Priscila Lopes
Autobiografia
Nascida em Brasília-DF, em 1983,
reside desde criança em Florianópolis-SC, cidade que a
inspirou a escrever os primeiros versos. Filha dos
jornalistas Sérgio Lopes e Rita de Cássia Costa, é formada
em Relações Internacionais e estuda Letras - Língua
Francesa. Em 2007, foi publicado o primeiro livro com três
de seus contos em uma seletiva organizada pela Editora
DeLeon: Algumas Ficções. Assina uma coluna semanal no site
do fotógrafo Marco Cezar (www.marcocezar.com.br) com a
personagem Taty Paty Matias.
Faz parte do blog literário
Sindicato dos Escritores Baratos (http://sindicatodosescritoresbaratos.blogspot.com/)
e eventualmente também publica
seus textos no Recanto das Letras (http://recantodasletras.uol.com.br/autores/prilopes).
O amor acabou
Um dia você vai acordar, vai abrir
esses olhos de lagoa azul e perceber que uma coisa mudou. E essa
coisa mudando, parece mudar todo o resto. Um dia você vai acordar e
perceber que aquela pessoa que hoje você ama, não está mais ao seu
lado. E os olhos de lagoa azul talvez se tornem olhos de cascata. E
muito provavelmente você vai querer acreditar que é um pesadelo, mas
na verdade, na mais intrínseca e cruel verdade, o sonho é que
acabou. A pessoa amada quem sabe comunique por bilhete. As mais
sensíveis se esforçam em conversar e lhe fazer carinhos. Há as que
nem telefonam. Somem: pronto, o amor acabou! Mas o fato é que você
vai acordar sentindo-se um saco de lixo sendo chutado na calçada – e
se espalhando em tripas pelo chão, a nítida sensação de que todos
podem ver a sua dor. Bobagem! Ninguém pode. Só se você chorar o
tempo todo. Mas você não vai chorar o tempo todo, né, neném? Pegaram
seu brinquedo favorito e agora não tem mamãe para ir até lá e fazer
o outro devolver. Então, não adianta chorar compulsivamente durante
o resto da vida porque não há mesmo nada que traga de volta o ser
amado – nem simpatia nem "trabalhinho" se o amor tiver mesmo
acabado. E não se surpreenda se em uma semana souber que ela está de
malas prontas para a Cidade Maravilhosa. Aliás, não se surpreenda
com nada. Simplesmente não se surpreenda mais. Não se surpreenda
mesmo. Definitivamente, nada de surpresas. Ela vai ter uma recaída e
te procurar quando você achar que está superando – mas no dia
seguinte ela vai acordar e pensar que foi um erro tremendo; ela vai
desfilar com roupas novas, perfume novo e um ar de "eu estou mudada"
- e você vai se contorcer de raiva se não conseguir apontar um
defeito novo; ela vai querer ficar em forma, se interessar por artes
ou literatura, se apaixonar por uma banda que você mal conhece, tudo
para mostrar que se tornou alguém melhor por não estar mais com você
– que, por sua vez, alegará que ela está anoréxica, intelectualóide
e influenciável. Ela vai agir de um modo totalmente inesperado
quando por acaso se encontrarem – e você não vai conseguir disfarçar
o embaraço ou o desapontamento; ela vai mudar a senha do banco e do
e-mail, os móveis de lugar, o segredo das chaves do apartamento; ela
vai fazer uma coisa da qual sempre teve medo – e você poderá se
sentir menos especial por não compartilhar dessa nova experiência;
ela vai fingir ter esquecido de algum momento de vocês: "Ah, sim, em
Laguna. Nossa, faz tempo! Como lembrou disso?" – por mais idiota que
você se sinta nessa hora, entenda, é pura provocação; ela vai
telefonar no dia do seu aniversário e te fazer recordar que no
último ano passaram a data comemorando juntos – e talvez, por alguns
instantes, tudo à sua volta perca o sabor; ela poderá comentar com
um conhecido seu que nunca o amou ou, quem sabe, se pegue
distraidamente te chamando de "amor"; ela vai dizer "esse foi o
melhor final de semana da minha vida" e você será automaticamente
remetido ao até então "melhor final de semana da vida de vocês"; ela
vai se afastar, e muito provavelmente você não irá reconhecê-la nos
gestos ou nos gostos, nos hábitos ou nos rostos; se ela não se
afastar, naturalmente irá te criticar para a sua nova namorada ou
concordar quando ela disser que você é muito distraído – "ah,
realmente, ele não é atencioso"; ela vai tocar seu braço "sem
querer" e a sensação que se tem é tão estranha quanto indizível; ela
vai te pedir ajuda; ela vai te oferecer um colo; ela vai te
aborrecer um dia; ela vai te perdoar de novo; ela vai contar um
episódio divertido de vocês; ela vai esquecer de um evento triste;
ela vai fazer uma versão diferente da sua para o término; ela vai
admitir erros e defeitos que atrapalharam o relacionamento; ela vai
dizer que a culpa foi sua; ela vai chorar bastante; ela vai rir pra
valer; ela vai beijar muito, dançar durante noites, abraçar muitas
pessoas, ela vai amar de novo.
