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Patrícia Barbalho |
AA MULETAS
Quando começou tudo, eu queria apenas
ser calma. Não como uma outra pessoa, mas assim como eu, calma,
simplesmente. É que eu tinha percebido que eu vivia para os outros,
então, decidi me livrar dos ‘outros’. Só que os outros era minha
família! O que fazer então? As bifurcações do caminho... Alguma
coisa, não sei o quê, me falou: “- Vai embora.” E eu fui.
Fui escalando a estrada, que tinha
pedras enormes!! E depois menores e menores e enfim aprendi a andar
com muletas!
Num desses passos apoiados, encontrei um rapaz observador. Ele disse
que queria ser meu marido! Foi estranho. Ele também seria louco,
assim como eu?
De tanto bater na porta, deixei-o
entrar. Mas entrar pela metade, assim como ninguém merece amar. E
ele me falou da simplicidade do mundo! Trouxe em suas mãos o
presente que eu vim buscar. O ‘eu calma’! Ele trouxe, sim. Mas, mas
eu não tinha mãos para pegar. Elas estavam presas às muletas, onde
eu tinha que me apoiar.
É que eu não queria cair!!!
E depois entender que tudo são
escolhas. As bifurcações do caminho... E ainda depois, entender que
eu não sei escolher.
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DOZE CANIVETES
Se fosse uma palavra, seria concreto.
Um subterrâneo com poucas cores. Com passos rápidos. Ratos. Pessoas
distantes. Elas estavam um pouco pensamento e um pouco onde ainda
iriam chegar. Mas aquele momento de passos rápidos no concreto? Era
cuspido? Um virar de páginas, um passar de dias. Uma coroação de
névoa embaçando as vidas. Vidas turvas e, e não sei... Era um lugar
novo, eu nunca tinha ido a São Paulo, eu nunca tinha andado de
metrô.
Doze andares para baixo, luz e ninguém na rua. Doze milhões de
pessoas se escondiam, não ali. Estava escuro. A cidade lá embaixo
parece morta. Um homem dormia como um menino, assim como ele dorme,
para mim. E sei lá quantas mulheres estavam presas ao lado, num
presídio no centro da cidade! O céu cor púrpura! “A cor púrpura.”
Meio vermelho, meio preto... meio névoa... Uma coroação de névoa
embaçando a cidade. Um embaçamento. Mas, metais dourados cobriam
móveis. Estilo e piso de granito. Piso de granito. Ninguém na rua.
Ninguém na rua. Eu olhava o homem e chorava, eu estava num passado
que não mais existia. Doze meses se passaram, eu havia saído de
casa. E aquele homem desconhecido ainda dormia como um menino.
Pela manhã, como por trás de um véu branco, as ruínas se fizeram
formas, estavam lá! Lá embaixo, pequeno, concreto, com poucas cores.
E eu vi o Carandiru! Deus, era verdade! O Carandiru! Estava
desativado, mas era real. Mais tarde quando passamos por ele no
metrô, eu via os braços para fora das janelas, as camisetas
penduradas. Eu via as poucas cores. Os homens que já não estavam lá.
E era real.
Saímos para andar pela cidade, entramos numa igreja antiga, linda!
Ali os passos desaceleravam, silenciavam. E existiam. E eu consegui
respirar. Mas nas ruas, lojas, um passo através de uma porta e tudo
volta a correr. E de tudo. Espíritos afogados em corpos. Afogados?
As pessoas que jogam o jogo. As pessoas que se submetem. É que foi
aprendido. E eu aprendi também. O que é diferente é julgado. Eles,
que não sou eu. Eles e uma barreira de concreto, como os homens
gostam de construir. Eu aprendi também. Vi mendigos e meninos de
rua. O problema é que eu já havia absorvido as imposições de
formular previamente os personagens, embalados, prontos, e eles eram
negros e pobres. E eu, escrava das aparências. Que sempre enganam.
