Cultivador de um gênero que resiste às técnicas
e ao dinamismo de seu tempo, Linhares observa o
humano e o expõe nos versos como que a maior
exemplificação da vida, real e imaginária. O velho e
o novo estruturam uma poesia cheia de apelos
emotivos e circunstanciais. Dado o seu conhecimento
acerca da arte poética, é capaz de produzir textos
nas mais diversas formas: clássica, romântica,
moderna, pós-moderna, sem abdicar da principal veia
da poesia, a exaltação à arte de escrever, à
Literatura.Seu livro de poemas, Notícias de bordo,
indicado para o vestibular da UFC, é o motivo maior
dessa edição.
Em Linhares, esta arte tece o ser humano nas suas
mais variadas expressões, da alegria efusiva do
nascimento à depressão e angústia da perda, da
morte. Sem nenhum propósito estético-estilístico,
podemos afirmar que os versos de Linhares Filho
ilustram o ser humano, ou seja, é humanizado porque
assim é a vida dentro e fora do indivíduo. Nós
humanos somos um celeiro de sentimentos e
ressentimentos, a vida ensina e malsina, porém
ninguém quer deixá-la, senão os transgressores
extremados, a exemplo de Quental e Sá-Carneiro, em
Portugal, e Raul Pompéia em nosso país.
A fuga da vida, veja bem que não é a morte, mas uma
não-intenção de viver, marca a poesia de Linhares
Filho, um poeta que apenas reprisa o pessimismo sem
adotá-lo, uma vez que credita os seus versos a uma
evolução da humanidade, do ser humano enquanto
criatura divina, porém sem ser a celeuma divinizada.
Em Seres, que pode representar o processo de criação
do escritor, o humano é mais humanizado, mas sem ser
humanista, como bem se observa nas seguintes versos:
Dos seres sendo produto, / sou deles nova versão. /
Devendo-lhes um tributo, / exprimo-o pela criação.
Poética de uma vivência
Os poemas de Linhares Filho convergem, notadamente a
antologia poética Notícias de Bordo, para uma
situação experimental vivenciada por um eu
carregado de saudades - da terra natal, dos entes
familiares, da Literatura que o influenciara,
influenciou e influencia -, e de apelos sensuais.
Este livro reúne o que, na concepção literária de
Linhares, melhor representa a sua produção de 1968
até os nossos dias. E o ano de 68 marcou, no cenário
artístico-literário cearense, o surgimento de um
grupo de escritores e intelectuais que buscou
ampliar o conceito de poesia em nosso estado,
trata-se do Grupo SIN, que ao mesmo tempo passa o
sentido de afirmação da poesia cearense e toda a sua
amplitude, bem como menciona as mais variadas formas
de composição poéticas, assim, configurando-se em um
sincretismo literário. O ser humano em Linhares
Filho é a sua grande fonte, é o seu motivo maior de
produção. E nessa produção o homem e a mulher
trafegam com todos os seus sentimentos, do mais
mesquinho ao mais enobrecido. Linhares sintetiza em
sua poesia o legado que se estende, na Literatura em
Língua Portuguesa, da Idade Média aos nossos tempos
contemporâneos; é um poeta completo, considerando-se
as mais diversificadas formas de se fazer poesia: da
medida velha à medida nova; do clássico soneto à
poesia sentimentalista romântico-simbolista; da
postura e visão iconoclastas dos primeiros
modernistas ao experimentalismo estético-literário
do grupo do qual foi um dos fundadores e que o
projetou para o plano literário nacional e, também,
universal.
Também é autor de uma das mais intrigantes teorias,
muito bem ilustrada pelo enigma Machado de Assis, a
Teoria da Latência Sensual, onde recorre ao
simbólico e ao latente, previstos na obra romanesca
do velho Bruxo. Linhares é camoniano, machadiano,
pessoano, torgueano, drummoniano, recebe e adota
todas as influências que se fizerem necessárias ao
seu texto poético, sem deixar de ser Linhares, o
filho de uma terra marcada por contradições e por
isso mesmo rica de valores literários, e muito
humana.
Retrato de um caminho
Os poemas selecionados para a construção do livro
Notícias de bordo, antologia poética, podem
exemplificar a tendência da poesia cearense e
brasileira que se verificou a partir da década de 60
do século passado. Convencionalmente o grupo de
escritores que fez parte desta vertente recebeu a
denominação de Geração 60. Aqui no Ceará tal
expediente ficou evidenciado logo que o Grupo SIN
foi projetado e consolidado, isso no ano fatídico
para a história política do Brasil de 1968. Este
grupo pode ser compreendido como o amálgama poético
no século XX.
