Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Pragmatismo e tânatos


Isso é que é ser pragmático:
se morre alguém, esquece!
O dia borbulha tarefas na caldeira da repartição.
Projetos, compromissos, vantagens a maximizar.
Que importa o morto?
Urge a coisa dos vivos - vivíssimos.
O falecido teve o seu momento e está nos jornais,
Na forma de fotografia e editorial.
"Deixou obra digna de antologias,
Pena que seres de sua bonomia
Interrompam sua contribuição à decência.
Paz a seus restos".
Isso é que é ser pragmático.
Morreu? Era parte de nós?
A nossa parte está intacta
E circula no corredor com nossas ambições.
Importa o que somos. Não quem foi.
E somos esse afolivo de emergências,
Esses objetivos funcionais,
Papéis imediatos, obsessões, etc.
Quanto à destreza expositiva do morto,
Quanto à família do morto,
Quanto à...
Deixemos disso, não há perdas irreparáveis,
E há autoridades em perspectiva,
Há documentos por despachar,
não como se despacha um féretro.
Vamos, sejamos pragmáticos,
Declara-me, menos com palavras que com gestos,
O cara que trabalha na sala ao lado.
É verdade, a morte não tem sentido prático
(nem a vida).
Mas para mim era um poeta
E mesmo que fosse outro defunto
Significaria sempre o mistério.
Era um poeta
- e a poesia não é útil aos planos do interesseiro.
Mas uma imagem me manteve o dia melancólico.
É a recordação do poeta Enriquillo Sánchez,
que teve apenas o que deixou por escrito.
Não é preciso ser pragmático, definitivamente.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Crônica da cidade sodomita


Não mereceu do mar um grão de areia
a cidade sodomita.
Os mosquitos e a companhia de eletricidade
fizeram um pacto com os vendedores de doce e os dentistas,
e os petroleiros do West com os fabricantes de armas.
Os provedores de combustível regam plantas nos jardins da crise,
e o governo negocia com Maquiavel.
Os pintores garatujas dialogam com os turistas
e até a ardente claridade mercadeia com os ventiladores.
Tudo é comércio nas ruas de luxo e lixo.
Até o ar-condicionado, para o acesso ao artifício do paraíso,
sob a liberdade celestial do frescor,
nos impõe velhacos e indolentes técnicos.
Os guardiões concordam com a escuridão e o desemprego.
A lixeira celebra o seu convênio com os ratos e a carniça.
As clínicas se harmonizam com os buracos das calçadas.
O engarrafamento com os postos de gasolina,
os furacões com a arquitetura e o calor.
Tudo é concordância, até a escolta presidencial
se entende bem com os semáforos apagados.
Até os bancos parecem feitos para o FMI
e os soldados para o conflito multinacional.
Até os revólveres e as camionetas celebram bodas com o dinheiro [fácil.
Dinheiro desinfetado com detergente narco-cabrão.
Tudo é entendimento: cem anos luz de concórdia.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

O velhaco


O velhaco é difícil como as nádegas de uma monja.
Arisco como os motoristas espertalhões,
Cruel como os playboys de metralhadora.
É um felino (pra não dizer gatuno)
- está sempre onde não se espera,
nunca onde é esperado.
Reza o "perdoai as nossas dívidas",
E ainda que não rezasse, não as pagaria e as apagaria.
E as não paga. Asnão é quem não as apaga.
Que as pague o diabo - príncipe da usura,
ou a concubina do cura - que de fundos não descura,
ou o próprio vigário que retirou a frase do sacrário.
Pague-as o penitente blasfemo
ou o puritano incauto.
O velhaco é antes de tudo um hedonista:
"culpa é passatempo de indolentes.
Levar vantagem, competir, agressividade,
isso sim é vocabulário de executivos.
Que sentido terá para o figurão a palavra ética?
Supostamente conhece o termo.
Julgará que é coisa de filósofo velho.
O velhaco é ágil - um pé no pedágio,
outro no ágio e outro no acelerador.
É tão sagaz que - dizem -- nem cheira o próprio gás.
Realista: os quatro pés sempre no chão.
Não é nenhum tonto,
no país em que se tem direito a tudo:
da mendicância à degradação da natureza
tem mil razões o velhaco
para arrematar: pagar dívidas é coisa de otário!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Cautela


Cuidado com as mordidinhas do Butantã.
Cuidado com a porca que devora os seus melhores filhos.
Cuidado com a sombra do fantasma fictício
E com a asfixia do pseudo-salva vidas.
Cuidado com a cunha da cunhã e com o cunho do cunhado.
Cuidado com a má conha e com a boa conha.
Cuidado com o cão canhestro, com o decano acanhado,
com o cânone acanalhado.
Com o biscoito depois do coito.
Com a carótida do Caronte, com o cérebro de Cérbero
e outros cuidados.
Cuidado com o lobo do homem,
com os urubus, os carcarás, os cardos, as urtigas, os répteis
e outras feras da selva descomunal.
Cuidado com o marca-passo da vigilância.
Com o puxa saco que se dá bem nos cus-do-mundo.
Com o bandido Asmodeu disfarçado de Serafim.
Com o Preboste de palidez marmórea e esgares indulgentes.
Com o riso bonachão do sinistro debochado.
Com os estigmas indolentes do ansioso.
Com métodos de maximização do abjeto.
Com a boca torta do indecoroso.
Com a síncope no abdômen do vampiro.
Com a sensação de sufoco que transmite o maroto.
Com as caretas do trmebunod que de tudo tira proveito.
Com a dúbia risadinha do mesquinho.
Com aquela ladainha hipócrita da figura eminente.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Avisos fúnebres


Não posso continuar assim, tendo uma casa assombrada na alma.
Clarões de lua nos espelhos, nos vãos sombrios de escada,
Nos porões silenciosos.
Há mulheres armadas para o martírio,
fragmentos de gente pelos ares.
Por trás das colunas e paredes escuras,
os fantasmas de apoderam dos gatos
que gemem danadamente sob o influxo lunar.
Os refugiados afogam-se num charco de sangue
Os homicidas traficam à ponta de pistola,
Os agentes de segurança cobraram para não assaltar.
Um império caquético propaga histeria,
O cartel bélico tem sequazes confiáveis.
Horrores espetaculares
transitam ao redor do matadouro
Governos delinqüentes estampam ícones de altivez
que massacram inimigos.
O transbordo das armas atômicas,
pedras contras tanques, gritos contra mísseis.
O soldado que dispara contra o medo.
Noite de velório sobre o mundo.
Quem pode continuar assim?


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

O massacre de Jenin


Crianças choravam e corriam.
Famílias se escondiam nos porões.
Franco-atiradores disparavam de cima dos prédios.
Helicópteros "apache" jorravam mísseis,
despedaçando casas.
Tanques passavam sobre os habitantes,
71 mísseis foram disparados em menos de 30 minutos.
Os tanques e mísseis devastavam tudo.
Entre corpos esmagados,
os que fugiam eram executados.
Ouvem-se ainda tiros,
enquanto os pequeninos choram de frio e fome.
Há crianças que pedem explosivos para a vingança.
A destruição foi total, avassaladora e desesperante.
De vez em quando um corpo é encontrado.
Nasser Abu Hatab, deficiente mental,
foi alvejado uma vez na cabeça
e nove vezes no peito.
Hafaf Dusoky foi assassinado através da porta que bateu
para que não entrassem os invasores.
Os assassinos espreitam.
Fedem os cadáveres insepultos.
De tudo (prédios, ruas e casas)
restou uma vasta cratera de entulhos.
Hoje, o holocausto é na Palestina.
Nas aldeias arrasadas da Palestina.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Da zooproteção


É crueldade maltratar os animais.
Há que erradicar o crime contra esses pobres seres.
Toda a Europa reprime esse delito
e os Estados Unidos impõem a cominação
e a punição dos delinqüentes
que matem qualquer tipo de animal,
(exceto os de inteligência superior
e adeptos da religião inimiga).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

Márcio Catunda


 

Os milagres do Divino Mestre


I

Jesus, ao caminhar por Samaria,
clamores escutou de dez leprosos
que acreditavam que Ele os livraria
de seus duros estigmas tenebrosos.
Com pena, então, o Filho de Maria
mandou-lhes procurar os virtuosos
sacerdotes da lei, e nesse dia,
ficaram todos limpos, venturosos.
Mas regressou apenas um dos dez,
a dar-lhe graças e beijar-lhe os pés.
O Mestre viu que era um samaritano,
estrangeiro nas glebas de Moisés.
E ao constatar a fé do ser humano,
mostrou como são poucos os fiéis.