Ou não. Um dia você vai acordar, vai abrir esses olhos de lagoa azul
e perceber que a pessoa que hoje está ao seu lado, não é mais a
pessoa que você quer ter ao seu lado.
E aí a história vai ser bem diferente...
Varandas
Pela varanda
Vejo o Sol
O dia-a-dia
Vejo promessas
De um amanhecer
Com alegria
Vejo meus sonhos
Na varanda
Contemplativos
Vejo teus olhos
Que tanto têm
A ver comigo
Pela varanda
Eu me perco
Em devaneios
Rasgo cadernos
Corto meus pulsos
Parto-me ao meio
Na varanda
Espalhado está teu riso
Teu canto
Teu pranto
A mostrar que te preciso
Pela varanda
Eu recordo
O que não fui
E o que serei
Se não sair
Dessa varanda
Se não declarar
Meu sentimento
Sufocado
Sinto que sou como o vento
Passando na varanda
Sem nunca ser notado
Cri-a-tiva
Quando eu era criança,
E olhava para o topo das árvores,
Eu não sabia o que era o passarinho.
Bastava observar
E eu era um passarinho.
Não senti a
Morte chegar
Talvez não tenha batido à porta
Talvez nem houvesse porta
Talvez até, fechada a porta
Pulasse a janela
Determinada
E lentamente subisse as escadas
Não me despiu
Não me encarou
Não me fez mover um palmo
Não senti a Morte chegar.
Apagão
Esse tédio de ficar sem luz
me leva a escrever
coisas tão escuras!
Acendo as idéias para ver
se consigo continuar minha leitura.
Canção de mais
nada (a Ruy Espinheira Filho)
Vamos beber qualquer coisa
Sim! Beberemos as lágrimas
as Andradas, as praças
XV, XIX, Duque de Caxias
os senhores jogando, a vida
nos pés das crianças que correm,
o caos, os cães de estimação
beberemos as leis, os regulamentos
(todas as praças da República)
a Constituição
Vamos beber qualquer coisa
humana ou não, simplesmente
beber dessa juventude antiga
os pontos de ônibus, os bancos
do metrô; os teleféricos, as calçadas
os passos, os pássaros vamos beber
as horas e as senhoras
os meses do ano, os dias santos
Vamos beber qualquer coisa
de tudo um pouco, e tanto
Que a fonte secou.
Simbiose
Descobri que há
nessa linha (nesta linha
também) da vida que a gente constrói todo dia
- além das nossas duas, há outra que nasce
dessa união - os versos capazes de
compor os poemas mais intensos
e, descobri também, só depende de nós.
Réquiem por uma
Palavra
Estava no ônibus, sentada sob um sol
brando de Segunda-feira, a reparar nas pessoas envoltas em seu
próprio amanhecer, no clima propiciado pelos seus mp3 players,
I-pods - alguns ainda apegados ao discman, mas não importa quais
eram os instrumentos emanadores de música. O fato é que eu entendi
tudo o que, até então, passava diante dos meus olhos sem me atentar.
É que a música dá cenário ao nosso pensar. Mas pensar em nós mesmos.