Adotou posturas simétricas com destreza e altivez,
mas também soube dar um tônus de relevante sentido
regional, político, urbano e cosmopolita. Era uma
poesia sem preocupações academicistas, contudo não
chegou a ser ácida com os seus antecessores,
reacionários ou subversivos, apenas buscou ampliar o
plano poético de nosso estado, o qual, com o SIN,
deixou de ser provinciano para se tornar universal.
A natureza temática
No que diz respeito ao livro de Linhares observa-se
o homem preocupado com os seus mundos, exterior e
interior, traçados ao gosto dos sentidos e
sentimentos, não apenas do esteticismo. O poeta não
tem preocupação alguma com o engajamento de sua
obra, apenas, como se fosse pouco, poetiza as
vivências nos vários planos de sua vida, pessoal,
acadêmica, literária, social, dentre outros. São
poemas extraídos de sete livros, cabalisticamente
selecionados, no entanto não se pretende dar um tom
espiritual e enigmático à obra do poeta de Lavras,
visto que ele mesmo já traçou esses elementos como
pertinentes a sua vida.
De Sumos do tempo (1968), foi extraído o texto Poema
algo cômico de minha essência, onde viceja o
cosmopolitismo de alguém cansado da vida moderna e
enfadonha, e tão somente aliviado pelo ato de
escrever poesia. Nesses versos o poeta se diz por
acaso, pois o homem traz em sua alma o traquejo do
mundo, seja de qual tempo for, algo que pode ser
ilustrado com a última estrofe do interessante
´Poema algo cômico de minha essência´: ´O céu e a
terra cosem-se aos meus artefatos. / Engrandeço-me
na sua grandeza / e sinto-me um nada diante deles. /
A dor é a minha matéria / e, quando trato do prazer,
não vos iludais: / nos interstícios de uma faço
ressoar o outro. / Penetrei o segredo de todas as
ironias / arremessadas contra Deus e contra a vida,
/ mas nunca me converti à revolta dos homens. / Por
isso, também canto salmos e hinos. A primeira parte
tende à reflexão filosófico-espiritualista, mas não
adota sistema algum de religião ou filosofias. É
claro que existem as recorrências literárias,
entretanto não determinam o sentimento do poeta,
sevem como exemplos e referenciais, jamais como
determinação de seu texto poético.
Dos poemas
A tematização da morte, muito freqüente em
Literatura, não delimita o versejar de Linhares,
nota-se apenas uma marca que também faz parte da
vida, seja de quem fica ou de quem parte, conforme
os versos de ´A minha mãe, habitante da morte´: ´Tua
branca rede já não se arma / para a sesta. Todavia
guardo, / com o ranger longínquo dos armadores, / a
placidez do teu sono, / a entreter o meu sonho.
Na segunda parte Voz das coisas, verifica-se não
mais uma transição entre o poeta e a poesia, não
mais reflexões existencialistas, mas a consolidação
de uma poesia rica e engenhosa, paralela aos maiores
nomes do cânone em Língua portuguesa. Inicia-se com
uma composição carregada de ironias que marcam o
cotidiano das entidades de um século promissor em
seu início, mas tenso e contraditório se mostrou em
seu final.
Se tivermos de engajar o texto do poeta em algum
segmento de estilo, podemos afirmar que tanto autor
como poesia estão inseridos no contexto estético
modernista.
O homem, os seus espaços, os seus
entes queridos e toda a sua vida passam por um
processo de recriação. Talvez o homem supere a morte
com a memória, mas jamais vai deixar de velar os
seus mortos; talvez o homem se fixe nalgum lugar,
porém não deve deixar de cultuar aquele onde nasceu;
talvez o homem crie um meio de ser feliz, contudo a
sofreguidão continuará em seu passado, na angústia
do presente e na incerteza do seu futuro. Linhares
Filho chega à perfeição poética quando dialoga com
outros textos, na ode ao rio de sua aldeia, não a
aldeia de outros poetas, mas a do poeta cearense,
sabedor como bem poucos que, para ser universal, é
preciso antes de tudo pintar o seu quintal. E ele
pinta uma imagem do Rio Salgado com doces palavras
poetizadas: (Texto I)
Mais adiante o rio será testemunha do bem e do mal
produzidos pelo ser humano. Está implícito o diálogo
com Pessoa e seu Tejo, o que torna o texto de
Linhares ainda mais rico em lirismo e poesia. A
saudade do rio fecha o poema como que uma lamúria de
nunca mais o poder margear. Trata-se de uma visão
poética das mais expressivas da nossa literatura,
comparada ao Rio Jaguaribe cantado em verso por
Demócrito Rocha.
