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Leônidas Arruda


 

POEMA LIQUEFEITO

 

Sob o olhar dos olhos-d'água.



Faça-se o poema
em um piscar de olho-d’água.

Poema dos olhos-d’água
com sobrancelhas e cílios postiços.

Poema do espelho-d’água
que fez careta
mas depois sorriu para o menino.

Poema do copo-d'água
e do galhinho de arruda
que salvam as crianças
do mau-olhado e do vento-caído.

Poema da mãe de leite
que os botos levaram
para amamentar os recém-nascidos
que as próprias mães jogaram no rio.

Poema da mulher cega
levada pela cobra-grande
para cantar ladainha
na procissão dos afogados.

Poema da mulher parteira
que o rio arrastou pelos cabelos
para aparar os filhos da mãe-d'água.

Poema dos afogados
que tentaram beber toda água do rio
na esperança de morrerem enxutos.

Poema dos afogados
que espantam o frio da noite
sentados ao pé da fogueira
de assa-peixe e peixe-lenha.

Poema dos afogados
que leram e releram o volume do rio
queimando as pestanas
na luz acesa dos olhos-d’água.

Poema do dicionário do rio
no qual a palavra peixe
só falta saltar em patas
ao mugir do peixe-boi pastando
enquanto o peixe-cachorro ladra.

Poema da Maria do assopro
levada pela mãe-do-rio
só para tirar cisco dos olhos-d’água.

Poema das meninas nativas
que morreram afogadas
e foram aprender a bordar
o (v)estuário do rio
com peixe-agulha e linha-d’água.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Leônidas Arruda



RESÍDUOS DA INFÂNCIA

 

A eternidade de um dia.



I

O fogão aceso derretia o breu da noite
e a aurora mostrava sua cara-de-pau.

O dia começava nascer
na garganta do galo.
Crista-de-galo
só cantava no bico do sabiá-da-mata.

Boneca-de-milho
montava o sabiá-cavalo
e mantinha o canto no cabresto
e o relincho nas esporas.
Sabiá-cachorro cantava na laranjeira
e os espinhos rosnavam nos galhos.


II

O dia amoitava nos oiteiros.
O sapo-gigante chamava chuva.
Sapo-ferreiro fazia espeto de pau.
A cigarra pedia sol.
Passarinho dizia “ bem-te-vi.”
A cotia roía os caroços da manhã.
Cipó titica amarrava as horas.

O dia era uma lonjura.
Panela de barro cozinhava o galo.
Maria-da-mata matava joão-de-pau.
Maria-mole morria de preguiça.
Maria-sem-vergonha
ficava na moita com joão-do-mato.
Joaninha-guenza
brigava com maria-seca.

As horas chegavam à pé
e onze-horas floriam o terreiro.
Um bando de periquito-santo
fazia o nome-do-padre
no pé de flor-da-paixão.


III

A tarde chegava ciscando o tédio
e bicando farelos do meio-dia.
As vezes trazia rios de chuva
ou vinha em canoa de nuvem furada
carregada de temporal.
Algumas coisas só chegavam
pela hora da morte.

A noite era bicho-do-mato.
Durante o dia dormia no oco do pau
e só saía do buraco
quando o mata-pasto fechava as folhas
e o bico-de-brasa
acendia o rabo dos vaga-lumes.

Naquela hora
louva-a-deus
pau-santo
capim-santo
flor-do-espírito-santo
árvore-santa
anjo-bento
lágrima-de-nossa-senhora
erva-de-santa-maria
beijo-de-freira
flor-de-padre
raiz-de-frade
cabeça-de-monge
flor-de-cardeal
caba-de-igreja
cordão-de-são-francisco
barba-de-são-pedro
melão-de-são-caetano
cipó-cruz
flor-de-jesus
e espinho-de-cristo
se ajoelhavam para rezar.
 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

Leônidas Arruda


 

CAPATARÁ

 

Seringal do Amazonas onde o poeta viveu sua infância



Capatará em pencas de cupuaçu e graviola.
Bacuri e marimari faziam água na boca.
Goiaba acabava de amadurecer nos dentes.
Cachos de açaí e de bacaba
amadureciam com o menino.