Pensar no que nos cerca, no que nos afeta. Ouvir música é ser, a
certo modo, egoísta. É pegar esse pano de fundo musical e colocar no
palco da nossa vivência, e pronto. Sentir o que a música te induz,
mas só até onde você se permitir. Mas ler... ler é emprestar-se ao
mundo. Às coisas que compõem o mundo. Ao mundo do mundo. É
desprender-se da terra, da poltrona, do ônibus, da própria carne e
habitar outro aspecto de vida – que às vezes nem é vida, mas vive
descrito na página lida; esquecer-se de quem é; não ser. Ler é quase
não existir para coisa alguma e vagar fantasiado de tudo que é lido,
simplesmente no ritmo dado pela acentuação gráfica: Ah! Ler, este
suspiro visual, é romper as paredes do corpo e partir sem tristeza;
partir para ficar; permanecer ileso ao ambiente à sua volta, mas
afetado por tudo. Estremecer por dentro, lendo o turbulento. Chorar,
e tomar decisões que talvez se dissipem durante o retorno ao corpo,
sentado na poltrona do ônibus que viaja preso à terra, no
interiorzinho de Santa Catarina, vendo vacas beges pastarem
impassíveis. Ler e rir, às vezes, doer de raiva de algo que nunca
existiu nem aconteceu, mas que teve vida no espaço de tempo –
incontável – em que você o lia. E eu escrevo para quem lê sem
saber-se lendo; viver na palavra escrita, saltando de página à
página, cada vez mais sedento. Eu escrevo absurdamente ávida. Meus
dedos, humildes funcionários assíduos, trabalhando sem hora
determinada – a escrita em nada se encerra, nem de maneira alguma se
conforma. Alguém, do lado de fora da página, me espia por dentro.
Passa os olhos nesta folha: sentem-se os dedos. E a mágoa eterna de
nunca ser suficiente, jamais encontrar-me aliviada em texto algum,
simplesmente porque não existe o que me avise: “está bom, pode parar
por aqui”. A palavra me (con)vence. A palavra é que me (co)move.
Somente ela é capaz de descrever sem podar o imaginário mais
profundo dos seres humanos que estão sobre ela. Na superfície da
palavra, eu me deito solenemente e sou levada: letra por letra, cada
vez mais aflita, na busca - incessante e suspeita – pela coisa não
escrita.
Vem de repente
Vêm de repente aqueles dias tristes,
tristinhos e levinhos, como parentes distantes e inconvenientes mas
tão bobinhos que a gente não tem coragem de afastar. Vem de repente
uma saudade imensa de coisa que não se define, de lugares e
situações que talvez até nem tenham existido, estejam onde
estiverem, estarão, estariam nesse instante suspensas no universo do
meu pensamento – ou na mística filosófica que envolve minhas
lembranças. Vem de repente o medo de não superar o passado a ponto
de enxergar onde pisam meus pés nesse presente que é, na verdade, o
futuro – e se não houver nada daqui para frente? Vem, sim, de
repente, a certeza de que alguma coisa se perdeu pelo caminho e eu
não percebi – às vezes me sinto egoísta, mesquinho – e fui andando e
tropeçando, sem dar-me conta do que ficou para trás. Vem de repente,
bem de repente, um soluço afogado de lágrimas morninhas que, de tão
tímidas, logo param de cair. Vem de repente o retrato dos que já se
foram – sorrindo, gritando, cantando, pulando na grama descalços,
peraltas – como forma de auto-tortura contemporânea, e eu nunca me
esqueci de nenhum rosto. Vem de repente um momento de reflexão que
começa num desejo profundo de relembrar o máximo de coisas e termina
na determinação de esquecer-se para sempre do máximo de coisas. Vem
de repente um sinal que pode ser constatado à qualquer hora do dia,
no trânsito, na sorveteria, andando na rua, se nota um detalhe
precioso – inconveniente, talvez – que remete ao fato do qual você
quer se distrair. Vem de repente um delírio, um sonho mal acabado
que te deixa a sensação de estar sendo vivenciado e você corre,
corre, corre sem sair do lugar – e se descobre no pesadelo do
cotidiano mal digerido. Vem de repente o espanto, aquele maldito
intrépido pavor diante da confirmação do que mais temíamos, e a dor,
vem de repente, tudo junto, e nessa torrente, o rancor, a vergonha,
vem de repente, nessa onda de sentimentos que vêm de repente nos
dias que chegam, também de repente, ao mesmo tempo se instalam na
vida da gente que é a saída da gente para que não se caia nas
armadilhas da mente, nos braços da morte assim de repente.