A Metapoesia
A última voz desta parte do livro afirma o legado
que pode deixar o poeta-mestre, o qual se centra no
repasse de informações e conhecimentos da vida. Fala
o catedrático, o homem de conhecimento, que não
promete metais, mas pode abrir mentes para, desse
modo, falar e cantar as verdades de que a vida
precisa no Ante-supremo canto ou prematuro
testamento: (Texto II)
Pode-se destacar desta segunda parte a alternância
de estrutura e forma do poema. Ora fixa-se a
métrica, ora abre-se o texto com versos de liberdade
branca sem simetria. Isso só comprova o vasto
conhecimento literário que se internaliza em
Linhares Filho.
Na terceira parte, Frutos da noite de trégua, o
poeta nos passa uma lição de poesia, atestada com os
versos: Banho-me no Poema / e me liberto redivivo e
novo. A poesia é o ópio do poeta. Este aforismo é um
tanto quanto vazio, mas se enche de verdades ao
lermos estes versos de um poeta cheio de vida e
conhecedor dela. A vida é pura poesia, quando
comparada com a morte, mas se expande e anula o fim
(a morte) ao se tornar imortal com todas as suas
linhas escritas.
As forças antagônicas
Não é fácil comentar poemas de grande
relevância sem se entregar e integrar a eles. Poucos
poetas têm esta capacidade, e Linhares Filho
consegue essa
proeza, em virtude de ser oriundo de um grupo de
poetas que sabem do ofício de engendrar o texto em
verso. Segue-se o ritmo da saudade e da
sensualidade. A vida, a morte, a vida pós-morte e a
aldeia são revisitadas como um Pessoa a revisitar a
sua Lisboa. Lavras de Mangabeira é o mundo de
Linhares, e o rio Salgado concede fertilidade para
que o poeta ejacule palavras de várias matizes sem
cair no chulo, como bem se afigura nos versos da
Canção marítima: (Texto III)
Em Tempo de colheita, configura-se a influência
recebida por Linhares, tanto de poetas da terra como
de outras, antigos e modernos. Aqui se celebram
Homero, Lorca, Torga, Bandeira, João Cabral de Melo
Neto e a própria poesia. Os versos iniciais nO
Trajeto da criação remetem-nos ao conhecido texto de
João Cabral de Melo Neto, Tecendo a manhã, mas o
poeta cearense não copia o poeta pernambucano,
apenas busca um diálogo, ampliando o valor estético
de seu texto. Não é a primeira vez que isso acontece
no comentado livro, anteriormente, o autor de Lavras
faz uma aliança literária com Cassiano Ricardo,
evidenciando uma das marcas de sua poesia com os
seguintes versos de Cassiano: Quem morreu, não foi
ele. / Foram as coisas, que deixaram / de ser vistas
pelos seus olhos. O título desta parte do livro se
bem justifica com o poema Tempo de colheita 2, em
que o homem cultiva uma terra de sacrifícios para
dela extrair a própria poesia. Se Torga recorre à
penedia para dela extrair o sumo de seu texto
poeticamente elaborado em prosa, Linhares Filho cava
o seu torrão para dele retirar uma poesia
marcadamente telúrica e universal. Aqui terra e
homem se unem, efetuando uma troca justa: a terra dá
a seiva bruta, e o homem a trabalha, transformando-a
em poesia.
O Canto do Passado
A quinta sessão (com ss por se tratar de um
encontro e não um compartimento), Andanças e
Marinhagens, o poeta mergulha no Atlântico para ser
testemunha de um evento histórico que marcou
profundamente a pátria lusitana e também o encontro
de nosso país. Portugal, ao achar o que iria ser o
Brasil, se reencontrou com sua história. Somos o
mesmo povo, mas com a ressalva de sermos mais
complacentes do que os portugueses. No soneto
Invocação a Portugal, está patente uma sentença: a
literatura portuguesa é tão marcante que ela não faz
parte de Portugal, mas Portugal, dela, conforme os
versos: Ensina-me com as tuas caravelas, / ó pátria
de Camões, a
navegar, / que, enquanto ondas houver, batendo
nelas, / não vais deter teu desafio ao mar. Note-se
que a pátria é de Camões e não Camões da pátria.
Linhares tem na Literatura um dos maiores temas
existentes no seu livro
Notícias de bordo, este título pode sugerir as
reminiscências de um nauta a caminho de um porto
longínquo, rememorando toda a vida, sendo
perscrutado pela morte, de familiares ou até mesmo
do próprio eu-lírico. Ainda nesta parte do
livro,tem-se homenagem a dois grandes nomes da
literatura brasileira, Drummond e Machado de Assis,
e um lusitano, Fernando Pessoa, que são referências
de uma poesia cheia de vivências, andanças,
marinhagens, tempos, vivos e mortos. Revela-se, por
este turno, um soneto que pressente o tempo final da
vida, mas não, felizmente, consolidado, uma vez que
há muito ainda o que dizer em verso e prosa. A vida
passa, a poesia não morre e o poeta se imortaliza
com seus versos que ilustram e justificam o viver,
conforme a idéia do belo canto de esperança Espera
da ave da paz, onde se celebra, então, o retorno do
amor verdadeiro ao coração dos homens. Rebuscas e
reencontros revela uma poesia marcada pela
humanidade, sem o racionalismo humanístico. Enaltece
o homem, criatura sujeita ao bem e ao mal, Camões,
grande fonte de todos os poetas do vernáculo, o
Ceará, lugar onde o sangue rega o solo, Lavras
Mangabeira, cidade ausente, porém, uma ilha e um
refúgio permanentes.
