Antônio Cícero
15.11.2008
João Cabral e o verso livre
Por trás de uma
mudança superficial, encontra-se a profunda
coerência da sua concepção de poesia
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EM 1953, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou em entrevista a
seu colega Vinicius de Moraes: "Acho o verso livre uma aquisição
fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas
preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria,
para mim, como banir a poesia do mundo moderno".
Trinta e cinco anos depois, em 1988, ele afirmava a Mário César
Carvalho que "uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No
tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que
trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre,
todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um
poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que
trabalhar e tirava o inútil".
Como se explica tal inconsistência? Teria João Cabral mudado
radicalmente de idéia sobre esse assunto? Certamente houve uma
mudança. Creio, porém, que, por trás de uma mudança apenas
superficial, encontra-se a profunda coerência da sua concepção de
poesia.
Cabral costumava dividir os poetas em dois grupos. O primeiro é o
daqueles para quem tudo o que não é espontâneo -logo, tudo o que dá
trabalho, tudo o que é difícil- é falso. O segundo, no qual ele
mesmo se colocava, é o daqueles para quem tudo o que é espontâneo
-logo, tudo o que dispensa o trabalho, tudo o que é fácil- é falso.
Para ele, o fácil e espontâneo jamais passava de eco ou repetição
inconsciente de vozes alheias. Como se verá, tanto ao defender o
verso livre em 1953 quanto ao atacá-lo, em 1988, ele estava tomando
posição contra o fácil, espontâneo e repetitivo, e a favor do
difícil, trabalhoso e único em poesia.
"O poeta", disse Cabral uma vez em entrevista a Arnaldo Jabor, "é
aquele que nunca aprende a escrever". Poderíamos também dizer que o
poeta é aquele que está sempre aprendendo a escrever. Nas palavras
do famoso "O Lutador", de Drummond: "Lutar com palavras / É a luta
mais vã. / Entanto lutamos / Mal rompe a manhã". O poeta luta para
dar forma a um poema, isto é, a um objeto estético memorável -ou
seja, a um objeto que mereça existir em virtude de seus próprios
méritos, mesmo que não sirva para nada ulterior- feito de palavras.
A predileção pelo fácil e espontâneo pode manifestar-se de dois
modos. Em primeiro lugar, ela pode manifestar-se como o desprezo por
todo trabalho e toda técnica. A "poesia" fica assim reduzida a uma
expressão pessoal em que a língua é usada, não para dar forma a um
objeto de palavras, mas para dizer alguma coisa, como na vida
cotidiana. Não ocorre a luta com as palavras ou a produção de um
objeto estético memorável.
Em segundo lugar, a predileção pelo fácil, espontâneo e repetitivo
também se manifesta como o artesanato de escrever versos em formas
tradicionais. Através de estudo e exercício, o versejador adquire
destreza em, entre outras coisas, escrever redondilhas ou
decassílabos, rimar versos, compor em formas fixas etc. Com a
prática, ele aprende, por exemplo, a improvisar sonetos adequados às
mais diversas ocasiões. Para o versejador que atingiu mestria em
determinadas técnicas, nada parece mais fácil ou espontâneo do que
fazer um "poema", através da repetição do que é convencionalmente
"poético". Tampouco nesse caso ocorre a luta com as palavras ou a
produção de um objeto estético memorável.
Cabral achou um modo próprio de evitar tanto a facilidade dos versos
livres e sem rimas quanto a facilidade do uso convencional das
técnicas tradicionais. Entre outras coisas, ele usava métrica, mas
procurava evitar os ritmos associados a ela; e usava rimas, mas não
perfeitas, e sim toantes. Naturalmente, essas soluções foram úteis
para ele, e não são universalizáveis. Elas indicam, entretanto, que,
na prática, ele não estava tão preocupado em rejeitar os
procedimentos tradicionais quanto em usá-los na medida em que
aumentassem, e não, como o versejador, na medida em que aliviassem,
a dificuldade do seu trabalho.
Frente às tendências contemporâneas de dissolver e diluir a poesia e
a arte, talvez os poetas -e os artistas em geral- devam refletir
sobre essas idéias de Cabral. Longe de rejeitar toda regra ou de
apelar a regras que facilitem a elaboração ou a recepção da obra,
será talvez mais produtivo que o artista imponha a si mesmo
determinadas condições -pouco importa se por ele inventadas ou se
tomadas de empréstimo à tradição- que, dificultando o seu trabalho,
tomem-lhe mais tempo e exijam dele um maior esforço de pensamento e
elaboração.
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