Sentimento de Culpa
Foi horrível. Horrível simplesmente,
não. Foi péssimo. Foi completamente descabido e incompreensível. E
também indescritível. Mas eu vou tentar descrever porque meu bom
senso não é maior que minha ousadia. Mas, por falar em ousadia,
quanta insensatez naquele simples telefonema. Sim, tudo começou com
um telefonema. Na verdade, começou bem antes disso, mas o telefonema
era uma torrente devastadora arrebentando a minha barragem. Meses
construindo essa barragem. Meses! E num simples telefonema, eu
naufraguei novamente. Foi horrível. E foi péssimo. Primeiro porque
eu não estava esperando “fazer contato”; segundo porque foi um
telefonema pra lá de idiota. Só para me fazer uma pergunta tola. Uma
pergunta cuja a resposta só eu sabia. Eu e a Lista Telefônica. Mas
com certeza daria muito trabalho procurar na Lista Telefônica. Era
mais fácil me telefonar, romper a barragem e ficar assistindo eu me
afogar atrapalhadamente do outro lado da linha: “Ah... eu... o
telefo... hum... achei... só isso?”. Quanta estupidez para um único
ser humano! Mas, também, como tratar o anormal como algo trivial?
Como driblar a ansiedade diante de um telefonema que estava, naquele
instante, quebrando um silêncio de meses? Foram meses. Eu já
mencionei isso? É que é preciso frisar. Meses de tortura. E quando
eu me senti pronta para viver do lado de cá da barragem, o telefone
tocou e, junto dele, aquela onda imensa derrubou o muro que eu havia
erguido para me separar de suas águas. E no fundo, no fundo – porque
eu estava literalmente me afogando – eu só queria que alguém, de
algum ponto qualquer – do outro lado da linha, quem sabe – me
atirasse uma bóia. Mas em vez disso, eu acabei dizendo que me sentia
péssima e que a culpa era da pessoa do outro lado da linha. Eu disse
isso e me arrependi. Foi tudo bem rápido. Acho até que me arrependi
enquanto dizia. Mais do que isso: eu nem bem tinha dito e já havia
me arrependido. Mas foi horrível. E foi péssimo. Eu falei que o
culpado era ele e como resposta, seguidamente: TU TU TU TU...
Elogio a Ética
Você veio me dizer de forma toda
poética que o seu maior prazer era admirar a minha estética. E
confesso não ter entendido absolutamente nada da sua profética, mas
mulher tem sexto sentido, e eu te falei de maneira sintética que
jamais sairia contigo. Eis que, então, você me demitiu por injusta
causa e eu, me enchendo de raiva, para não te mandar para aquele
lugar que ninguém nunca viu, resolvi dar uma pausa – sim, meu pobre
cérebro refletiu. Consultei um dicionário para enriquecer o meu
vocabulário e responder à altura do que você me falou, galanteador
feito um canário, mas tão ofensivo e ordinário. Agora, escuta aqui,
sua besta patética, antes de se gabar da sua hermética, você deve
aprender a respeitar suas funcionárias frenéticas que tanto
trabalham em seu lugar. Enquanto você viaja pelas europas e
soviéticas, a gente está lá no seu escritório, fazendo o quê? É
notório: estamos cibernéticas de tanto digitar, formatar, editar,
ocultar e se desculpar por você – nota-se pela minha aparência
esquelética. E o senhor tem coragem de me colocar na rua, depois de
elogiar minha estrutura atlética, depois de insinuar querer me ver
nua? É muita falta de censura! E nem estou analisando faixa etária,
até porque sou bem eclética, mas, cá entre nós, com essa sua
urticária, nem se eu fosse uma doida epilética. Veja bem, não perdi
a compostura como era de se imaginar – você mesmo diz que mulher é
muito histérica. Aliás, vou mais além, lembro-me também de ouvi-lo
criticar a minha aferética, me subjugar, me caracterizar de aérea.
Agora, se me permite retrucar, eu te convido a analisar as coisas de
maneira mais eidética – não, não é doença venérea. E para finalizar
dialética: vou embora, sim, mas sem me envergonhar. Ao menos a mim
não falta ética.
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