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Rodrigo Garcia Lopes


 

A Tempestade


Canibal, palavra latina,
à maneira de canis, animal
de fidelidade canina.
Nas Bermudas, sublime ironia,
será um vento do cão
e vai se chamar hurracán

E quando o mar de lã
de repente apontar terra à vista
Então será Caliban

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Rodrigo Garcia Lopes


 

Mu


É quando o céu se distrai
E, admirado, fixa o olhar
Em algo ainda por cair.
Prata fictícia, ornamento da mente,

A neve visível e real. Sábia,
Por se saber assim.

Então a memória, ignorante, captura
O que o sentido perdera.

Como um vazio que contempla
sua própria rachadura.

 

 

 

Ticiano, Flora

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Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

Rodrigo Garcia Lopes


 

Lá vem você


Lá vem você
Se passando por vento
Como se ninguém te visse
Lá vem você dublando pensamento
Como praia que sentisse
Pra perto do riso, do risco, do início
Das ondas das dunas do espanto,

Lá onde o calar fala mais alto
E onde o momento comemora
Com um minuto de silêncio.

 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Rodrigo Garcia Lopes


 

Talvez seja isso


De repente você nota, em certa noite de chuva,
que ninguém se importa mais.
Noite em vigília. A ipoméia se abriu
Enquanto você dormia.
A imagem iluminada desgastou
depois que a duração virou mercadoria. O "eu lírico"
não subsiste num mundo de fluxos e superfícies vazias
que o olho mal consegue acompanhar
enquanto a verdadeira face da vida começa a dar as caras.
Evaporaram-se os dados precisos e algo mágicos que a poesia exibia.
Perdemos toda inocência, talvez nossa última chance,
e agora tudo o que você disser
pode ser
Usado contra você. Transformamos o real não num mito fugidio, performance discreta ou fluxo de uma gravura, mas numa incoerência
algo eufórica, cheia de comentários sobre outras
pessoas e paisagens, pois aquilo
que se chamava vida
eram fábulas do momento presente,
o recriar incessante no castelo de areia, onde ondas eram adivinhas, brincando de desaparecer. Não investigações vazias
sobre a temporalidade ou algo assim, muito menos
a idéia da palavra em si mas que pára ali,
cara a cara com sua onipotência, e
de como a sensação agora
é de uma velocidade que de repente não muda muito as coisas.
Pelo menos em essência. Isto não existe. Mas o que é essência,
e por que perdemos
nossos instantes preciosos
e o sonho de qualquer elegância
escrevendo ao vento ou então dispersos
nesses gestos inúteis e sublimes
tentando entender
alguém no outro lado da linha.

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Mario Cezar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Rodrigo Garcia Lopes


 

Canção das Musas


a noite arrasta seus cascos
abrindo clareiras no acaso
que precede o som.
até
as estrelas, atrás,
estão mais
acesas

se por tristezas
a morte que acusas
não couber em belezas

linha por linha
arrastem-nos como a um cão
de espumas
levem-nos a parte alguma.

 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Ruy Camara

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Rodrigo Garcia Lopes


 

Fugaz


passagem por uma paisagem,
lugar do onde, do ontem, do quando,
quantas palavras ficaram faltando
na boca cheia de imagens.
o outro é aquele que ficou à margem,
no espanto de um pronome,
no corpo de uma brisa suave;
o outro é como uma fome
pluma à deriva, à distância, ou quase.

estranho em sua própria viagem,
garrafa com uma mensagem,
olhar durando numa flor,
sem nome, secreta, selvagem.

Desterro, água bebida num trem,
peça incompleta, festa adiada, vertigem,
a cabeça sempre em alguém,
eu outro, eu todos, ninguém.

 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Inez Figueredo