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Naeno
CAFÉ
Aquém foi pra mim uma xícara
Que pus no pires, que pus café
E conversei comendo bolachas,
Tomando café, apressado para ficar.
Alguém por mim, limpou a mesa
Catou os farelos de bolacha,
Juntou os utensílios,
Depois beijou a minha lembrança.
Um retrato, que nem mais era eu.
Esse alguém mora comigo
E a dez anos a gente conversa
Todas as manhãs, durante o café.
O resto do dia caca um sabe quem é,
O que fazer. Eu faço intrigas
Comigo e o meu retrato,
Que lembra-me noutro tempo
Um momento em que éramos iguais.
A pessoa que mora comigo
Faz do seu dia mais venturoso,
Limpa as gavetas, vai às lembranças
Uma criança deixada só.
Faz o que come, pega o que bebe,
Prepara a cama, e se deita solta.
Dorme sozinha, vai aos seus sonhos,
Sonha comigo, e arruma a cama
Com dois travesseiros.
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RECHEIO
O vazio ocupa o homem
Mais que si mesmo.
Ele é a presença do nada
Por não ser que em si o tudo cabe
Por não ser que em si cabe o tudo.
O tudo completo, em forma de vida e
vazio
A falta que é da própria vida.
Do homem que cabe e acolhe o
invisível,
A alma se satisfaz disso...
Do homem, do que há nele e não existe
De recheio e do nada.
No entanto o homem não é o todo
vazio,
Que ocupa a vida, uma essência
E a falta, outra hóspede que o
habita.
A descoberta da figura da vida, do
mundo e do vazio.
O homem é completo de vida, nada,
vazio,
Vivíveis, fáceis convivas,
E quando dorme, o homem e ocupa dos
seus sonhos,
Sonhos que permeiam a vida, o homem,
o vazio, o nada.
E se comunica, causando o caos, a
tristeza,
O homem alegra-se com a vida,
acordado.
Com o vazio entronizando,
Com o nada acostumado,
Com a vida que lhe deixa atormentado |
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DE DIA
Tarde demais para acostumar-me com a sombra.
Eu que venho por todo o dia tangendo a claridade
Vendo brotarem flores novas nos escombros,
Cativa-me o medo da noite agora, e fico só,
Desterrado do teu regaço, posto solto,
Como um menino que larga o peito, e agarra o mundo.
Não tinha planos para as estações,
Em todas plantei, e depois desenterrei todas as sementes,
Foi uma brincadeira de menino, uma experiência de nascer.
E morri, quando os teus olhos se fecharam,
Não te via mais, em vez de tu não me enxergar.
Cedo demais para outra coleta entre os que já deram
Ninguém saiu, são os mesmos rostos de ainda pouco,
E tudo o que eu tinha entreguei em troco,
Ao sol, que reneguei, ao dia que decepei,
Da noite que fez dos meus quereres tardios.
Agora é o mesmo tempo de todo o tempo,
Nada serviu a aplacar em mim a réstia
Que persuadiu-me e dormi com ela.
Veio pela janela, insistente o dia, repelido,
E se insinuava como uma amante afogada
Em amor querendo dar-se, alforriada.
Agora que sabes que não me atormentam as nuances do dia,
O tempo, comigo tem sido um elástico tenso,
Que ora está aqui, mostrando-me os taciturnos gestos,
Ora se afugenta, talvez medo de mim, talvez medo dele.
E só Deus saberá contar as horas em que me larguei daqui,
Saí sorrateiro pela lateral do terreiro e nunca mais me vi.
Vi uma sombra calcada sob meus pés, derrotada,
E nada de mim, nem do dia, nem de nada mais restava
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AI MEUS OLHOS, AI LUZ, AI CORAÇÃO
Não necessitamos só de olhos
De uma luz que se nos mostre
E mostre os campos floridos
Para enxergarmos com essa lua,
As flores de eterna espera e beleza,
Precisamos também não pensar
Em outras coisas que não sejam
Rosas e luz
Amor e paz
Ter a cabeça como um cárcere aberto,
Liberto todos os infratores,
A angústia, os pensamentos vãos,
Que vão da filosofia aos pensamentos
feitos.
Do orgulho ao desapego das coisas,
Do amor ao sentimento de não ser
amado.
Não necessitamos só de olhos
E de um coração ermo
Para deduzirmos a beleza das rosas,
Necessitamos do mesmo coração,
teimoso,
Inquieto e procurador,
Que ajude os olhos e a luz
Esperançoso,
E que se mova no tempo
Como um caçador dos fugitivos. |
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EU, LA MANCHA
Amar um gesto que tudo ébrio,
Permite-se no vento afundar,
E dar-se mais, ao que tiver na
espera.
A pedra o risco de voltar jamais.
Amar perdido de amor tomado,
Puxado a vil monumento agastado,
A voz já rouca de implorar que deixem
Seus olhos verem se lhe cabe a
cabeça,
A altura a forca que se vão largar.
Solto o destino, solta a sorte,
Larga-se sozinho espreitando a morte,
Que antes de abraçá-lo se compadece e
chora,
Ainda não é hora, o amor vai se
abrasar.
Amar redondo, o mundo circundar,
Cadê Dulcinéia, fugiram meus lugares,
Onde fico, dormem meus cansaços,
E a minha fadiga de me levantar.
Acorda-me amor, amor com beijos,
Retira a infante veste, me encouraço,
A espada pesa, sinto que a loucura,
Deixar-me louco, por não tem
encontrar.
Campos, trigais, moinhos ao vento,
Vê-se distante, mais longe, te amo,
Mostra-me antes, dos caminhos limpos,
O lume longe do olhar da bela.
Ó formosura, amar encarnado,
Amor que sinto, corpo atormentado,
Mas louco não sou eu,
São os que não me vêem
Como um ambicioso por amar demais.
Quero-te inteira, em carne e
sentimentos,
Quero-te sentada, posta à minha
frente,
Como uma deusa ainda inacabada,
Que o cinzel que aponto vai te
ressuscitar. |
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