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Maria da Graça Almeida


 

COMUM


João, com olhos sinceros,
É comum como um
Comum caramelo.


Comum,
Com um jeito comum,
É sincero.


João, com sorriso singelo,
É comum como um
Comum caramelo.


Comum,
Com um jeito comum,
É singelo.


(leia em voz alta)
 

 

 

Caravagio, Extase de São Francisco

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Gerardo Mello Mourão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Maria da Graça Almeida


 

Mudando de idéia


De tanta idade, que parem o trem,
tão enjoada, merece descer,
mas, lá na estação, afoita, sem porte,
de foice na mão, avista a morte.


O medo a invade, rejeita a morte,
que teme tal qual a ruga mais forte.
Os sulcos conhece, a morte ainda não,
não parem o trem na tal estação.


Que siga o trem, já não desce mais,
que leve, o trem, a velha em paz...
que fique a morte, sem jeito e ação,
e que, desta vez, aguarde-a em vão.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Nelly Novaes Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Maria da Graça Almeida


 

O rio


Rola o rio adormecido e mudo,
em cochicho miúdo, absurdo!
Desliza em cochilos alados,
num leito molhado e cansado...


Rola o rio em embalo trôpego
com sibilos roucos e sôfregos...
Verte um choro machucado,
benevolente ou irado


E rola descendo a serra
em desgraça ou benefício,
ora, mata a sede da terra,
ora, afoga-a em desperdícios.


Incauto, ignora o rio:
se a terra assim o quisesse,
dele faria um só fio,
antes que a cheia viesse...
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Nauro Machado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Maria da Graça Almeida


 

Natureza humana


Sorriso enluarado,
longos braços de mar,
olhos de chuva leve,
mãos de doce ventar,
riso de queda d´água,
seios, vastas colinas,
cabelo, anel de nuvens
pernas, árvores finas.
 

 

 

Inocência, foto de Marcus Prado

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Dalila Teles Veras

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

 

 

 

Maria da Graça Almeida


 

Maria Mortalha


Cedo, deitou-se Maria, pronta
pra logo morrer,
vestindo a alva mortalha, sem medo de
adormecer.
Os olhos tanto mais fundos, coroados
por olheiras,
cerravam-se moribundos, nessa hora
derradeira.


Implorando-lhe ajuda, veio um
moleque qualquer:
- Vó, apanha uma agulha, me tira o
bicho do pé!
Servil, levanta a Maria, desvestindo
a alva mortalha
e já mais morta que viva,
do pé, o bicho estraçalha.


Volta, esvaída, Maria para o
bom leito de morte,
quando lhe chega a nora , chorando a
fome e a sorte.
Maria, do quarto, dormente, sai e
aquece o fogão,
serve-lhe o leite fervente e duros
nacos de pão.
Com a fome, então, saciada e o corpo
fortalecido,
parte a jovem senhora com olhos
agradecidos.


Maria, assim, novamente, põe-se no
leito de palha,
julgando que, certamente, não mais
tiraria a mortalha.
E eis que lhe chega a vizinha com um
pote tosco à mão.
Queria do sal, só um pouco, que lhe
salgasse o feijão.
Maria deixa o leito... que a Morte
espere um instante...
pra atender a boa vizinha, ergueu
-se, mesmo ofegante.
Bem cheio o pote de sal, a dona vai
-se embora.
Maria, já fria, descora e aguarda,
da Morte, a hora.


A Morte que vinha chegando, notou-a
em pele ardente,
porém, percebeu que a lida, tornara
Maria valente.
Vendo a mulher à espera, recolhida
em seu leito,
ordena que se levante e atenda-a
com medo no peito.
Maria coloca, surpresa, os olhos
esbugalhados
sobre as vestes que a Morte trazia
em trapos rotos, rasgados.


A Morte impõe, soberana: - Sobreviva
só mais um dia,
ainda que condenada, cosa-me a capa,
Maria!
E apontando-lhe as entranhas,
ressecadas e vazias,
exige-lhe que, ao fogo, torne, o leite,
que frio jazia.


Maria salta do leito, arranca a tal
da mortalha
e sem mesura ou respeito, rebelde,
à Morte, detalha:
- Em face aos desmandos alheios,
viverei mais um ano e meio.
 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Vicente Franz Cecim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria da Graça Almeida


 

Mãos inertes


Mãos sobre o teclado,
reprimido esvoaçar.
Distraídas lagartas
indispostas a voar.
No rebaixo do bemol
e no sustenido olhar,
solfejando à luz do sol,
uma pausa a imperar.


Numa peça tão franzina
que ainda sei de cor,
vejo muda a sonatina
e menor, o tom maior.
A bisar longo o acorde
o arpejo acorda a brisa
e a fuga em movimento
vaia o eco que a reprisa.

 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Jorge Medauar

 

 

 

03.12.2004