II

Quando Jesus chegava a Jericó,
a multidão parou para saudá-lo.
Um cego meditava triste e só,
mas ao ouvir do povo aquele abalo,
marchou, convicto e firme, como Jó
para louvar Jesus e abraçá-lo
e suplicar misericórdia e dó.
Diante das súplicas do seu vassalo,
humilde e tão sincero entre os judeus,
que ansiava por mirar-lhe o rosto santo,
o Mestre desvendou-lhe os olhos seus,
abrindo-lhe a visão como se um manto
saísse-lhe da fronte, e ele, com espanto,
dava louvores ao bondoso Deus!

III

Jairo chamou Jesus a toda pressa
para que lhe salvasse a filha única,
que à míngua perecia, e sem conversa,
partiu a Onipotência mediúnica.
Aflita, uma mulher toca-lhe a túnica
na multidão carente que o procura.
Quem pede ajuda? Indaga a seus discípulos.
Cai-lhe a devota aos pés, e tem a cura.
Já na casa de Jairo viu jazer
uma jovem exangue sobre o leito
e o seu desígnio decretou, perfeito.
Legando ao mundo o místico preceito,
mostrou Jesus amor, glória e poder
fazendo a moça morta renascer.

IV

A multidão com pedras ameaçava
a contrita mulher, que em seu quebranto,
as fraquezas humanas lamentava,
chorando cabisbaixa num recanto.
A cólera do povo era qual lava
que a ela provocava medo e espanto.
Assim, de atroz justiça, feita escrava,
Jesus a viu em convulsivo pranto.
"Na vida, quem jamais tenha pecado,
jogue a primeira pedra" - o Mestre ordena
à turba que partia em debandada.
Jesus falou então a Madalena:
"segue o teu rumo e leva vida honrada,
o meu juízo a ti não te condena".

V

Navegava Jesus com os pescadores
de uma margem à outra no alto mar,
os turbilhões do vento, com furores,
o barco sacudiam sem parar.
Em noite de tormentas e temores,
repousa o Mestre, quase a cochilar.
Transidos e assaltados de pavores
suplicam-lhe os discípulos pra os salvar.
Jesus ordena o vento serenar
e às águas determina mansuetude.
Grande calma reinou, grande quietude.
Perplexos Pedro e João como a chorar,
louvavam-lhe os poderes e a virtude
de dominar os temporais do mar.

VI

Meditava Jesus, junto a um recanto,
com alguns dos seus discípulos fiéis,
quando num súbito rumor de canto,
sentaram-se as crianças a seus pés.
E ao abraçá-las, com formoso encanto,
perguntou-lhes os nomes - eram dez
ou mais e elas sorriam tanto e tanto!
"Estes infantes são puros vergéis".
o Mestre afirma -- "são vergéis do céu!
da perfeita seara da Beleza.
Deixai que me procurem estas crianças.
De salvar-vos mantei as esperanças,
pois se tiverdes delas a pureza,
desvendareis do paraíso o véu!"

VII

Na aldeia dos gadarenos havia
um homem possuído por demônios,
pelos ermos a errar, sem companhia,
com os olhos desvairados e tristonhos.
Por que no seu delírio proferia
clamores tais, estranhos e medonhos?
Era um mistério, ninguém o sabia...
Ao ver o Mestre, despertou dos sonhos
da horrenda possessão que o estrangulava
e dos mil diabos com que se envolvia.
A legião imunda se rendia,
precipitada, qual ardente lava,
nos porcos atirados pelo abismo,
naquele formidável exorcismo.

VIII

Já Lázaro era morto no seu leito
e todos viam que morto jazia.
Jesus foi despertá-lo, e de tal jeito,
que o certo é que ninguém duvidaria
que embora morto já, no quarto dia,
seria erguido do sepulcro estreito.
Era Marta fiel ao Mestre, e o via
de Deus filho, imortal e sem defeito.
E ao vê-lo, a moça logo se apressara,
o rosto em pranto e a voz toda amargura,
e o seu poder, convicta, então proclama:
"Ó meu divino amigo!" - ao Mestre exclama.
Jesus, que amava Lázaro, então o chama,
e ele obedece, e sai da sepultura!

IX

Junto ao sepulcro inda Maria chorava,
sem encontrar o corpo de Jesus.
Dois anjos avistou, de branca luz
e apenas um lençol que ali restava.
E ouviu alguém que súbito falava:
Era o Senhor, de pé, vivo e sem cruz.
Ó maravilha que se apresentava
na figura do Mestre em Verbo e Luz!
Apareceu depois, no seu encanto,
aos discípulos, onde se escondiam
da vil perseguição dos fariseus.
De paz abençoou os filhos seus,
que arrebatados de grandioso espanto,
receberam do Mestre o Espírito Santo.


 

 

 

 

 

 

11/07/2006