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Carla Bianca


 

Alheio


Sofro,
por não ter
o que é teu.
O corpo,
boca,
pernas,
e dorso.
Contemplo o alheio,
sou do outro
e assim
faço-me companhia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

Carla Bianca


 

Ventos vulcânicos


Contemplo imagem do espelho, reflexo tão belo como há muito não vislumbrava. Vulto luminoso emoldurado por negros cabelos e morenas faces. Dentes mais brancos, boca rosada e delatora, dançando teu nome sem escorrer um único som.

Imagem confiante que resplandece, bafejada por ventos vulcânicos, advindos da grande erupção da tua presença.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

Carla Bianca


 

Dia


O relógio parou, imoral, agredindo e violentando a necessidade de um novo dia.


Peço outro sol, qualquer luz que traga delírio, gente nova, para habitar um mundo enredado por teias de aranha.


Um raio dourado, queimando a pele, ardendo nos couros, deixando um vermelho seguido por manchas.


A claridade chegando, chamando para a vida, jogando na cara a renovação.


Traiçoeiro dia, irônico que brinca com a ansiedade lançando promessas com ar descrente, falando com jeito de desmentido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Carla Bianca


 

Lembrança


Guardo a saudade no fundo da goela. Lá coloco sentimentos como se fossem drágeas a serem engolidas. Procuro um copo d’água para desentalar a saudade.


Molhada a goela, sinto a saudade transformar-se em lembrança. O peito descansa de esperar por alguém que não tem paradeiro.


As lembranças são preciosidades que não fazem sofrer. Lindas molduras, de momentos vividos.


Agora viajo no tempo repassando as venturas que tive com o amor. Os rostos parecem sorrir, transcendendo as dúvidas que antes marcavam suas testas e expressões. Eles são lembranças, deixaram de ser saudades.


Observo mais atentamente e avisto o teu rosto na galeria das emoções. Ele tem agora um sorriso plácido, tranqüilo, de pessoa em paz, com a vida, este pedaço de energia que não possui tempo certo e viaja na memória dos contemporâneos de sua passagem.


Tua lembrança pertence à nobre seção do afeto e apraz contemplar figura que tanto ensinou e agora diz que devo procurar outro mestre.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carla Bianca


 

Vingança


O tempo passou, minhas carnes estão secas e o rosto árido. Espero chuvas de sonhos para molhar a vida e fazer germinar esperança. Há séculos não vejo o sol. Não sei mais o que é brilho, a última vez que avistei o dourado, ele falava de amor e lançava olhares num tom de promessa. Tive medo, faltou coragem para apostar na luz e seguir o clarão. Hoje estou nas trevas e meus olhos adaptados ao breu. Os pés têm roteiros programados, não se aventuram além dos limites, do que é conhecido.


O negro ergueu muralhas e sitiou a vida que ainda resiste à escassez de amor.


Chuvas de granizo, quedas de meteoritos. Toda a natureza conspira, tramando uma vingança pela morte da ousadia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

Carla Bianca


 

Ceia


Trago mel nas mãos,
afagos na boca,
cheiros em meus lábios,
sonhos nos olhos;
tudo para um amor
que não sei qual;
tudo pronto a esperar
conviva para a ceia,
companhia para minha sede,
apetite,
emoção,
brindados em vinho branco,
acalentados
no aconchego da paz.

 

 

 

 

 

 

22.07.2005