Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Ofício


1.

Para que saibam depois,
desse relance
que é das coisas passageiras,
uma estância se organiza
entre nós dois,
vai mostrando a nosso alcance
a duração.


Na imagem breve
que se organiza no ar
e é puro sopro,
na instância que se vislumbra
e é só paixão refletida,
passa uma voz.
Para que saibam de nós.



2.

Apalpando a imagem,
como se a lembrança
andasse às cegas pela sombra,
adivinhando o que já soube
e coubesse aos poucos
sob a atenta pálpebra.



3.

Em minha mão que pensa,
a lente do poema
enquadra devagar
as águas afluentes
movendo-se entre as pontes,
movendo esses moinhos.


Vistos aí passando,
o passado vivido
e o passado que inventa
se misturam sozinhos.
São águas navegáveis
do passado possível.



4.

seda          tela           pele
água imobilizada na moringa


: papel :


te toco te espacejo
me anuncio.


seiva      veia aberta jorrando
ou congelado mar azul lavável


: tinta :


te exponho ao tempo
e me denuncio.



5.

não me basta esse espaço constelado
                   esse artifício
ainda que a verdade
              a paixão
              a beleza
de teu momento recolhido após a dor
serenem tua voz


não me basta o silêncio abreviado
                   o sinal só
sem a chave da clareza
                  da piedade
sem a chave da crença


não me basta a pureza de teu som
                               menos difícil
                               aí sozinho
ouvir ou ver não basta


a inteligência de teus signos
o coração aberto em tua mão
batendo aflito em minha vida
                        não bastam


sem a trama da frase em tua fala
sem o transe do verbo
que inicia na escrita
a surpresa certeza novamente



6.

Quando eu dissesse rosa
e tudo se explicasse


Como se fosse a prova
do enigma da existência


Ou te mostrasse exemplos
nas máscaras dos deuses


Para deter o tempo
e esclarecer os mitos


Na cadência da lei
Guiado pelo som



7.

Talvez as palavras não sirvam
para nada, nem as metáforas
de sangue e silêncio, mentais
nas duas caras dos espelhos.


Talvez as imagens não contem,
se meras figuras das coisas
aparecendo no papel,
qualquer pedaço de matéria.


Talvez não dure muito a mágica
do som que mudaria o mundo,
se em teu ouvido Orfeu se perde
e tudo volta a ser imóvel.


Talvez só valha o que é real
e marque a pele dos eventos,
como um sol, uma cicatriz
que não cessasse de mostrar-se.


Talvez só sobrevivam ecos
na caverna, sílabas, traços,
elos esparsos construindo
a realidade da memória.



8.

A poesia não está nas coisas,
me disseram.


A poesia nasce entre as palavras,
repetiram.


É um modo de falar,
um fingimento.


Entre os materiais
da escrita e da canção
um pensamento se ilumina
e aclara o mundo.


Podemos voltar ao trabalho,
à nossa ocupação do esquecimento.



9.

Nenhum poema nasce pronto
- dádiva, pomo glorioso
em minha mesa iluminada.


É preciso pensá-lo mudo,
medir seu peso pelo rastro
deixado no papel, se é tudo
o que a palavra pode ser.


É preciso escutar seu som
escrito numa pauta aérea
e dar-lhe forma, se é matéria
sonora gerando um sentido.


Nenhum poema nasce feito
- rosa completa em suas pétalas,
enfeitiçado mecanismo.


É preciso levá-lo ao fogo
onde soprá-lo paciente
- vidro que pode ser espelho
ou jarro em tua mão, cristal.


É preciso soprá-lo vivo,
que fale, vibre como sino
ou corte como espada, se é
aço afiado de outra forja.


Nenhum poema nasce inteiro,
configurando em minha tela
seu universo virtual.


É preciso escrevê-lo todo,
mesmo que um verso venha solto
pelo sonho: devo prendê-lo
entre os espaços que eu componho.


Entre histórias imaginárias,
entre imprecisas realidades,
nenhum poema nasce igual.


E é preciso deixá-lo em paz
quando respire e sem milagre,
quebrado o lacre da leitura,
pareça pronto e natural.
 

 

 

José Saramago, Nobel

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Nelly Novaes Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Estação de águas


1. Chegada

Sob azuis mineras nestas montanhas
de água e fraga retorno e retornamos
sobre verdes ferrosos. Paz na Terra.


O tempo é igual em todos os relógios.


Há fragmentos de cálice e caliça
nas varandas abertas para o vento.



2. Hotel

Um ritual de mesas e cadeiras
e mesuras e cardápios e sonhos
te espera.


Um ritual de roupas e gorjetas
e baralhos e cismas. Ritual
de tevês e cavalos e serões
terás.


Omisso nas paredes da Matriz,
omisso nos impressos de teu quarto
e nos bronzes da praça principal
te exige.