Quem? A quem elas enganam? Elas, aparências e elas, imposições. Eu
estava numa cidade nova para mim, com a carga dos rótulos. Eu
julguei tudo, todos. Meus olhos negavam. Foi assim nos primeiros
anos. Todos os lugares eram julgados, até ali, eram apenas doze
meses, doze esperas, doze dores? Doze? E eu fui rever o homem que
agora morava naquela cidade.
Entramos numa loja de pesca. Um rapaz negro e mal vestido olhava os
canivetes. Meus olhos paravam nele. Em quê aquele rapaz iria
transformar o canivete? Eu havia aprendido e sabia. É fácil saber
sem pensar, como esponja. Tudo já foi dito. Por isso eu tinha saído
de casa, para descobrir por mim o que já foi dito. Dito errado. E
depois aprender que até o errado não existia. Apenas as diferenças.
As diferenças.
E eu também olhava os canivetes. Eu podia! Através de mim ele não
machucaria. Havia todos os canivetes, havia tudo e com bons preços!
Escolhi um canivete, com cabo emborrachado azul. Muito bonito.
Perguntei ao homem ao meu lado se ele era bom. Havia aprendido em
casa que ele sabia mais do que eu em relação a essas coisas, gostava
de pescar, caçar e de facas. Então estendi o canivete para ele, o
segurou me dizendo para ter cuidado. Olho-o calmamente, estudou a
lâmina, o cabo, abriu, fechou, abriu novamente e passou a mão na
lâmina. Cortou-se! O sangue pintou o balcão. Eu assustada chamei a
moça para pegar algo que o ajudasse a limpar o sangue. Ela riu e
disse que não tinha nada. Eu indignada. Ela não tinha nada? Eu
assustada. Não existia o através, era o que era?
Sangue do meu irmão no balcão. Comprei o canivete.
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A FORMA DA
LIBERDADE
Era no meio do ar. Pés soltos na
areia.
Enfim alguém que possuísse liberdade. Possuísse!!? Liberdade é não
possuir.
Sair de um avião e o mundo se transforma. Tudo foi, ele foi junto, e
existe, não esperando, uma vida que parece estacionada, mas que está
ciclando como a dele!
A cena é sempre a mesma: abre-se uma porta, procura-se um lugar para
soltar as malas que um desconhecido trouxe. Soltas, o olhar para o
todo, depois é fechar a porta que o isola do resto do mundo. A cela
foi fechada. Um quarto de hotel. Mudo. Cheio de vazio. Um quarto de
ninguém. Feito especialmente para ninguém. E ele está lá, feito para
esse quarto. Existindo junto com ele, resistindo junto com ele. Não
é difícil perceber que esse quarto não o pode acolher, e o quê
poderia? Mas, há uma saída!? Uma outra porta leva... a uma sacada!
Ficar longamente percebendo iguais, todas as cidades, cheias de
telhados e luzes. E distâncias. Então um banho quente e uma boa
noite de sono num colchão perfeito! É tudo o que se precisa quando
se está longe de casa e cheio de cansaço. Tudo? Depois, acordar
pensando para que lado da cama tenha que levantar. Para onde é o
banheiro mesmo? Onde estou mesmo?
Está em duas vidas. Um mundo que existe alternativo. Um mundo que
existe paralelo. E as vidas vão. Um dia ele está aqui, e não no
outro? Lugares e pessoas que estão, ao mesmo tempo, vivendo. Assim
não enjoaria de viver. De viver a mesma vida? Um guarda-roupa mudo,
branco. Ele abre a gaveta e vê o tempo correndo lá também. Mas ele
está longe e não percebe. Só ouve, e quando chega em casa, outra
gaveta, as pessoas estão lá, algumas, de uma forma diferente, as
mesmas pessoas. Engavetadas? Os departamentos separados. Criados e
alimentados como quartos de uma casa grande. Um mundo em cada
ambiente.
Quando cortaram os seus grilhões, ele não conseguia andar, os seus
pés estavam leves demais, ele só conseguia cair. Havia desaprendido.
