Leonardo Gonçalves
Antologia
antilhana
Um livro inventa o
presente
“Negritude: o
conjunto de valores de civilização do mundo negro”, proclamava, em
meados dos anos 1930, um dos movimentos de maior impacto cultural
nos países africanos e da diáspora, especialmente (mas não só) nos
de língua francesa. Levado a cabo em Paris pelo martinicano Aimé
Césaire, o guianense Léon Gontram Damas e o senegalês Léopold Sédar
Senghor, a negritude é, ainda hoje, um grande exemplo de revolução
literária e cultural como reação ao problema do racismo e pela
afirmação dos valores culturais do homem no planeta. Sua proposta se
baseava em uma inversão da ordem vigente: o artista usando as armas
do opressor (que dizia “negro” como forma de discriminação) a favor
dos valores culturais de seu povo.
A negritude já havia
marcado duas décadas de vida quando, em 1948, surge a primeira
edição da Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de
langue française [Antologia da nova poesia negra e malgaxe de
língua francesa]. Sua publicação ocorria por conta das comemorações
em torno ao centenário da revolução comunista ocorrida na França em
1848, ano do decreto que abolia a escravatura nas colônias
francesas, tornando o Estado responsável pela escolarização de todos
os habitantes das colônias, sem discriminação de raça ou credo. A
publicação desta antologia serviria como um re-definidor e um
divisor de águas para o movimento, servindo de referência para
artistas e leitores de todo o mundo.
Encarregado pela
organização, Léopold Sédar Senghor era um poeta com apenas três
livros publicados e professor de letras clássicas na universidade de
Tours, na França. O convite tinha chegado por parte do editor
Charles-André Julien, que num “Avant-propos”, incluído em edições
subsequentes, comentava: “Esta reunião, Léopold Sédar Senghor a
constituiu não somente com gosto, mas com amor. Filólogo erudito,
ele conservou, entretanto, uma alma de poeta inteiramente nova.
Nenhum preconceito de escola influenciou sua escolha e essa escolha
é excelente tendo sido inspirada somente pelo seu culto à beleza e
sua fé na eminente dignidade da negritude. Não poderíamos esperar
deste homem probo e corajoso uma disciplina conformista. Se alguns
cantos de revolta que ele manteve estão às vezes entre os mais
belos, é porque eles não são menos significativos. A seleção de
Senghor foi feita por um espírito livre”.
Para compreender a
importância deste livro, basta termos em conta que, na ocasião do
seu lançamento, ainda não se falava em “negritude” no Brasil, termo
que só entraria para o nosso repertório em princípios dos anos 50,
talvez mesmo por efeito da repercussão desta Antologia. Como
bem lembra Julien, o que se viu nos anos seguintes foi uma imensa
revolução entre os povos negro-descendentes, a começar pela a
emancipação de diversos países, a conscientização da “negritude” em
todos os lugares que traziam a marca africana em sua formação,
experiências que marcaram a história de povos como as lutas dos
movimentos negros nos EUA, em toda a América e na África. Tudo isto
colaboraria para que esta antologia se tornasse um tipo de
manifesto, de grito de libertação para negros e não-negros dos
quatro cantos do planeta.
Além dos poetas
reunidos, a antologia contava ainda com um prefácio exortativo de
Jean-Paul Sartre, intitulado “Orfeu negro”. “O que vocês esperavam
ao arrancar a mordaça que fechava essas bocas negras? Que elas iriam
entoar elogios?” O filósofo demonstra a força da palavra desses
poetas, tocados por um sentimento de revolta dos mais autênticos.
“Negros que se olham, sem se preocupar conosco [brancos europeus].
Que nos olham e nos envergonham por estarmos sendo vistos – nós que
temos gozado do privilégio de ver, pelos milênios afora”. Sartre
aproveita para anunciar poetas desta antologia (Aimé Césaire, por
exemplo), como estando entre os mestres da língua francesa. O
entusiasmo de Sartre é apenas o começo da antologia.
Numa espécie de
preâmbulo a cada autor, Senghor inclui uma espécie de “notícia”.
