Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

César Leal


 

Carta aos rinocerontes


Não sei se estou mais presente na Terra
do que estariam uma rosa e uma dália.
Nem um milésimo das coisas que vejo diariamente
está contido em meus poemas...


Sei que o leitor poderá dizer isso agora:
"— Você não é um bom poeta! Castro Alves
é mais participante, mais exato,
transporta o mundo — ou pelo menos sua metade
no Navio Negreiro.


Mas você — que leio agora —
não me acende nenhuma luz,
agarra-se demasiadamente aos anjos,
a uma forma estéril
que não fala ao tempo,
aos pássaros,
e menos ainda ao meu coração".


Ouço-te e repito
que sou apenas pequena parte das coisas
que estão no mundo
com certeza não sou a menor parte
e, por isso, tens que me aceitar
se és um leitor e não apenas um crítico.


Se minha poesia te cansa,
peço-te: come as saladas de Souzândrade; bebe
lentamente as gotas de orvalho que fluem dos Caligramas
de Apollinaire...


Elas satisfarão tua fome e tua sede,
ou terás uma sede e uma fome tão estranhas
que suportarias ainda Maiakovski,


Evtuchenko, Voznessenki, Pound
e toda a galeria dos participantes
que ficam à tua direita e à tua esquerda?


Quanto a mim, pouco te posso oferecer:
não escrevo para los muchos
arranco de mi corazón el capitán del inferno,
establezco cláusulas indefinidamente tristes


Esgotados os estábulos aonde os teus donos
guardaram para ti alimentos tão nobres,
ainda restariam os membros do Clube dos Ultraistas,
Tzara e todos os que, à semelhança dos empregados domésticos
sopram trombetas das 6 às 6,
repetindo eternamente a contínua canção:
"somos os que andam na vanguarda do Tempo".


Quanto a mim continuarei sozinho,
solitário como um estranho rio
de um território ainda não visitado pelos geógrafos,
abrindo sem descanso a minha estrada
certo de que alguém um dia
— anjo ou demônio —
caminhará por ela até a porta do meu nome.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

César Leal


 

Painel de Brennand no aeroporto de Guararapes


Cores mágicas recobrem
as superfícies de vidro,
onde o tempo sobre as lajes
funde-se a teu ver, Francisco.


E teu ver ali são bois
no cinzento apascentados,
são aves, centauros, peixes,


mulher curva, imatemática.


Completam a luz do painel
as longínquas cores do ar
onde aeronaves passeiam
seus motores, seus radares.


Como é árduo esse lutar
com tanto eterno interior,
depois atá-lo ao pincel
que na argila espalha as cores.


Também é teu o cavalo
de Gogh, Chagall, Renoir:
corcel do plumas marfim,
patas do marfim solar.
 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Junot Silveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

César Leal


 

Elegia às vacas de Belmonte


Este repicar de sino
desdobra em outro sentido:
— recorda um curral de pedras,
areia e barro cozido.


E a branda aridez do vento
no ondulante capinzal
onde o mugir dos novilhos
lembrava um som de metal


Os limpos vasos da ordenha
presos à cerca ficavam
à espera das vacas tristes
que à tarde ao curral voltavam.


(Se um fruto espelha num lago,
ver o lago é ver o fruto,
assim como um traje preto
lembra a tristeza do luto:


— acorda o sino esses bichos
cujas máquinas de cal
formam hoje ossuários limpos
de nervos, junto ao curral.)
 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

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Francisco Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

César Leal


 

Os quatro currais de Belmonte


São cicatrizes ligadas
à terra, como costuras,
aquelas cercas de pedras
semelhando a sepulturas.


Não pela forma alongada
que as sepulturas revela
nem pela cor dos tijolos
que a nossos olhos apela.


Nem pelo esmalte das tíbias,
o descarnado mistério,
dos bois que ali dormem secos
quais homens no cemitério.


