Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 


Lúrida luz


lúrida luz
no quarto
do morto

lume morno
como cinza
de incenso



in Pantomima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 

Fluxo


O mar rala sua barba branca
no pescoço suado da praia;
caranguejo salta, arrepio,
e dois grandes gatos malhados
suspendem tensão de suspiro
- quase perto, presencio mudo
como anjo desnecessário.


in Pantomima

 

 

 

Albrecht Dürer, Germany, Study of praying hands

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Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 

Cidade fantasma


Os senhores que ora proseiam,
meu nobre colega,
não têm a tua elegância.

Nem conhecem a ignorância,
não desconhecer,
mas a de ser ignorar-se.

A ser da incompletude.

Se o verdadeiro solitário
é aquele que fala sozinho
mesmo quando não está só,

esses que ora proseiam
imaginam que escrevo
sem eles nem por perto.

Mal podem, os senhores que proseiam,
entretidos que estão com seus tédios,
determinar se é a janela do prédio
ou a deles, seres-edifícios,
que os conduz a apartamentos vazios.


in Pantomima

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Regina Lyra

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 

Raízes de rima


Já ardem lacerantes, fundas azias,
cólera azeda, acre o cavernoso vento.
Ulcera abrasiva, a paz da poesia:
zinabre acerbo, estalante brotamento,
aftas burlescas salivam anti-ungüentos.

Contorce, flagrante, um louco esquecido,
vírgula arfada, falqueando o fetal medo.
Germina torpe o poema do límpido:
jogral pulsante, indefinível enredo,
seiva que degenera ante atrasos cedos.

Quem, então, nos supriria o vácuo quê
se luzes metódicas maculam de cima?
Somos, árvores de fartos frutos a ver,

as falhas, santas lascas, que o caule sublima;
chama funda, reféns do terreno reter,
em poços, por sólidas raízes de rima.



in Pantomima

 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Carmen Rocha

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 

Mãe


mãe
palavra sacra
cravada em que

toca
sensualidade

mão amada

pelo que
dá de toque

na pedra bruta

mãe
palavra puta



in Pantomima

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 

Lavra


Esfarinhar a palavra granulada,
arrancando-lhe dermes e músculos,
até a medula do mármore precário
que aprisiona sua gloriosa fatuidade.

Fazer dos sentidos catacumbas
onde apodreçam os desabafos;
da vigília silente e insalubre,
um assalto à normalidade abjeta.

Corromper a palavra benta
enquanto esperança sem nome;
não basta engolir-lhe os fluidos,
há de esganá-la no útero árido,
antes que luza outra certeza vulgar.

Afogar os discursos insípidos
nesta fossa de metros exemplares,
a purificá-los de futuros,
rindo de seu refulgir afásico.

Da palavra lograda,
monumento faustoso,
limpar a porção pedra
que impregna de acridez
sob a urina dos anônimos.

Ainda que obsedado por luzes,
ignorar as emanações de alento
jorradas desse absurdo intenso
que tudo engolfa, conota e eterniza.

Dissecar a palavra cadáver,
extrair o cisto que a explica
e exsudá-lo na seiva ignara
que se oferendará ao mar.

Esperar que adormeça, decantada,
reciclando sua sina de resíduo,
buscar na areia a mensagem impossível
e então, à brasa do sol, castigá-la.



17 de agosto de 2004


 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Alcina Azavedo

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 

Tempos


Onzes de janeiro de dois mil e dois
haverá aos bilhões.

Agora é daqui
há pouco.

Dez minutos
sequer têm tempo
para esses seiscentos segundos
que os recheiam.

As hélices dos ponteiros,
as sombras girassóis,
a areia que esvazia,
enquanto anunciam,
sonham perenidades ínfimas,
prenhes de acasos remotos,
nanoabismos de augúrios
que orbitam num infinito
de culpas, anseios e júbilos.

Agora,
o agora
já era:

brilho cansado,
expira no olhar do bebê
– a mesma luz anciã
que sorriu nas pupilas fundas
do seu avô quando nasceu.

Seiscentos mil milésimos de tempo:
memórias de letras
que terminam nunca;
nódoas que não vemos
num fotograma negativo
daquele ímpeto que viria se.

Tempo é,
faz tempo.

Minutos, segundos, milênios
(é?)
são momentos.

Mas o tempo
– esse dá medo.


 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Vera Queiroz

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Guilherme Scalzilli


 

Ressurreição


Sê! Invade a tua luta covarde
e te soca logo a nocaute,
mesmo que doa aos teus
e cada cicatriz se perpetue
naquilo que te exibe oco.

Força a porta da tua lápide
e levanta desse conforto.
Nada existe nos corpos que se extinga?
Pois solta o remorso obtuso que te afunda!

Capta a angústia dos rostos eviternos,
inala o frenesi das lápides atentas,
goza a sutil expiração da culpa,
prova, lambe, sorve toda a dentada
e engole-te à rua sem fingir piedade.

Quando, a teus passos certos,
sucumbir o cambaleio das pedras,
percebe como a rua saúda
a apoteose de um êxtase insepulto.


 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Sonia Rodrigues

 

 

29/05/2006