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Murilo Mendes


 

Canto a García Lorca


Não basta o sopro do vento
Nas oliveiras desertas,
O lamento de água oculta
Nos pátios da Andaluzia.
 


Trago-te o canto poroso,
O lamento consciente
Da palavra à outra palavra
Que fundaste com rigor.
 


O lamento substantivo
Sem ponto de exclamação:
Diverso do rito antigo,
Une a aridez ao fervor,
 


Recordando que soubeste
Defrontar a morte seca
Vinda no gume certeiro
Da espada silenciosa
Fazendo irromper o jacto
 


De vermelho: cor do mito
Criado com a força humana
Em que sonho e realidade
Ajustam seu contraponto.
 


Consolo-me da tua morte.
Que ela nos elucidou
Tua linguagem corporal
Onde el duende é alimentado
Pelo sal da inteligência,
Onde Espanha é calculada
Em número, peso e medida.


In: MENDES, Murilo. Antologia poética. Sel. João Cabral de Melo Neto. Introd. José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Fontana; Brasília: INL, 1976
 

 

 

Antônio Houaiss

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William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Cartão postal


Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.
 


O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
 

 

 

Lau Siqueira

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Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Corte transversal do poema


A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
 

 

 

Luiz Bello

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John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Elegia de Taormina


A dupla profundidade do azul
Sonda o limite dos jardins
E descendo até à terra o transpõe.
Ao horizonte da mão ter o Etna
Considerado das ruínas do templo grego,
Descansa.
 


Ninguém recebe conscientemente
O carisma do azul.
Ninguém esgota o azul e seus enigmas.
 


Armados pela história, pelo século,
Aguardando o desenlace do azul, o desfecho da bomba,
 


Nunca mais distinguiremos
Beleza e morte limítrofes.
Nem mesmo debruçados sobre o mar de Taormina.
 


Ó intolerável beleza,
Ó pérfido diamante,
Ninguém, depois da iniciação, dura
No teu centro de luzes contrárias.
 


Sob o signo trágico vivemos,
Mesmo quando na alegria
O pão e o vinho se levantam.
Ó intolerável beleza
Que sem a morte se oculta.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
 

 

 

Junot Silveira

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William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Grafito numa cadeira


Cadeira operada dos braços
Fundamental que nem osso
 


Não poltrona com pés de metal
Knoll
Ou projetada por um sub-Moholy Nagy
Com nota didascálica
 


Antes cadeira no duro
Cadeira de madeira
Anônima
Inânime
Unânime
Cadeira quadrúpede
 


Não aguardas
Nenhuma "iluminação" particular
Nem assento e clavícula de nenhuma deusa
Que te percutisse — gong —
Nem de nenhum Van Gogh
Que súbito te tornasse
Eterna
 


Roma, 1964


In: MENDES, Murilo. Convergência, 1963/1966: 1 — convergência; 2 — sintaxe. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos

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William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Grafito para Ipólita


1
 


A tarde consumada, Ipólita desponta.
 


Ipólita, a putain do fim da infância.
Nascera em Juiz de Fora, a família em Ferrara.
 


Seus passos feminantes fundam o timbre.
Marcha, parece, ao som do gramofone.
 


A cabeleira-púbis, perturbante.
Os dedos prolongados em estiletes.
 


Os lábios escandindo a marselhesa
Do sexo. Os dentes mordem a matéria.
 


O olho meduseu sacode o espaço.
O corpo transmitindo e recebendo
 


O desejo o chacal a praga o solferino.
Pudesse eu decifrar sua íntima praça!
 


Expulsa o sol-e-dó, a professora, o ícone
Só de vê-la passar, meu sangue inobre
 


Desata as rédeas ao cavalo interno.
 

 


2
 


Quando tarde a revejo, rio usado,
Já a morte lhe prepara a ferramenta.
 


Deixa o teatro, a matéria fecal.
Pudesse eu libertar seu corpo (Minha cruzada!)
 


Quem sabe, agora redescobre o viso
Da sua primeira estrela, esquartejada.
 

 


3
 


Por ela meus sentidos progrediram.
Por ela fui voyeur antes do tempo.
 

 


4
 


O dia emagreceu. Ipólita desponta.
 


Roma 1965


In: MENDES, Murilo. Convergência, 1963/1966: 1 — convergência; 2 — sintaxe. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
 

 

 

Jorge Medauar

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Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair