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José Nêumanne Pinto


 

Jiqui


Um dado, um dedo, um dia
Na cegueira do Cego Aderaldo,
no pertume do preto Pretinho.
 


(Diamante da coroa do rei
não mata a fome de ninguém)
 

 

dia          hora
 D             H
             agora
 


Camisa aberta,
coração desnudo
ao vento
verso e viola.
 


Cancela aberta,
o boi avança no tempo
     — de passagem.
 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Fernando Py

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Na casa avoenga


A nuca cansada apoiada
na palma aberta da mão,
os olhos míopes
do velho Chico Ferreira
escutavam o choro do sertão
no céu sem estrelas
da mais escura vastidão.
 

 

            um sapo
            um grilo
            um rês
            uma rã
 


Assim era o serão
na Fazenda Rio do Peixe,
de onde fui vindo.
 


Todo som que me vier
do bojo da rabeca de Bié,
como chuva na telha
e sabor de leite coalhado
com rapadura rapada
      — eta emoção!
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Millôr Fernandes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Quanto custa?


Quanto custa
a arquitetura vegetal
semeada no sonho?
Quanto se paga
pelo devaneio?
Que esmola pôr à mão
do velho corvo,
que abre as asas,
quando o avião
cruza o vão
entre dois espetos
que ele fincou?
O velho corvo grita
contra o céu
e estende a mão
à insone ilusão,
que lhe cabe.
 

 

Que esmola lhe dar?
Os calos na pele das mãos
de seus obreiros,
os cérebros endoidecidos
de seus mestres de obra
ou as retinas escancaradas
do mundo a seus pés?
 


O bonde-emoção
o atropela e mata,
mas, vivo, o desejo sem trilho
de homens comuns,
que o amam,
mantém o castelo de pé,
o templo da expiação,
o tempo na contramão,
profanos desvarios da paixão.
 

 

 

Bronzino, Vênus e Cupido

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Maria Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Quando chove


Quando chove, danço só,
vestido de ouro, algas e escama,
sou peixe do Açude Velho,
navego pelo canal
nas bandas do Buraco da Jia,
nos tempos em que o lugar
não se chamava Rosa Mística
e era reduto de bandidos.
Passo pelo Ponto-de-Cem-Réis,
uma bicada de Rainha
na bodega de seu Aluísio,
defronte do posto de seu Gaston.
 

 

Quando chove, deslizo rápido,
como os casais do Ypiranga,
carregadores da feira-livre
e empregadinhas do Alto Branco,
forrobodó, chula e lundu.
 


Se não chove, dá no mesmo,
patino na lama da Rua Boa,
escapo para as bandas de Esperança
e me escondo do amor divino
e da fúria dos homens
nos contrafortes da Borborema.
 

 

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair

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Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Ontem foi amanhã


Ontem foi amanhã
e já será hoje
quando eu caminhar
para trás,
no rumo do que deixei
e do que me largou.
No brilho da lembrança
de uma imagem qualquer,
a saudade de certo instante:
casas, ruas e ladeiras
escapam com o tempo,
que as cobre de pó.
 

 

Cada dia repete o anterior
de forma diferente;
irrepetível, toda hora
repete outras horas.
Do berço ao túmulo,
apenas o rio interminável
e o banho em suas águas
mesmas, conquanto mutantes.
 


A memória não imita
a cidade construída:
inventa a cidade mítica
e a funda novamente,
pedra sobre pedra,
sonho sobre sonho.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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Antônio Houaiss