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Miguel Carneiro


 

O Herético


Numa madrugada
Quando queimava de febre
Suspendi os olhos para o oitão
E tremendo de frio
Busquei no tempo
Agasalho para a minha solidão.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

 

 

 

 

Miguel Carneiro


 

Balada da Minha Dor


Eu sou um cão vadio sobre a face da terra,
Farejando no ar tanto indignação.
Eu lambi as feridas de São Roque,
Levei o seu precioso pão.

Eu fui o cão de caça do palácio de Gotardo.
Transitei num tempo de peste,
e nas colinas ao Leste,
quando me buscaram,
eu estava distante cravejando minha presa no calcanhar do Cão.

Eu estive com São Lázaro,
e testemunhei a sua ressurreição
Por longas décadas andei de pelo caído,
de sardas espalhadas pelo chão.
E nem por isso abaixei o meu focinho,
nem deixei que o carinho,
diluísse nesses tempos de completa podridão.

Eu permaneci ligado,
Algumas vezes travado:
de haxixe, maconha e bom bocado.
Nesse condado repleto por putas, veados e ladrões.

Eu vi a miséria tomar conta de meu país
e nem assim me exilei,
eu aqui fiquei.

 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Luciano Maia

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Miguel Carneiro


 

Canção para ninar Gaiaku Luíza


Eu
não sei dos mistérios,
e nem ousaria desvendar.
Dentro de mim correm negros
que me fazem de ti aproximar.

Trago, porém, de longe
guardado em meu peito
teu doce nome para te louvar.

Minha Mãe dos Caminhos
me embale até eu sonhar.
Ò Gaiaku Luíza
Teu povo jeje veio nos tumbeiros a penar

Transportados feitos animais,
chicoteados, humilhados.
Renascem por tuas mãos,
na longa luta,
através de teus Orixás.

 

 

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Miguel Carneiro


 

Canção das noites de abril


A minha amada
tem olhos de madrugada
como fachos acesos de tição.
A minha amada é inquilina
bem menina
de meu velho coração.

Chama-me pro canto
Fascina-me
faz-se de traquina
em meu templo de celebração.

A minha amada tem a boca de mel
semelhante ao manjar do céu.
De travo tão bom,
espairecida no Jardim das Delícias
E nessa preguiça
permaneço a lhe enamorar.

Minha amada tem um cheirinho
que de longe eu posso identificar
Aquece-me e me cobre
e dorme sempre depois que eu estou a cochilar

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Carlos Figueiredo da Silva

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Miguel Carneiro


 

A Degola em Canudos


Foi uma guerra sangrenta
Que rompeu no sertão,
Quatro exércitos mobilizados:
De baionetas, fuzis e canhão.
E meu Bom Jesus Conselheiro
dando testa a tanto capitão.

Degolaram criancinhas, mulheres e ancião.
O sangue dos inocentes
espalhou-se pelo chão.
E a sordidez da covardia
se instaurou na Nação.

Valei-me, valei-me, valei-me,
Valei-me meu São Sebastião.
Salvai as almas dos degolados,
mandai os degoladores
para as profundezas do Cão.

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Ruy Espinheira Filho

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

Miguel Carneiro


 

Pernambucanamente


Eu quero me pernambucar
andar por Olinda
para ver o Homem da Meia-Noite desfilar
caminhar pela Rua da Aurora
onde aquela morena ficou a me esperar
ir no sebo do Brandão
correr tudo que é estação
e procurar a primeira edição
de Bandeira, Carlos Pena e Jomar

Eu quero me pernambucar
cair na bagaceira
até o Galo da Madrugada passar
procurar pelos meus parentes
os Carneiros Leão que vivem por lá

Pedir a Lia
que me cante uma ciranda de Baracho
e uma outra da Ilha de Itamaracá
vou conhecer o filho de Samico
dá um pulo em Bezerros
para ver J. Borges me desenhar

Eu quero é me pernambucar
quero revisitar Miguel Arraes de Alencar
que governou à contragosto dos militar
vou passear por Cabrobó, Tacaratu, Orocó,
Carnaubeira, Penha, Itacuruba,
Afogados de Ingazeira, Exu, Inajá
vou até Limoeiro, Lagoa do Ouro,
Santa Maria do Cambucá

Vou pedir a Luiz
para me cantar um baião,
aquele de José Dantas
e visitar Tamandaré, Cacimba do Padre,
Morro do Pico, Coroa do Avião,
vou zanzar pela Zona da Mata,
pelo o Agreste e pelo Sertão

Quero reler Avalovara,
vou mudar a minha cara
quero dançar com os índios Kapinawá,
Pankararu, Xucuru, Truxá
Quero viver em Pernambuco
Quero me pernambucar
Recordar Gregório Bezerra
rumar pra Serrita
e beijar Dom Hélder
para eu poder me humanizar
Quero viver em Pernambuco
Quero, quero me pernambucar


 

 

 

Allan Banks, USA, Hanna

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Helena Pedra

 

 

25/10/2006