redondas e lisas

sobre o mar sem formar espumas

e os olhos gulosos engolem glaucas e mornas transparências

goles de azul e verde

fazendo inveja à língua aos lábios e à goela.

 

por que me induzes por areias sem águas

ou zonas infestadas de feras

ou paludes sombrios

ou friagens cíticas

ou mares coagulados

 

por que me queres nessa terra monstruosa e trágica

onde erram poetas e mitógrafos

e nada é certo nada claro.

 

 

 

Onda

 

Conheci-o no Arpoador
garoto versátil, gostoso,
ladrão, desencaminhador
de sonhos, ninfas e rapsodos.
Contou-me feitos e mentiras
indeslindáveis por demais:
eu todo ouvidos, tatos, vistas,
e pedras, sóis, desejos, mares.
E nos chamamos de bacanas
e prometemo-nos a vida:
Comprei-lhe um picolé de manga
e deu-me ele um beijo de língua
e mergulhei ali à flor
da onda, bêbado de amor.

 

 

 
 


O GRITO 

 

 

Estou acorrentado a este penhasco 
logo eu que roubei o fogo dos céus. 
Há muito tempo sei que este penhasco 
não existe, como tampouco há um deus 
a me punir, mas sigo acorrentado. 
Aguardam-me amplos caminhos no mar 
e urbes formigantes a sonhar 
cruzamentos febris e inopinados. 
Você diz “claro” e recomenda um amigo 
que parcela pacotes de excursões. 
Abutres devoram-me as decisões 
e uma ponta do fígado mas digo 
E daí? Dia desses com um só grito 
eu estraçalho todos os grilhões. 
 

 

 
 

 

MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA 
 

Está em Gragoatá. Disco voador 
ele não é, pois não pousou na pedra 
mas se ergue sobre ela; nem alça vôo: 
à orla de cidades e florestas 
suspende-se no ar feito pergunta 
e o que tem dentro mergulha e se banha 
no mundo em volta e o mundo em volta o inunda: 
é o museu fora de si, de atalaia 
à curva do abismo, à altura das musas, 
sobre o mar, sobre a pedra sobre o mar, 
e sobre o espelho d’água em que se apura 
sobre essa pedra um mar a flutuar, 
um céu na terra, quase nada, um aire, 
a flor de concreto do Niemeyer. 

 

 

 
 

 

MEDUSA 

 

Cortei a cabeça da Medusa 

por inveja. Quis eu mesmo o olhar 

sem olhos que vê e se recusa 

a ser visto e desse modo faz 

das demais pessoas pedras: pedras 

sim, preciosas, da mais pura água, 

onde o olhar mergulha até a medula, 

diáfanas, translúcidas, cegas. 

Refleti muito, antes. Na verdade 

estes meus olhos provêm de carne 

de mulher, não do nada imortal 

da divindade. Como encarar 

com eles a Górgona? Mas mal 

pensando assim, lembrei ser mortal 

ela também: e seu pai é um deus 

do mar mas eu sou filho de Zeus. 

Mesmo assim não quis enfrentá-la olhos 

nos olhos. Peguei emprestado o espelho 

da minha irmã e adentrei o cômodo 

da Medusa de soslaio, vendo 

tudo por reflexos: o seu corpo 

em terceiro plano, atrás de heróis 

de pedra e dos meus olhos esconsos 

em primeiríssimo. Eis o corte 

da lâmina especular: do lado 

de cá eu, sem corpo, a olhar; do outro 

lado eu, olho olhado, olho enviesado 

e rosto e corpo entre muitos corpos, 

um dos quais o dela. A mesma lâmina 

decapitou-a também: do lado 

de cá guardo seu olhar e faina; 

e lá jaz seu vulto desalmado. 

Mas nada é tão simples. Do pescoço 

cortado nasceu um cavalo de asas 

(é que o deus do mar a engravidara) 

e mergulhou no horizonte em fogo 

crepuscular. Dizem que, no monte 

Hélicon, seu coice abriu uma fonte. 

A ser não sendo, de madrugada 

levanto com sede dessa água.

 

 
 

AS LIVRARIAS 

        Para 
        Alberto Mathias

Ia ao centro da cidade 
e acabava em livrarias, 
livros, páginas, Bagdad, 

Londres, Rio, Alexandria: 
Que cidade foi aquela 
em que me sonhei perder 
e antes disso acontecer 
aconteceu-me perdê-la? 

 

 
ALGUNS VERSOS
 
As letras brancas de alguns versos me espreitam 
em pé no fundo azul de uma tela atrás 
da qual luz natural adentra a janela 
por onde ao levantar quase nada o olhar 
vejo o sol aberto amarelar as folhas 
da acácia em alvoroço: Marcelo está 
para chegar. E de repente, de fora 
do presente, pareço apenas lembrar 
disso tudo como de algo que não há de 
retornar jamais e em lágrimas exulto 
de sentir falta justamente da tarde 
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens 
de cujo fundo veio para ser mundo 
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde. 

 

   
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

6.12.2008