Como se não soubesse nadar, ser empurrado em águas profundas. Braços
e pernas a mover-se com rapidez, com desespero, em busca de algo
para se apoiar. Segurança. Um bebê que quer braços, amor. Fazer
parte de algo. Liberdade é não se sentir fazendo parte de nada? Não
se encontrar na própria família. Não se encontrar em lugar nenhum.
Viajando e procurando. Ter nenhum lugar. Ter vários lugares, numa
mesma vida. Ter várias vidas e ser a mesma pessoa. Ser livre chega a
doer, porque não se diz como agir. Não existe manual. Não existe
forma, limites. Não existe um caminho, existe um campo aberto em
360°, que é caminho para qualquer direção. Liberdade é não ter
direção? É ter todas as direções? Todas que não chegam a ser uma.
Sem direção! Se ele não tem lugar algum, não pode perder nenhum
lugar. Liberdade é não possuir. Ou... não possuir tão completamente
que se pode ter sem risco de perder, distanciamento. E morar num só
lugar!? Não seria apenas ter escolhas?... e escolher de dentro para
fora. Como florescer, não esculpir.
Ele sabia que gostava de voltar. E também que precisava ir
novamente. E sumia! Com a desculpa absoluta do ganha pão, o submeter
dos homens? Parecia-me um saturamento, ou fuga, uma qualquer razão
invisível que alimentava a sua... liberdade?
Mas para ele, estar aqui é muito bom. É sentir parte? É ser família?
Me ocorre que lá ele também sente isso, quando vai. Engraçado... nos
últimos dias ele só queria ir embora. Agora está tudo bem.
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A DANÇA DE
NÓRIA
Se fosse uma palavra, seria
constância.
A constância de um cheiro, um enjôo perene. E uma fumaça preta
borbulhando de um tubo quente. E se dissipando, mergulhando em um
espaço que neutraliza a cor. Faz sumir.
Faz sumir. A diluição faz sumir. A transformação faz sumir.
Num corredor longo, eles vão. E chegam a me matar. Num corredor
estreito, passos para trás, um adiamento do inevitável, e depois
vão. Um após outro. Eles olham e mesmo assim vão. Será que eu também
estou indo com eles? Temo a interferência que eles me impõem e que
eu não vejo. Ela poderá existir, crescer e sumir. Sumir como a
fumaça preta dissipada do tubo quente. A dor que eles me regam, me
nutre de dor, ou eu posso transformá-la? Como posso fazer sumir?
Num corredor branco, pingos vermelhos e orgânicos desenham a mais
bela imagem abstrata e forte. Um líquido vermelho de todas as
tonalidades, linhas paralelas e verticais, chuva de dor e perdão.
Seria som de cachoeira, se não fosse o som das máquinas o esmagando.
Seria cachoeira! Se não fosse sangue caindo de gargantas degoladas e
inocentes. Ganchos de metal ecoantes carregavam cegos os corpos
assassinados dos bois. Dos bois de mugidos ecoantes que vão cegos
carregados pelos ganchos de metal assassinados. Corpos pendurados
chovendo sangue. Corpos que balançam lentos numa dança fria e bruta.
Uma dança de morte.
Uma cortina de corpos, separando. Uma cortina de morte, separando.
Eu queria dançarinos e um palhaço sem lágrima. Um violino afiado que
preso à mão cortasse a carne, até chegar ao humano. Eu queria a
ternura dos olhos vivos, mas não poderia assustá-la com o minha dor.
Sinto pular dos meus olhos a dor mais desonesta, uma piedade
vermelha e brilhante como a imagem abstrata e forte, linda! e que
não cabe. Também não cabe em quase nenhuma vida. Assim como essa
nova bondade não está cabendo na minha.
Bom, preciso começar a desgostar o choro, então explicarei o que é a
nória: é uma roda de metal impulsionada por um motor, um círculo
temporariamente constante, mas que pára quando tem algum problema. É
o motor, invenção humana, que leva as carcaças para serem
desmontadas pelas facas dos homens que trabalham para viver. A nória
é os ciclos e ciclos amém. Constância. Ou algemas, correntezas,
pneus que levam. Série. Seria a vida.
