Izacyl Guimarães Ferreira
Elogio da luz
Hokusai : Há o preto recente, o preto fosco,
o preto antigo, o brilhante...
Cesar Vallejo : Na fecunda oferenda das espigas
Elsy Guimarães : E um vinho de sangue fluía...
como se estivéssemos dentro
de um jovem coração que amava.
Paul Valèry : O azul da santa distância.
Jaun Ramón Jimenez : ...Branco,
Branco já de eternidade
1.
Na treva em que se perde todo tato
e a figura se desalinha solta.
No berço da cegueira mais noturna,
no negro espesso núcleo do carvão.
No entanto o brilho ao passo da pantera,
o lume do veludo e da memória
acesa, desde dentro desmentindo
a escuridão, o adormecido eclipse.
No entanto a prata velha, da distância
pulsando e iluminando teus cabelos.
2.
O não e o sim, noção de zero e mil,
de um nada e um tudo, súbito confronto.
Como se um sol que fosse todo branco
chegasse de repente sem aviso
e as pálpebras batessem sem controle
entre a mentira e a verdade do olho.
Mas nesse jogo de cal e petróleo,
sal e ébano, nos jorros de lâmpadas
sobre a mudez inerte dos minérios,
meus álbuns, meus avós e meus cordéis.
3.
Meu lápis fino marcando a brancura
do primeiro caderno e da lição
pairando pelas nuvens, pelas praias,
no que nelas se desmancha sozinha:
alguma espuma, chuva recolhida.
Cristal, porém. Lua cheia, vazios
a trabalhar, alvores de algodão
e linho por tecer. Nenhum desenho
nesse espaço que espera por seu tempo.
Esse branco é meu alvo e é meu risco.
4.
No começo era o verbo, era a maçã.
Era a explosão, era o incêndio, era o sangue
gerando a vida plena, era a amplidão
encarnada de bandeiras em chamas,
era o calor central de um coração
vibrando. Ouça o canto inaugural
pelas cristas vermelhas da manhã,
veja o raio que salta do rubi,
celebre a fonte rubra do mistério,
que no fulgor da rosa silencia.
5.
Onde a seara, a safra consagrada
a um deus antepassado, deus amigo
que vai e volta sempre para os louros
da sazão. Quando esplende o trigo, o pêssego,
o girassol no campo antigo e claro,
agora praça em feira para os olhos.
Até os sons nesse pomar enfloram,
são ouro e âmbar sobre a palha seca.
Até a fome é festa e se colore
sob o sol estival, sol de Van Gogh.
6.
Como se vê do alto onde vivemos
e velozmente morremos, da ponta
fria do gás que nos cerca e respiro.
Nas gradações da água em profundezas
caladas. Nas serranias longínquas
e na aérea lagoa de safira,
espelho contra espelho refletido.
Cobalto e prússia de Hokusai na vaga
estilhaçada imóvel de beleza,
metalizado azul mediterrâneo.
7.
Trama a esmeralda em faíscas, aflora
no oceano mesclado em camuflagens.
Inverna o dente na hortelã, na menta,
inventa a primavera e a clorofila,
invade a selva, o bosque, as alamedas,
mas se afunda no musgo e corta o cobre.
De sua Granada Federico o fez
universal, onipresente e denso.
Ei-lo na mão que o vê distribuído
e novo sempre. Mão de Paul Cèzanne.
8.
As centenas de nomes e matizes
luzem, desbotam, renascem nos panos,
nas paredes, nas urnas. Ora mansos,
mais tarde violentos. Porque os neutros
tons de roxo, magenta, violeta,
na flor amor-perfeito, no arco-íris,
no figo, na manga, parecem manchas,
remansos de paixão amortecida.
Cor secreta, de intimidade oculta.
Ou vinho que se beba pela uva.
9.
Se o mel se ensombra, o chá se intensa, se a
ferrugem lentamente toma conta
do arame, da paisagem, do papel,
se o açafrão da laranja e esse milho
desfalecem, se a pera, se essa areia
e esse topázio se ofuscam, mutantes,
como chamá-los, se nestes ocasos
todo prisma se infiltra de outra tinta,
toda madeira se converte em barro,
se petrifica em sépia, em ocre, em bronze?
10.
Considere o pavão e a pomba símbolo.
Reveja a passarela em movimento:
ondulações de flora e fauna, véus
sobre a nudez que transparece e aclara.
Considere a volúpia dos museus
nos corredores cegos e apagados.
Nos domingos dos parques a quietude.
Plumagens, mapas, carnavais, crepúsculos.
Quando o planeta anoitece, regressa
do escuro o branco essencial, à espera.
|