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Laeticia Jensen Eble


 

Verdadeiros cantadores não recitam

 

 

Verdadeiros cantadores não recitam
Recitar é ridículo ante a possibilidade de um parto
Verdadeiros cantadores reencarnam, ressuscitam
vão buscar o poema no ventre materno
- a palavra no papel
Determinados, arrancam-lhe o suspiro primordial
E o choro da lira, o canto
Por sua voz ecoará
Eternamente, encanto.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Adriano Espinola

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Laeticia Jensen Eble


 

O SONHO DE UM HOMEM
 


Toda noite acordava
Do seu existir vago e profundo
E vivamente acalentava
Um doce sonho delicado
 


Flores em interminável primavera,
o piano flutuando no ar,
violinos a lamentar...
Procurando, não encontrava
a razão de sua quimera.
Nada o iludia.
As notas em profusão
exalavam o seu recado, gracioso
Não havia medo nem dor
Só a certeza de viver
um para o outro sem saber
Ele a amava e esperava.
Esperava e chorava
Chorava e tocava
Tocava e ressoava o mais puro amor
Ao longe, ela ouvia
Em algum lugar, seu coração ouvia
E se reconhecia naquela melodia
E também chorava.
Sem saber por quê.
Acreditar nisso, bastava para aquele homem que sonhava
Notas eternas sacramentaram aquele amor vibrante,
amor ardente, amor soante, amor amante.
Amor de sonho.
Sonho de amor.
Ou amor e sonho?
Novo dia, novo canto,
novos sons,
novas flores,
novo jardim,
novo sonho.
E o mesmo amor.
 

 

 

Titian, Noli me tangere

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José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Laeticia Jensen Eble


 

PAISAGEM DA MISÉRIA HUMANA


Me espanto com o que vejo:
Não pode ser real.
Não pode ser humano.
Não pode ser.
Para mim, é efêmera paisagem.
Para tantos, é face cruel e permanente da vida:
a miséria humana.
A miséria é carniça.
Os urubus estão rondando.
E o assassino está no poder.
Da miséria que lhe agrada, sua criada,
é o criador.
Dia a dia planejando
o próximo golpe fatal da criação - da multiplicação.
Não dos pães. Da fome, da dor.
A miséria não fala,
não entende o que ouve,
nem pode entender.
Suprimiram-lhe as ferramentas.
O suor corrói a sua fé.
As mãos, ásperas, secas,
fendidas como o chão que a escora,
e talvez como a vida que insiste,
não oferecem perigo.
Somos todos egoístas!
As máscaras caem.
A aridez decompõe a noção da vida.
Por mais que joguemos terra, a cova se mostra
palmo a palmo mais funda.
A miséria cresce qual erva daninha.
A parasita videira mantém-se intocada.
Onde encontrar a raiz desse mal para cortar?
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Carlos Augusto Viana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

Laeticia Jensen Eble


 

PROCURA
 


Uma gota
que cai
Corta o ar
em peso
Choro.
Porque chorando
materializo
minha dor.
 


Basta, chega de poeira
Eu quero colírio pr’os meus gestos
Eu quero asas
Eu quero risos, palmas
Chega de inércia
Chega de caminhos inteiros
estreitos
eretos
Eu quero que seja de pouco em pouco
largo
torto
Eu sei! Eu sei!
Como sou ou devo ser ou quero ser
E procuro...
 


Amanhã tudo vai ser
nesse jeito de viver
bem diferente
Precisa ser
Pra ter um pouco mais
eu.
 


Pode ser
que um dia tudo mude
Mas até lá
quem sabe eu me acostumei
Não quero lutar contra o tempo
Prefiro lutar contra o cômodo
contra o que parece certo
aos olhos inertes, alienados, incertos
Quero me debater
até quando puder rachar
essa couraça
que me cega e amarra
e então me surpreendo
me encanto
e encontro
você.
 

 

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Maria Helena Nery Garcez

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Laeticia Jensen Eble


 

SIMPLESMENTE SEJA!

 

“A verdade é a coesão interna das coisas”
(Raimundo Panikar, sobre o Dharma)

 


Quer sentir o que sinto, como sinto agora, esqueça as palavras!
Rasgue este papel em pedaços, rasgue com vontade!
E os pedaços -- rasgue-os de novo, e de novo, e de novo.
Pegue entre os dedos o menor fragmento que restar
Olhe para ele, sinta-o, admire-o, sinta-se nele, e quando enfim já [estiver apegado a ele,
erga seus olhos mirando o infinito celeste, e por um breve momento
entregue-se, seja para o Universo
como esse minúsculo fragmento é para a folha que o originou.
Um pedaço, ainda que rasgado, que contém em si toda a verdade da [folha.
 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Rogério Lima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Laeticia Jensen Eble


 

TINHA TUDO NAS MÃOS
 


Por onde deslizava tua mão
Quando acreditavas na eternidade do amor
Por onde ela ia
Quando tinhas da tua face o complemento
Por onde ia
Quando fazias da ausência deleitoso sofrimento
Por onde...
Quando querias tudo e tudo era quase nada
 


Por onde vai agora a mão que te disse adeus
Por onde vais
Quando o que restou na tua mão
É apenas um retrato.
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Sebastião Uchoa Leite