Todos os dias, quando o Sol está nascendo, eles estão indo... Cheiro
de fezes e sangue queimado. E as máquinas esmagando o silêncio. A
nória circulando... Movimentos abruptos, assustados. A nória
rodando. As armas cortando a carne. As pessoas cortando a carne. O
animal se move. Dor? A nória rodando. A faca cortando. A nória
cortando. Os passos abruptos. As portas abrindo e fechando. Abrindo
para sempre. Abrindo a pele, a carne, a alma das pessoas. A nória
abre a carne das pessoas até o fim. Até o fim. O barulho alto anula
o barulho. Você está sozinho com a faca cortando. Cortando a dor do
animal, a vida da nória. Cortando os próximos dias, separando dos
anteriores, como transformação. A nória rodando, tão lenta quanto a
vida que some na natureza. A natureza da nória é rodar, da faca é
cortar, do boi é andar, de mim é sentir. De mim? A natureza é a
mesma. A natureza da nória que anda, que corta, que sente. Que não
sente a dor que ele sente. A nória é o processo. Do homem e meu. O
meu processo é vomitar aqui esse sangue. Vendo e vivendo com a faca
cortando. Como é bonito o vermelho! Ele manchou a alma da nória. A
minha e a da faca. Ele roubou a alma do boi. A natureza. A natureza
do boi pode ser roubada? A natureza que se funde e se separa,
diluída no vermelho brilhante da nória. A mão presa à faca, eu presa
ao sangue. O boi solto do sangue. Mãos velhas e novas. Passos por
vir e por ir. Os do boi vêm. Eles vêm com movimentos abruptos, olhos
de amêndoa arregalados. Verão o quê? Se o sangue os libertou com a
mesma ferocidade que me prende aqui. Vendo e andando e vomitando a
alforria do boi. O vermelho do vestido da criança. O vermelho é meio
preto, meio vinho, meio vermelho brilhante. E com uma espuma cor de
goiaba. É feminino como a faca não é. Como ela liberta as pessoas do
corpo. Liberta da natureza. A natureza que continua.
A nória parou, minha mão, não. Meus passos também não. Não parou o
vermelho do sangue, meio buquê de flores! Não parou o corpo do boi,
já sem o boi, que se mexia. A nória parou, todos foram embora, os
corpos ficaram, os bois sem pele e sem sangue. E o sangue também
ficou. Eles vão embora de uma outra forma. E todos vão embora da
mesma forma, depois. Só depois, guinchados por sua própria nória. A
dissipação faz sumir, a transformação faz sumir. Uma parte deles
está na faca, no corte, no sangue. A outra na nória e na correnteza,
a outra na cor vermelha, na cor humana. E ainda outra, no que se
pode fazer.
A mão abraça a frieza cúmplice da faca, que nos faz presos e corta o
bife do almoço. Este é o preço daquela morte? O sacrifício do boi
para servir. A faca corta lenta, obediente. A faca presa à mão. As
pessoas... se alimentam da dor daquelas mortes. Um país agrário. Um
mundo de presas. E um sentimento que não cabe nele. Aquela morte é o
preço desta carne? Esta dor é o preço que pago pelo alimento. Uma
culpa tímida. A piedade vermelha me guinchando a dor, me levando
cega na constância ecoante. Até onde posso ir inteira? Os corpos
guinchados são esquartejados e viram bifes. Até onde posso ir
inteira?
Inteira é uma palavra sem limites. Inteira seria nua, seria raiz?
Seria tudo? A minha mudez, a mudez dos animais, a nudez dos animais,
a seriedade, arrasando minha plumagem má. De um lado está o cálculo
humano, do outro a ternura dos olhos inocentes, mas não se começa a
descrever um animal pelo olho. Por que ir às janelas se há paredes?
Ir dentro? Quem sabe se deparar com um eco negro e assustador? Quero
paredes e seriedade. A mudez, a nudez e minha visão humana
pintando-os com ternura. Mas, por que ir no não dito se temos o
dito? Uma cortina de pele, separando. Há feridas. Os animais sem
pele falam com suas feridas do corpo. Hematomas. Abrir um presente e
encontrar surpreso, o difícil inevitável.
