Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

Poema para foto antiga


Vivo sem medida essa ausência
Que mesmo basta o teu retrato.
Mas, se a todo instante mudamos
O teu sorriso fixado no papel
Continua sereno e suplicante
Como antigamente.


Por isso, enquanto se abre a meus olhos
O heliotropo plantado há tempos,
Fujo com eles da fotografia
Porque não sei onde te encontras
E se o mesmo sorriso ainda nos pertence.


Por isso é que não basta o tal retrato
E ponho meus olhos na flor que foi semente.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Millôr Fernandes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

A que saiu do cântico dos cânticos


A que sempre chega
Traz a fala morna e mansa
Sabe a prática lasciva do desejo.


Em seu corpo trigueiro vem o sol.
Está e não está na incerteza,
Mas tem do mormaço, sol a pino,
A magia da terra iridescente.


A que sempre chega
É o amor, o mito, vindo e partindo,
Aprisco e dor, mas feliz contentamento.


E são os ombros, são as ancas,
As virilhas, as nádegas sedosas,
Os pequeninos seios, o sexo mordente,
Os tesouros que só eu pude achar.


A que sempre chega
Escapou de um versículo do Cântico dos Cânticos
Enquanto Salomão se ocupava demais
Com a pastorinha Sulamita.


E até hoje ele a procura, desesperado,
Naquelas linhas.
Mas em vão. É muito tarde. Está comigo.


( In: jornal Diário do Povo. Teresina-PI, 27 abr. 1991)
 

 

 

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Carlos Felipe Moisés

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

Cantiga

 

Os mais desesperados são os mais belos cantos.
Musset


 

Até Cecília
que se encantava
morreu.


Por que um dia
também não morro eu?


Até Cecília
que de beleza
padeceu
e não desejou mais nada
arrefeceu.


Onde Cecília
seus olhos de estampa
escondeu
após os Cânticos
que prometeu?


Até Cecília
ave encantada
feneceu.


Por que de dor talvez
quem sabe não morro eu?
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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alphonsus Guimaranes Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

Soneto para crer


Para não morrer, vivo acordado.
São muitas as maneiras de viver.
E entre os dois extremos tenho ao lado
Aquela que não cansa de me haver.


Estamos, assim, posto na vida
Igual à flor nascida para ser,
Mas se se abre em nós chaga dorida
Melhor é esquecê-la se doer.


Onde o mistério se a vida é vida?
Por que dormir suspenso no enfado,
Se a esta tenho a vida devotado?


Lá do céu, egressos, vêm anjos
Conselhar que sejam consumidas
A um só tempo flores e feridas.


(In: Revista de Letras. Fortaleza, 15 (1/8)- jan. 1990/dez.1993)
 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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Ascendino Leite

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

Olhe a poça


Há quem olhe a poça e veja a lua
Numa noite de intenso tremedal
Nela viaja a sede acre, insaciável
Do homem que trabalha, mas não vive
Daquele que não sabe já quem é
A sede é de tudo e de justiça
E o sedento não vê flores no caminho
A não ser nos canteiros do futuro


Mas como o advir não lhe pertence
Sendo a certeza um fruto de amanhã


Pisar na poça talvez não lhe pareça
Senão mero obstáculo a vencer
Um passo a mais do corpo que carrega


E enquanto a vida for seus dias de alugado
O seu suor, o seu sangue, o excremento
Para ele todo o céu será cinzento
Ter nascido foi ganhar uma sentença


Vai o homem, pisa a poça na calçada
E há quem olhe a mesma poça e veja a lua
 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Aleilton Fonseca

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

No centenário do cão

 

In memoriam Adolf Hitler



A merda com que Hitler pintou as paredes da Alemanha
Logo Bertolt Brecht decifrou
E enquanto o "pintor"salpicava seus merdiscos
O poeta transpunha a fronteira de sua pátria
Porque tinha de anunciar aos sete povos do planeta
O grande feito do temível ditador


Um dia Hitler foi coberto de bombas
em seu bunker, em seu próprio jardim
E, mais louco do que Nero
Disparou um tiro de pistola nos seus miolos de excremento


Então, aquela com que pintara as paredes da Alemanha
Escorreu dos muros do Terceiro Reich, o seu império
E cobriu a terra onde sepultaram o seu corpo de merda
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Dalila Teles Veras