A Expressão Clássica
E, para fechar o livro, em Cantos de fuga e
ancoragem, faz-se um canto de amor em forma
clássica, onde a sedução da amada é o lugar em que
se pretende largar a âncora, enterrar-se nela e ser
parte do mesmo corpo, da mesma alma, pois
sentencia-se que O meu desejo em turbilhão se agita
/ por esse porte de palmeira esbelta. / O fulgor da
atração me precipita / para os anseios teus, que
exala um delta. Neste soneto afirma-se um tema de
grande importância para o livro, o Amor, enquanto
sentimento de atração e convergência, que torna dois
em um só, porque, assim, ´Contigo me encontrei para,
na vida, / um só plano cumprir de corpo e alma, /
sentindo sempre que és o meu poema.´
A amada é fonte inesgotável, segundo os versos de
Linhares no último segmento de seu livro. O
estribilho neste poema confirma que o poeta é cheio
de emoções. Nas estrofes que intitulam esta obra, o
poeta recorre ao verso redondilho para afirmar as
notícias que traz consigo a bordo da vida, que
ensina, malsina e termina em verso e poesia.
VERSOS
Texto I
Rio Salgado da infância,
eu te olhava com uns olhos
compridos como o desejo:
nadar em ti nunca pude
como faziam os outros
meninos de tuas margens.
Por isso é que em tuas águas,
ó Jordão de minha vida,
tive o batismo do sonho
e ainda me corres no peito.
Salga-me, assim, com doçuras,
Para que eu não apodreça.
Texto II
Dou-vos escassas colheitas,
conseguidas com o ofício
de fazer chuva-de-giz
defronte do quadro-verde.
Chuva de uma como cinza,
cinza branca de uns cigarros,
que na vida vou gastando
como em teatro sem aplauso;
cai nos olhos, suja os dedos,
cobre de neve os cabelos,
no entanto fecunda o trigo
para o pão de nossa mesa.
Deixo-vos prédios de sonhos
e latifúndios de nadas.
Texto III
Mulher e Mar, tens encantos de fêmea
para o meu sôfrego percurso.
Meu destino é a quietude
que se esconde sob as tuas algas
e sob a tua salsugem.
Não há limites para o marulhar
que em tua ilharga ferve.
Enquanto ninfas e elfos
longe se divertem,
eu renasço para te amar.
Se marejas, tens mariscos
ao lusco-fusco, na preamar.
SAIBA MAIS
BARBALHO, Alexandre & BARROSO, Oswald. Org.
Letras ao sol: antologia da Literatura cearense. 2ª
ed. Fortaleza: Ed. Fundação Demócrito Rocha, 1998.
FILHO, Linhares. Itinerário: trinta anos de poesia,
1968-1998. São Paulo: Scortecci, 1998.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários.
14ª ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
MORICONI, Italo. Como e por que ler a poesia
brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva ,
2002.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Inútil poesia e outros
ensaios breves. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
JOSÉ AGLAILSON LOPES PINTO*
Colaborador
*Ensaista e professor
FIQUE POR DENTRO
Um perfil da vida e obra de Linhares Filho
Nascido a 28 de fevereiro de 1939, em Lavras da
Mangabeira, filho de José Linhares Gonçalves,
ex-prefeito da cidade antes mencionada, e da artista
plástica Maria da Conceição Esteves Linhares, o
poeta, ensaísta, crítico literário, acadêmico e,
principalmente, Professor Doutor em Literatura,
Linhares Filho, figura entre os que cultivam de
forma exemplar a versificação pautada na terra da
luz. Linhares Filho se engaja no grupo de
intelectuais que formaram e enriquecem o trabalho
literário do Ceará. Vindo do sertão do Cariri, este
homem fez os primeiros estudos no Crato, depois,
veio a Fortaleza concluir os estudos básicos e
superior, respectivamente, no Liceu do Ceará e na
Universidade Federal do Ceará (UFC). Nesta
instituição de ensino também cursou Direito, mas a
paixão pela Literatura o fez desistir e ingressar,
pela mesma universidade, na Faculdade de Letras.