Descortinar a dor do mundo. E se encontrar.
E se tirássemos a pele dos homens?
Ganchos de metal ecoantes carregavam cegos os corpos assassinados
dos homens, levados pelos bois. Escravizados pelos bois. Boi leite,
boi pão, boi dinheiro, boi poder. Dos homens de silêncio ecoante que
vão cegos carregados pelos ganchos de metal inventados pelos
próprios homens. Criam o veneno para depois bebê-lo. Guinchados na
correnteza cega da nória. A nória pára, eles param. Ela parada, vai
lentamente enterrando o tempo. Eles esperam em silêncio ecoante,
levados à morte mais cedo. Porque o tempo também morreu. A linha dos
bois, a série dos homens. Fantoches iguais para a mesma
apresentação. Vestidos em série, como uma corrente. Se mandar parar,
eles param, se mandar seguir, eles seguem. “Vida de gado.”
Parasitados pela nória que suga o sangue que não cai do boi. O
sangue em série. Assassinatos em série. Série é uma fórmula humana.
Como a anorexia desfilante da moda, que leva mulheres guinchadas
pela vaidade. Boi poder, boi beleza, boi sucesso. Padronizações.
Descortinar a dor do homem. Escolha é luxo. Assim como “o pão nosso
de cada dia nos dai hoje”. Uns por não conseguirem o pão, outros por
não conseguirem Deus. E o encontrar... Com as mãos presas às facas.
Encontrar a ternura e o amor presos em cascas de carrascos. Os
carrascos em cantos de paredes, como presa, como predador. Ensina-me
o que é ser humano. Ensina-me sobre as pessoas guinchadas à série, à
constância cega da nória. Boi máquina. Homem máquina. Sobre as mãos
presas às facas que cortavam a alma. A alma da nória, do processo. A
alma humana. Raiva indomada, que toma e grita. Febre de raiz, gotas
de sangue pisado, sangue resfriado de alma vazia.
Vazia é uma palavra sem limites. Vazia seria nua, seria raiz? Seria
tudo?
Lamentações. E beber de um líquido que deveria sair do corpo. Beber
lágrimas alheias para multiplicar a dor até atingir um estágio que a
aceite e a repare. Podar e cortar a dor. Plantar o fruto tirado da
árvore da dor. Da grande árvore formada por muitas vidas, famílias
inteiras que vivem da dor. Plantar uma solução, porque os homens
deveriam ser práticos e resolver. Por que dor? “O sangue derramado
por todos os homens para a remoção dos pecados.” O sangue bebido por
todos os homens para a invenção da paz. Lágrimas alheias que somam e
desembocam em transformação e paz. Qual a distância entre os dois
extremos? Dor e paz... É tão singular quanto cada um. Que me ensinem
atalhos ou formas mais eficazes de aprender, porque há lamentações.
Quando se tem acesso à absurdidade da vida, a perplexidade corta, a
ação é esvaziada e uma sensação de morte coroa o não ser. O ser
humano com olhos de dor. Quando se vive a absurdidade da vida, para
a emoção, a razão que se experimenta é velha e calculada. É exata e
estéril. É uma invenção para ninguém. Depois chorar, acordar para a
experiência de viver sem vida? E acordar. Em choro ecoante. E ver a
faca cortar e nada fazer. Aceitação. Resignação? Aceitação e até as
reações são lembranças de viver. E me perco e me procuro em branco.
Aceitação. São muitos momentos, “movimentos de uma mesma dança.” A
dança, a suavidade de uma música branda, de uma mão leve, a força e
o olhar envolvidos num ritmo que impõem e liberta. Depois a mesma
mão presa à faca, matando, morrendo.