Sobre o guianês Léon Gontram Damas, que abre a antologia, ele diz:
“Poesia essencialmente não sofisticada. Feita de palavras de todos
os dias, nobres ou grosseiras, mais freqüentemente das palavras
simples e das expressões do povo”. Segundo ele, em sua poesia, o
ritmo se sobressai à melodia:
Eles vieram esta noite em que o
tam
tam
rolava de
ritmo em
ritmo
o frenesi
dos olhos
o frenesi das mãos o frenesi
dos pés de estátuas
DEPOIS
quantos de MIM
morreram
depois que eles vieram naquela noite em que o
tam
tam
rolava de
ritmo em
ritmo
o frenesi
dos olhos
o frenesi das mãos o frenesi
dos pés de estátuas.
São ao todo 16 poetas.
Cada qual incluído a partir do seu local de origem: Guiana,
Martinica, Guadalupe, Haiti, África Negra e Madagascar (Malgaxe).
Surpreendentemente, os poetas ali presentes não são apenas os
signatários do movimento. Escritores de diferentes gerações e que
produziram seus poemas em épocas diferentes. O haitiano Léon Laleau,
por exemplo, teve seus primeiros livros publicados nos anos 1920, ao
passo que David Diop, havia nascido em 1927, um jovem autor inédito.
Senghor comentaria
mais tarde, num texto hoje incluído na sua Oeuvre poétique:
“a aventura dos poetas da Antologia não foi um empreendimento
literário, sequer um divertimento; foi uma paixão”. O desejo era,
sem dúvida, o de transbordar daquelas páginas e realizar
transformações efetivas na percepção do homem, no que tange às
questões do negro no planeta: “O Negro singularmente, que é de um
mundo onde a palavra se faz espontaneamente ritmo quando o homem
está emocionado, dado a si mesmo, a sua autenticidade”. Aimé Césaire:
Minha negritude não é uma pedra, sua surdez escoiceada
contra o clamor do dia
minha negritude não é uma nesga de água morta
sobre olho morto da terra
minha negritude não é nem uma torre nem uma catedral
ela mergulha na carne rubra do chão
ela mergulha na carne ardente do céu
ela fura o sufoco opaco de sua destra paciência
De cada lugar, ele
inclui alguns poetas, cada qual por seus motivos: a Martinica, é
representada pelo já citado Aimé Césaire, grande amigo de Senghor
(que faleceu em abril de 2008 aos 94 anos, rodeado de homenagens em
todo o planeta), Gilbert Gratiant (que escreve em Crioulo) e Étienne
Lero, personagem chave das movimentações políticas da negritude nos
anos 1930. De Guadalupe, Guy Tirolien e Paul Niger. Do Haiti:
Jacques Roumain, Jean-F. Brière, René Belance e Léon Laleau. Este
último, poeta do modernismo haitiano, nascido em 1892, homem
político de importância para a história de seu país. Foi membro do
governo haitiano algumas vezes e um dos responsáveis pelo acordo de
desocupação americana do Haiti no começo dos anos 1930. Um de seus
poemas nos remete indiretamente ao modernismo brasileiro e à
antropofagia (movimento que considero o correlato da negritude no
Brasil):
Canibal
O desejo selvagem, o ardor,
De misturar o sangue e as feridas
Aos gestos e caretas do Amor
E de achar, debaixo das mordidas
Que perpetuam o sabor dos beijos,
Os soluços da amante e os seus ais...
Ah! rudes e intranquilos desejos
de meus antepassados canibais...
A África Negra, ao
contrário do esperado, tem poucos representantes: Birago Diop,
Léopold Sédar Senghor (incluído na antologia a pedido do editor,
pois ele mesmo havia feito votos de não fazê-lo) e David Diop. Este
último, o mais jovem, contava apenas 21 anos, e o único nascido na
Europa, filho de mãe camaronesa e pai senegalês. David morreria
poucos anos mais tarde a caminho da África e é o autor de um dos
mais célebres poemas sobre o continente (poema não incluído na
antologia): “Afrique mon Afrique”. Quanto a Birago Diop, Senghor
comenta: “é mais conhecido como contista. Mas na África Negra, a
diferença entre prosa e poesia é mais uma questão de técnica e quão
magra!” Seus melhores poemas são os de inspiração africana, poemas
esotéricos de circuncidados:
Viático
Em um dos três canários
dos três canários onde certas noites retornam
as almas serenas,
o sopro dos ancestrais,
dos ancestrais que foram homens,
dos ancestrais que foram sábios,
Mãe enxarcou três dedos,
três dedos de sua mão esquerda:
o polegar, o indicador e o maior.