Enquanto estás, enquanto permaneças
mineral entre as nascentes serás
teu rito.



3. Temporada

Passarás não passarás quem me deixa
eu passar que se não for o da frente
há de ser o de trás.
Há de ser um de nós.


Há um tempo de beber e um de acordar.
Há um tempo de falar e um de esquecer.
Há um tempo de dormir e outro de ver.
Há um tempo de vir e outro, de voltar.


E apesar de haver tempo para tudo
passa que não há tempo par nada.



4. Balneário

A água que limpa o corpo
A ducha que lava o morto
A sauna que anima a alma


Os imaculados sóis
Os inoculados sais
Mais os alcalinos líquidos
e os ascéticos vapores


Que empenhos vem encardindo
estes pisos entre banhos
sobre ladrilhos partidos!



5. Parque

Copos verdes, copas velhas e cópulas
novas no parque onde fontes escorrem.
Onde lembranças escorrem na grama
e no peito de quem ama, de quem chora.


Magnésias, férreas, sulfúricas águas
jorram seu tempo sem medida. Jorram
sobre os trilhos e os tetos da estação,
sobre os portões, as pontes e as estrelas.


Sonhos verdes, sonos velhos e sombras
novas no parque onde as fontes soluçam.
Onde esperanças caladas soluçam.


Chuvas, nuvens transitam sobre folhas
pensativas, sobre um tempo esponjoso
filtrando essa meditação de minas.



6. Diário

Entre sábado e domingo
Entre uma lua de mel
e um sol ácido de praça
pelas ruas desoladas
o dia a semana e o mês


Entre o filme vagamente visto
o livro quem sabe lido
o jogo perdido e ganho
o corpo entregue esta escândalo
o dia a semana e o ano


Entre um suspiro e uma língua
vago rumor pelo bosque
Entre uma chama e um clarão
este espanto
a noite o ano a lembrança


Pois entre uma coisa e outra
entre quem parte e quem fica
entre janeiro e dezembro
feriados dias santos
a hora de nossa vida amém.



7. Partida

Uma última vista, uma visitação
final às fontes e à fotografia
tem sorrisos, tem mãos e tem passado.


O columbário se desprega e fica.


Súbito um sopro lembra que é outono
e faz-se um tempo morto em todos os relógios.
 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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Nauro Machado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Tour 35 ( Paris – Chartres )


O turista

Foram anos de espera
até este crepúsculo
de sábado europeu.
Árvores e animais
de nomes estrangeiros
desfilam pelo vidro
em silêncio, velhíssimos.
Vejo e gravo o momento
sem saber de que lado
é o aquário, exibindo
meu dia de mil horas
aos graves caminhantes.
Vejo e gravo o momento,
eu também caminhante
silencioso e grave.



A cidade

Em quase toda cidade
que visito me procuro
vivendo, sou personagem
sobre pontes e muralhas
amanhã, há muito tempo
um menino de outro nome
planejando outro futuro.
Teria cruzado o mar
ou fiz esta casa estreita
debruçada sobre um rio?
Viverei para saber
se vim ou jamais virei?
Entre fachadas reais,
luzes, letreiros, compêndios,
entre vislumbres de vida
atual, jornais, semáforos
paro, ciente componho
minha cidade inventada.
Com pedaços de mim, letras,
leituras, cinema, história,
sem compromissos diários
desfila no pára-brisas
minha cidade inventada.



A catedral

Entro sem pergunta alguma,
embora venha à procura
de tudo. O campo em volta
sabe e responde em silêncio.
Vejo-a com olhos dos outros,
palavras lidas de outros.
Ao meu redor, narração
de outro me explica pedras,
nomes de anjos e reis.
Suspendo meu pensamento
e me deixo ir no som
dos passos, de aves voltando
ao abrigo de um céu baixo,
velhas vozes que não ouço.
Há um pouco de frio e sol,
para que eu veja os vitrais
e pense nas estações,
que mudam para que eu mude.
Saio sem resposta alguma,
mas sabendo que passei
pelo silêncio do campo.



O vitral

O perdido segredo
de um azul impossível
e essa rosácea aberta
à face do mistério.
Eis a entrada do céu.
Eis o início da vida.
Num vidro aceso cabe
toda a glória do mundo,
cabe toda a esperança
nos deuses que sonhamos.



A escultura

Ver é tocar o alto
frio de pedra e vento
aí nesse portal
para o espaço infinito.
Ver é tocar seu gesto
pensativo, sua fala
suspensa como um sol
de inverno. É tocar
sua crença e seu exemplo
no limite do nada.