Corta-água riscava a tarde de giz.
Fatias de lendas
derretiam-se na boca-da-noite.
Crescer era aprender pescar sonhos
em espinhel de tambaqui.

Capatará do pavio da lamparina
alumiando cubículos da infância.
Mata virgem levantava a saia na chuva.
Terra firme tremia debaixo do temporal.
Terra nua tomava banho-de-cheiro.

Capatará dos igarapés e dos pés trocados:
A selva (im)plantava pés de árvores
em pernas-de-pau.
Da pegada da onça nascia pé de unha-de-gato.
Onde o porco-espinho pisava
brotava pé de carrapicho.
Rastros de pernaltas amanheciam aguapés.
Pé de samaúma mais alto que arranha-céu.

Capatará dos seringais e dos castanhais
escondidos em maré de folhas.
Madeira de lei
tinha código de lua e cerne encruado.

Capatará das horas marcadas
no canto da inhambu-relógio.
Capatará amarrado no tempo com cobra-cipó
e pregado na memória com mosquito-prego.

Sapo-boi
socó-boi
peixe-boi
berram na lembrança.
 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

Leônidas Arruda



CODAJÁS

 

Terra do açai onde o poeta viveu dos 08 aos 25 anos



A vida em Codajás
gravitava em torno do rio e do mato.
De tão pequena
a cidade era um cisco no olho do rio.

Só tinha duas ruas.
Mas cada rua tinha dois nomes:
Rua da frente ou rua do rio.
Rua de trás ou rua do mato.

A rua da frente vigiava o rio.
A rua de trás espiava o mato.

Quando o perigo vinha do rio
a rua da frente corria para trás
e a cidade toda se escondia na selva.
Quando o perigo vinha do mato
a rua de trás corria para frente
e toda cidade caía n’água.

De tão pequena
a cidade podia ser medida
com jactos de mijo à distância:
os meninos - da rua do rio -
lançavam mijo na beira do mato
e os meninos - da rua do mato -
esguichavam mijo na beira do rio.
Depois um xingava a mãe do outro
e a cidade toda ouvia.

Com chuva ou com sol
- do alto do pau -
o repórter falante bradava:
“ São 18 horas.
Entra no ar a Voz do Pau
falando de Codajás para o Amazonas
para o Brasil e para o mundo”.
E planava no céu
o noticiário novo em folha.

O sol nascia dentro do mato
feito orelha-de-pau e abano de tucum.
Passava pôr cima da cidade
e se agasalhava em cama de forquilhas.
Mas lá do outro lado do rio.

No mais a cidade era calma e muda.
Ouvia-se
até o mexido do silêncio no ninho.
 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Vicente Franz Cecim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

Leônidas Arruda



MONÓLOGO COM DRUMMOND

 

Poema-homenagem ao poeta de Itabira-MG



Drummond,
nem precisa abrires a boca para me falares falando.
Basta ler teus versos para conversares comigo
como quem no tempo fala com todo mundo.

Tuas palavras gritam, saltam, inundam, inauguram,
transcendem, transferem-se para o nosso mundo,
crescem em nosso ser,
explodem em nossos sentidos
e vão pelo tempo e vão pelo ar e vão por aí...

Drummond,
como sabes expressar tudo o que por dentro sentimos:
“ zunzim de mil zonzons zoando...”
Tudo o que tememos:
“ A bomba não admite que ninguém se dê ao luxo
de morrer de câncer”.
Tudo o que desejamos:
“ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.
E mais: chegas ao ponto de dizer o indizível
como “ a polpa deliciosíssima do nada”.

Também, pudera, és “Fazendeiro do Ar “,
criador de palavras, criador de poesia
e tens uma “ Viola de Bolso”.

Quantas vezes nos identificamos em “Nosso Tempo”:
eu também tenho “ Uma Pedra no Meio do Caminho”,
eu também sinto a “Falta que Ama”,
minhalma também está no “ Brejo das Almas”,
no “ Sentimento do Mundo”,
na “ Rosa do Povo”.