Eu enxarquei três dedos,
três dedos de minha mão direita:
o polegar, o indicador e o maior.
Com seus três dedos vermelhos de sangue,
de sangue de cachorro
de sangue de touro
de sangue de bode,
Mãe me tocou por três vezes.
Tocou minha testa com o polegar,
com o indicador meu peito esquerdo
e meu umbigo com seu dedo maior.
Eu estendi meus dedos rubros de sangue,
de sangue de cachorro,
de sangue de touro
de sangue de bode.
Eu estendi meus três dedos aos ventos,
ao vento do norte, ao vento do nascente,
ao vento do sul, ao vento do poente;
e ergui meus três dedos na direção da Lua,
da Lua cheia, a Lua cheia e nua
quando ela foi ao fundo do canário maior.
Afundei meus três dedos na areia,
Na areia que se resfriara.
Mãe disse: “Vai pelo Mundo, vai,
pela Vida Eles estarão em seus passos”.
Desde então eu vou,
eu vou pelas sendas,
pelas sendas e pelas estradas,
para além do mar e mais além, mais longe ainda,
para além do mar e mais além, mais longe ainda,
para além do mar e para além do além.
E quando chego perto de gente ruim,
os homens de coração negro,
quando me aproximo dos invejosos,
os homens de coração negro,
à minha frente avançam os sopros dos meus ancestrais.
Para fechar a
antologia, aparecem os malgaxes: “não achei bom abrir mão de
Madagascar”, comenta o antologista. Além de Jacques Rabémanjara e
Flavien Ranaivo, ele inclui ali um dos poetas mais famosos da Grande
Ilha: Jean-Joseph Rabéarivelo. Personagem inquieto, nascido em
Tananarivo que dedicou sua trágica vida à poesia. Vida que, aliás,
está repleta de acontecimentos extraordinários, excessos e ideias
radicais. Ao lirismo de sua poesia se misturam elementos mágicos e
rituais próprios da tradição malgaxe.
Há uma água viva
que jorra no desconhecido
mas que molha o vento
que você bebe
e aspira para descobri-lo
detrás desta dura rocha
caída de algum astro sem nome.
Você se inclina
e seus dedos acariciam a areia.
Súbito você repensa em sua infância
e nas imagens que o seduziram –
sobretudo aquela onde essas palavras ingênuas mas surpreendentes se
achavam
“A VIRGEM DAS SETE DORES”
E eis aqui uma outra água viva
que não cessa de surgir sob seus olhos,
mas que atiça a sua sede:
sua sombra
– a sombra de seus sonhos –
vira séptuplo
e, emergindo de você,
entorpece a noite já densa
Hoje, passados 60 da
primeira edição, fica a admiração pelo fato desta antologia manter
ainda o seu prestígio, traduzida para outros idiomas (destaque para
o inglês e o castelhano – em português, ainda não há) e tendo suas
tiragens constantemente esgotadas. O destino de obras do gênero
costuma ser mais curto e imediato – cumprindo sua função de divulgar
autores desconhecidos. Certamente, concorrerá para tal impacto, o
prefácio atemporal de Jean-Paul Sartre. Mas fazendo uma avaliação
mais ampla, veremos que para além de ser um livro de afirmação do
negro, a Anthologie teve o mérito de abrir as portas para
algo pouco explorado até aquele momento: o olhar dos grandes centros
desviado para o que estava sendo produzido nos países
subdesenvolvidos, tornando-os, assim, visíveis em todo o planeta.
Num texto de 1998,
intitulado “A antologia como manifesto & como épico que inclui a
poesia”, o poeta e tradutor norte-americano Jerome Rothenberg tenta
distinguir dois tipos de antologia: “aquelas que me/nos enganam com
um falso sentido de conclusão & de autoridade [canônicas], em
oposição àquelas (...) mais raras e úteis que principiaram & e com
isso mudaram o presente [que possuem um caráter de manifesto]”. Me
parece claro que esta antologia, organizada por Léopold Sédar
Senghor se insere na segunda proposta. Uma deliciosa antologia de
poetas negros que à sua maneira ajudaram a inventar o presente.
(Publicado
originalmente na revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro –
Nov, 2008)
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