O guia

No som de cada palavra
a cadeia de outra língua
o faz estranho, longínquo.
O mundo que mostra é outro,
alheio a seu guarda-chuva
fechado, erguido em mastro,
como é outra a sua vida
em horário sem visita.
Mestre do tempo e do espaço
descobre, aponta, revela.
Mas quando mostra não vê,
seu monólogo se ausenta.
É talvez como se entrasse
no que diz, seu próprio eco
uma voz que ele teria
erguendo a nave, outrora.
Ou talvez porque ele soe,
entre colunas e tumbas,
sem idade, para sempre.



A fotografia

À esquerda passa a tarde
pela torre sem nuvem.
Ao centro meu assombro
esperado recorda
a véspera da vinda.
Ao fundo estão meus passos
sob a meditação
e a voz dos viajantes.
À direita o passado.
Não se acumula em vão.
 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Dalila Teles Veras

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Modelo vivo


1.

Há uma luz tardia
e fazendo falta:
para que os volumes
se soltassem, puros
contornos de um ombro,
o dorso em descida,
seu deitar-se em ondas,
seu alçar-se em concha:
acendendo a luz
que fazia falta.



2.

Há horas, basta vê-los
como alguma folhagem
quieta amanhecendo,
pano ainda novelo.


Se o ar se move – aragem,
brisa – será bandeira
aos poucos desatando
a sua seda inteira.


Vistos espessos, presos,
ou ao contrário, soltos,
esparsos, serão rios
estreitos ou revoltos.


Pode enredar-se, hera,
perfumada pelúcia
propondo a primavera,
clareira na penumbra.


Há hora em que é preciso
tê-los entre as mãos, fios,
tais como são – cabelos,
desfeitos de arremedos.



3.

As duas águas se juntam,
ou se separam,
num repartido de tranças.


Leve a linha divisória
traceja o rumo
onde as espáduas se inclinam.


Depois mergulha
para um vale de ramagens,
entre as rotundas.


Entre colunas paralelas,
marés a prumo,
essas metades caminham.


Logo regressam
mas novamente se enfurnam
duplas, conjuntas,


sobre a laguna.
sobem lentas aos planaltos
que se arredondam


e se acumulam nos cimos.
Nuvens volúveis ondulam
pela moldura


quando na orla de uns lábios
delineados
as duas águas se juntam.



4.

Diria redoma, trevo
de três folhas, vislumbre
vago ali, logo lapso,
vertiginoso coração.



5.

Nudez total, imóvel, em silêncio.
Na claridade enluarada, a pele
esconde as poucas sombras. Só revela
a dimensão imensa do mistério.


De perto, aqui, a penugem da nuca.
Ali os cílios, no poço do sono
de todo o corpo, sereno e sem dono,
que se entreabre lento e se aprofunda.


O olho se aproxima e sem esforço
avista os lábios úmidos sorrindo,
a levíssima vaga pelo torso.


De súbito hemisférios se debruçam,
toda a lua se alteia, vênus brilha
num recesso de rosa e cravo nu.



6. ( A hora natural )

Céu parado, com luz
discreta desde baixo
abrindo um véu ou dois.
Águas nos seus começos
de veios, poços, olhos.
Ar onde nada voa.


Mas já se mexe, asa
ligeira, quase ao léu,
uma espécie de sede
à procura de outra,
de fome desigual,
calor de sol. Troféu


o grito de triunfo
na luz que vem de baixo
apurando esse mel,
essa compensação
sem pensamento, o bel
prazer de ser no outro.


E eis-nos os dois, ilhéus
em fúria corporal
movendo céus e terras,
nos poços entornados,
nas águas agridoces
do corpo em escarcéu.



7. ( Explanações )

Então é isso.
Um desfilar de luzes,
cintilações pulsando confundidas.


É também a distância a descobrir
entre as esferas ocultas.
O centro é sempre o que se vê de dentro.


Nas margens, marés crescendo
onde há relevos imersos,
travos nos gomos das frutas.


E somos isso.
Calores conjugados,
testemunhas de palco, personagens.



8. ( Caminhos )

No arrepio do corpo
um sinal que se esgarça
e logo se concentra.
Suspiro. Alento. Frêmito.


Nos extremos do corpo
que desperta e se esforça,
onde o mais fundo ainda
é tato, superfície.


Nos espaços do corpo
que se adensa, nos tempos
do corpo florescendo
e quando é sempre e é tudo.


Nos limites do corpo.


Por dentro, mais além,
vai-se armando uma frase,
ou menos, som sozinho
buscando explicação.


À margem do planeta,
riscando um caminho e
quase obscuro se forma,
nos limites sem nome


do que pode ser alma.



9. ( Carta )

Todo amor é novo
e onipotente.


Todo amor é feito
de verbo e se transforma
em lei e mandamento.


Todo amor é carnal,
cativo da carne
e sua pele, seus poros,
a frágil trama de iluminações.


Todo amor é memória,
livre da circunstância
dos sentidos, fiel
à duração de seu encantamento.