Afoguei-me no sangue daquelas mortes. Hipnotizei-me com a dança
daqueles corpos. Fui guinchada na série. Mas... Desvestir-se de
vítima. E ser, simplesmente. Sinto os olhos, o corpo vermelho. Sinto
meu corpo de fome, frio e cansaço. Sinto meu coração esmagado por
tudo. Quero de volta. Quero não querer de volta. Talvez aí esteja a
dor. A não aceitação. Amar-se, como...? meu Deus! Onde me esconderam
o viver? Onde esconderam o viver do homem? Levados pela série, eles
se desencontraram, se separaram da vida. A vida como abraço de
despedida ou encontro. Apertar contra si. Querer. Mas um momento da
dança. Um golpe de faca. A inocência criativa e negra.
A nossa humanidade.
Descortinar a delicadeza, a suavidade por trás da amargura rude e
violenta. Descortinar o ser humano. No meio daquelas mortes, nascer
para si, para a vida. Descobrir-se do mundo. Ser o mundo e ir se
encontrando. Descortinar a crueldade, a covardia, e por baixo da
crosta do mundo, está lá, doce e sereno, terno como uma mãe. O
humano. Que quer cuidar. O mundo onde ele é branco, a mãe do sangue.
A mãe do ser. O ser. Tu, mãe do sangue. Nós, a mãe e o sangue. O
próprio ser.
Quando se tem acesso à absurdidade da simplicidade, essa sim é a
mais perplexante, impõe diluição, e liberta. Entender a dor e a cor,
e assistir o homem fazer todas as facas de dois gumes. Ver se
dissolver. A diluição faz sumir. A transformação faz sumir. Para
depois emergir do solo, fértil e forte. Para vivenciar a
simplicidade...
Não sei o que vem depois. Quero um esclarecimento do mundo. Quero
unir cada carne libertada, cada gota vermelha e formar a ternura dos
olhos inocentes. Quero unir cada palavra, cada sentimento e formar a
história dos olhos, do processo, do vermelho e da dessecação da dor.
Da diluição, da libertação da dor, da cachoeira vermelha e abstrata,
abrupta. Mas não quero minha inocência de volta. Para que serve a
dor? A mutilação é construção? Pedaços que se arranjam e rearranjam,
que se transformam, que nos transformam. Da morte à vida... Se eu
pudesse organizar as minhas idéias... Poderia entender o porquê das
cachoeiras e pétalas, dos corpos e sangue. Entender o vermelho e o
som. A faca e a dança. E andando descalça sobre as águas e as
lanças, ser. Para poder descobrir. Para poder libertar. Ajoelhai em
nome... de quê? Não quero frases feitas. Quero apenas algumas
frases. Frases de qualquer cor ou cheiro. Quero menos que ontem.
Apenas a respiração e assim estou, sou. Não quero. Para mim que
estou na primeira absurdidade, só posso sofrer a dor de uma
inocência. E um sono infantil. Se eu pudesse organizar as minhas
idéias...
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VERDADES
Havia um grande vale num lugar
desconhecido, onde apenas quatro elementos existiam. Ar, terra, água
e fogo. Além destes, nada mais. Nenhuma lei que pudesse permitir a
união deles ou não. Nem o próprio nada.
O vale era muito amplo, como o que não tem fim, e não parecia fazer
parte de nenhuma área, era como um próprio planeta. Lá, a mesma
natureza não parecia completa, pois só haviam esses elementos. E
eles eram estéreis, não formariam. O vale era constantemente imóvel
e imutável, como um quadro vive.
O fogo não tinha o que queimar. Não tendo então o que destruir, não
construía.
A água não poderia molhar, e assim como o ar, não se movia. E a
terra era intocável. Tudo submerso numa magia única, como uma
profecia.
O vale existia dormindo.
Um dia, um poderoso rei sonhou com esse vale, e pensou que
precisaria algo acontecer para dar-lhe vida. Então enviou um servo
para que lhe entregasse quatro presentes. Com isso não seria apenas
um rei, tornaria-se um Deus nesse lugar desconhecido.
E disse:
- Servo. Vá e entregue a esse vale desconhecido estes quatro
presentes. Dize-lhe que foi teu rei quem os enviou para que este
vale adquira vida.
O servo foi.