Foi contigo que aprendi a “ Lição de Coisas”,
mas infelizmente, não tenho o “ Claro Enigma “,
tampouco, a “ Vida Passada a Limpo”.
Porque sou um “ Menino Antigo “
e carrego todas as “ Impurezas do Branco.

Mas, também sou “ José e Outros”
e quando me perguntam: E agora curumim?
Sinto apenas o “ Boitempo” mugindo reminiscência,
remoendo lembranças,
pastando numa idade verde e distante.

Por tudo isso, Drummond,
sinto que me encontro quando encontro contigo
e sento à mesa e sirvo-me de “ Alguma Poesia.”
 

   

 

Aurora, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Maria Helena Nery Garcez

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

Leônidas Arruda



RECRIAÇÃO DE MANOEL DE BARROS

 

A gramática expositiva de Manoel de Barros contagia



I

Manoel de Barros vários:
argila
tabatinga
saibro e areia.
Terra roxa
terra preta e lama.
Terra de barranco
terra caída
chão batido
rancho de pau-a-pique.
Casa de joão-de-barro.

Barros amassados para fazer alguidar
pote ou panela.
Esparramados no chão
ficaram propensos a bicho redondo
qual carrapato
peixe-lua
aranha-caranguejeira ou arraia-mijona.

Comprometidos com a mosca do sono
sonharam com bicho-pau e bicho-homem.
Acordaram bicho-do-mato
feito bicho-de-sete-cabeças
ou coisa parecida com garrancho ou poeta.

Conjecturas do húmus.
Alucinações do inexistir.
Projetos do vir-a-ser ninguém.
Frustrações de não-ser rola-bosta
vira-lata ou outro bicho menos importante
a modo de mucuim ou bicho-de-pé.


II

Ao batizar a mistura
o padre soprou Manoel de Barros
sem nem imaginar coisa felpuda:
sombra de paxiúba
alma de pau
em pele de caboclo.
Mãos de escamas de pé-rachado.

Homem só do faz-de-conta:
olho-de-mosquito
terra do nunca
nuvem clonada
átomo empobrecido
anjo deletado
homem genérico.

Manoel sem Cláudio
sem Costa quente e sem Bandeira.
Sem eira nem beira de Nóbrega e sem dom.

Manoel
só aro de panela
tampa de garrafa
asa de xícara
pano de enxugar prato.
Cambito de puxar prosa.

Manoel coberto de sambexugas e bribas
e descoberto por lacraus e tapurus.
Monumento de latas vazias
e de todo traste jogado fora.


III

Pantaneiro
catador de cacarecos e de teréns
ruminados na boca-do-lixo
e reciclados no azinhavre do monturo.
Pegador de palavras em arapuca.
Pregador de versos em parede crua
com peixe-martelo e peixe-prego.

Carpinteiro da palavra trabalhada
com serrote e enxó
plaina e formão.
Empós curtir no mijo-de-padre.
Artesão da palavra-chave
para desatarraxar corpo fechado.

Manoel de Barros e dos berros da boiaçu
da boiquira e da boipeba.
Sabe desatar nó-cego das tripas do vento.
Capaz de afogar o oceano
dentro de um pingo-d’água.

Manoel muletas de pernas-de-pau perneta.
Barbeiro de cortar cabelo de milho
e fazer o cavanhaque
de capim-barba-de-bode.
Obreiro de sintaxes desparafusadas.

Manoel criador de moscas.
Vive empestado de piolhos do arco-íris
e tem vício de tomar chá de raiz de orvalho.

Cultivador de palavras paraplégicas
de verbos invertebrados
substantivos em extinção
e adjetivos desqualificados.
Plantador de poemas transgênicos.

Manoel de Barros apodrecidos na poesia.
Imprestável para a morte.
Vai mesmo virar pedra e continuar
suando lodo nos descaminhos das lesmas.
 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Rogério Lima