Mas pelas rotas porteiras
de pedras esfumaçadas
quais cidadelas sem teto
depois de bombardeadas.


Viveram ali entendidos
homens, plantas e animais,
ao pó do solo fundidos.
Restaram quatro currais.
 

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Helena Armond

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

César Leal


 

Ode quase bíblica


Poetas, é preciso falar a Gog, príncipe
      de Mosoc e de Tubal!
Podres estão os frutos da vinha de Baal-Hamon
e eis que é chegado o tempo do Dragão
anunciado pelos profetas


Cantemos a copiosa luz dos corações


e a paz, a paz cantemos,
que não há beleza nos monumentos em chamas,
em mulheres evaporadas
no vórtice das bombas apocalíticas
nos esqueletos cobertos de sono e cal.


Cantemos a paz das longitudes altíssimas,


a paz querida pelas mães e meninos e poetas
que todos desejam viver e amar.


Não cantemos a paz armada, ofertada


pelos canhões,
pelos tanques
e foguetes balísticas, that false peace
That masquerades between the troughs of seas
Deceives in the silence between earthquakes,
or he lull
Between atomic bombs.


Ai de nós!


Os barbitúricos já não limitam o desespero da
Terra
Montanhas se povoam de centauros
e por toda a paisagem noturna
há bazucas, morteiros e canhões
desafiando as estrelas com suas bocas de ferro.


Cantemos a paz, não


cantemos a paz de cinzas — que é triste —
a paz dos mausoléus, a paz
ofertada pelo Dragão
aos meninos de Hiroshima a Nagazaki.


... Peace is the pull


Towards the motion of tree, star and stone,
The contented rhythm of the child at the nipple
The moment of surrender after union.


Poetas, perdoai as rudes notas


deste canto:
— é que meu coração registra um pranto escuro,
o compassivo pranto das mães
cujos filhos foram soprados na Guerra
como lâmpadas. Choram
e não lhes ofereço o mistério de meu canto
porque os olhos são portas
por onde saem fluindo da memória
os recordos mais tristes.


Deixai-as chorar os filhos


sacrificados a um século de Bronze,
pleno de asas, motores e disparos.


Que retornando


aos meus abrigos secretos
como quem foge aos punhos de um bombardeio
ouço o estalar de granadas
em minhas arquiteturas cardíacas.


Cantemos a paz, aspera


tum positis mitescent saecula bellis, a paz


longínqua das estrelas,
o vôo do sol erguido sobre o porto
o lento crescimento dos arbustos
a luz descida nas montanhas
mas não louvemos a paz dos Rosemberg
carbonizados na elétrica tortura.


É preciso crer na paz
— tranqüila em sua esperança
altiva em sua vontade.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Ledo Ivo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

César Leal


 

Salmo


Senhor, somos umas pobres sombras transviadas
à procura de uma estrela que nos guie aos sólios
de Vosso Reino.


Acendei em nosso pensamento a Vossa luz
e encontraremos no amor o segredo de Vossa Onipotência.


A vosso ver perfeito estão presentes os males que
nos ameaçam:


Não permitais, Senhor, que os céus desabem sobre
nossas cabeças
já que ao lado dos maus há flores e abelhas, pássaros
e, sobre a relva, cordeiros e orvalho.


Oh abbondante gràzia ond, io presunsi ficcar lo
viso per la luce eterna


concedei maior beleza às nossas intuições
e em nossos corações preservaremos
o quanto de Vosso Amor sobre a terra há descido.


É certo, Senhor, que a luz de Vosso paraíso
jamais ardeu tão pura dentro de nossas almas;
é certo que há mais beleza num instante de sofrimento
do que em toda a existência de um lírio


mas se a dor os corações contrista, perdoai-nos, Senhor,
para que possamos gozar em nossos lares
da paz que gozam no Vosso infinito os universos
tremulantes e altíssimos.
 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Thiago de Mello