Depois de anos de busca, perdendo-se por vários vales que tentavam
confundi-lo, o servo encontrou o verdadeiro vale e ali entregou os
presentes de seu rei dizendo:
- Eu vim em nome de meu rei que vos enviou esses presentes. - E
mostrou o ar, a terra, o fogo e a água.
Os elementos o olharam com surpresa. No vale nada mais existia além
deles e eles foram presenteados com eles mesmos!
Mas o servo entregou a água para o fogo, que fez da água ar. Este ar
encontrou-se com o outro ar já existente, mas imóvel, e juntos
fizeram o vento. O vento açoitou o calor do fogo e fez a chuva. A
chuva fez a terra fértil... e todos juntos fizeram uma grande
tempestade.
Átomos se dispersaram construindo novos elementos e estes formaram
seres e estes formaram vida e a vida formou a morte, esta formou
instintos, estes formaram desejos, que formaram sentimentos, que
fundiram-se formando o amor, que formou a ternura..., além do ódio,
e no meio desse turbilhão de sensações e transformações nasceu a
sabedoria criando a humildade, e apesar de suas existências não
conseguiram impedir o surgimento da inteligência, que formou a
mentira... E um “sem fim” de acontecimentos revelaram-se vivos.
Então criou-se! Matando a antiga e constante imobilidade imutável do
vale.
Foi quando a saudade olhou para o servo que estava estático perante
a grande transformação que ocorreu quase que ao mesmo tempo e lhe
disse:
- Volta para teu rei e dize-lhe que ele matou o vale.
Apesar de a mentira já ter sido inventada por lá, esta não estava
presente nas palavras da saudade.
O servo então voltou até seu rei e lhe trouxe a mensagem:
- Oh grande rei, vossa majestade matou o vale.
- Quem és tu para desafiar-me?
- Perdão meu rei, mas não sou eu quem te desfia. Apenas trago uma
mensagem.
- O vale estava morto. Eu vos presenteei com a vida. - Diz o
poderoso rei inconformado.
O servo ajoelhou-se perante seu rei e lhe implorou entendimento,
pois aquele acontecimento havia-lhe esvaziado de sua verdade. Ele
não conseguia compreender duas verdades.
- Quem és tu para querer compreenderes algo?! Volta ao vale ingrato
e como vingança pela falta de agradecimento, trás de volta meus
presentes. Eles não merecem a vida que lhes dei.
- Mas meu rei, eles já possuíam seus presentes.
- Vá. - Ordenou o rei.
O servo voltou ao vale, que já era outro ainda mais desconhecido e
tentou roubar os presentes do rei, mas não conseguia mais distinguir
o que fora dado pelo rei e o que já existia, além da completa
desfiguração. Então, como a ordem de seu rei era vingar-se, matando
o vale, ou dando vida?, já não conseguia entender... O servo
roubou-lhes o tempo. E voltando até seu rei disse:
- Oh, grande rei, foi feita a vossa vontade, o vale voltou a ser
morto.
O poderoso rei fez uma grande festa para ressaltar o seu poder,
celebrando a morte do vale.
À noite quando dormiu, sonhou com um lugar tão desconhecido quanto
imóvel e então pensou que desta vez seria à hora de tornar-se um
Deus.
Ao despertar, o poderoso rei chamou seu servo e lhe disse:
- Vá a esse lugar desconhecido de minha sabedoria e lhe entregue
este presente.
O servo foi até esse lugar desconhecido ao rei e disse:
- Eu vim em nome de meu rei e vos trago um presente. - E
entregou-lhes o tempo.
Ao recomeçar a mover-se, a sabedoria daquele lugar desconhecido ao
rei falou:
- Jamais teu rei poderá nos devolver o que nos roubou.
E o servo sabendo apenas que o seu rei havia-lhe mandado presentes,
ajoelhou-se perante a sabedoria daquele lugar agora ainda mais
desconhecido e lhe implorou entendimento. Porque aqueles
acontecimentos esvaziaram-no de sua verdade. Ele não conseguia
compreender duas verdades.
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