Todo amor é
feito de ação
e se consome
em disparada como um sol.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Vicente Franz Cecim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Elogio da luz


Hokusai : Há o preto recente, o preto fosco,
o preto antigo, o brilhante...

Cesar Vallejo : Na fecunda oferenda das espigas

Elsy Guimarães : E um vinho de sangue fluía...
como se estivéssemos dentro
de um jovem coração que amava.

Paul Valèry : O azul da santa distância.

Jaun Ramón Jimenez : ...Branco,
Branco já de eternidade


 

1.

Na treva em que se perde todo tato
e a figura se desalinha solta.
No berço da cegueira mais noturna,
no negro espesso núcleo do carvão.
No entanto o brilho ao passo da pantera,
o lume do veludo e da memória
acesa, desde dentro desmentindo
a escuridão, o adormecido eclipse.
No entanto a prata velha, da distância
pulsando e iluminando teus cabelos.



2.

O não e o sim, noção de zero e mil,
de um nada e um tudo, súbito confronto.
Como se um sol que fosse todo branco
chegasse de repente sem aviso
e as pálpebras batessem sem controle
entre a mentira e a verdade do olho.
Mas nesse jogo de cal e petróleo,
sal e ébano, nos jorros de lâmpadas
sobre a mudez inerte dos minérios,
meus álbuns, meus avós e meus cordéis.



3.

Meu lápis fino marcando a brancura
do primeiro caderno e da lição
pairando pelas nuvens, pelas praias,
no que nelas se desmancha sozinha:
alguma espuma, chuva recolhida.
Cristal, porém. Lua cheia, vazios
a trabalhar, alvores de algodão
e linho por tecer. Nenhum desenho
nesse espaço que espera por seu tempo.
Esse branco é meu alvo e é meu risco.



4.

No começo era o verbo, era a maçã.
Era a explosão, era o incêndio, era o sangue
gerando a vida plena, era a amplidão
encarnada de bandeiras em chamas,
era o calor central de um coração
vibrando. Ouça o canto inaugural
pelas cristas vermelhas da manhã,
veja o raio que salta do rubi,
celebre a fonte rubra do mistério,
que no fulgor da rosa silencia.



5.

Onde a seara, a safra consagrada
a um deus antepassado, deus amigo
que vai e volta sempre para os louros
da sazão. Quando esplende o trigo, o pêssego,
o girassol no campo antigo e claro,
agora praça em feira para os olhos.
Até os sons nesse pomar enfloram,
são ouro e âmbar sobre a palha seca.
Até a fome é festa e se colore
sob o sol estival, sol de Van Gogh.



6.

Como se vê do alto onde vivemos
e velozmente morremos, da ponta
fria do gás que nos cerca e respiro.
Nas gradações da água em profundezas
caladas. Nas serranias longínquas
e na aérea lagoa de safira,
espelho contra espelho refletido.
Cobalto e prússia de Hokusai na vaga
estilhaçada imóvel de beleza,
metalizado azul mediterrâneo.



7.

Trama a esmeralda em faíscas, aflora
no oceano mesclado em camuflagens.
Inverna o dente na hortelã, na menta,
inventa a primavera e a clorofila,
invade a selva, o bosque, as alamedas,
mas se afunda no musgo e corta o cobre.
De sua Granada Federico o fez
universal, onipresente e denso.
Ei-lo na mão que o vê distribuído
e novo sempre. Mão de Paul Cèzanne.



8.

As centenas de nomes e matizes
luzem, desbotam, renascem nos panos,
nas paredes, nas urnas. Ora mansos,
mais tarde violentos. Porque os neutros
tons de roxo, magenta, violeta,
na flor amor-perfeito, no arco-íris,
no figo, na manga, parecem manchas,
remansos de paixão amortecida.
Cor secreta, de intimidade oculta.
Ou vinho que se beba pela uva.



9.

Se o mel se ensombra, o chá se intensa, se a
ferrugem lentamente toma conta
do arame, da paisagem, do papel,
se o açafrão da laranja e esse milho
desfalecem, se a pera, se essa areia
e esse topázio se ofuscam, mutantes,
como chamá-los, se nestes ocasos
todo prisma se infiltra de outra tinta,
toda madeira se converte em barro,
se petrifica em sépia, em ocre, em bronze?



10.

Considere o pavão e a pomba símbolo.
Reveja a passarela em movimento:
ondulações de flora e fauna, véus
sobre a nudez que transparece e aclara.
Considere a volúpia dos museus
nos corredores cegos e apagados.
Nos domingos dos parques a quietude.
Plumagens, mapas, carnavais, crepúsculos.
Quando o planeta anoitece, regressa
do escuro o branco essencial, à espera.
 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Luís Antonio Cajazeira Ramos