Thiago Mota
O DECIFRADOR DE SÍMBOLOS
Que há
Em teus ares?
Só ares
Ares sós
Bons ares
Só ares
Em que nadam
Pássaro-versos
Sem fim.
INFINITESIMAL
A Jorge Luis Borges
Era eu bibliotecário em Babel,
Me sabia na periódica e ilimitada Biblioteca,
Infinita biblioteca que guarda os instantes
Infinitas estantes que guardam o nada,
O duradouro nada em que o universo desloca-se.
O infinito.
O tempo o tempo o tempo
Quisera eu, neste tempo,
Num só tempo, ter nas mãos, todos os livros.
A simultaneidade de todos os livros sob meus olhos
Ante a minha leitura.
O tempo o tempo o tempo
Porém, soubera eu inútil a Biblioteca.
Quando a mim bastasse um único livro infinito
De infinitas páginas
Infinitamente delgadas,
Da grossura do nada.
Cujas margens não se encontram em parte alguma.
Cujo centro se encontra em toda parte.
Infinitamente fino livro
De infinitas páginas finas,
Infinitamente finas,
Sem reverso.
Infinitesimais.
O tempo o tempo o tempo
Mas soubera ainda os livros desnecessários
Quando a mim bastassem todas as palavras,
Mais ainda, todas as letras
E espaços e sinais ortográficos,
Num único,
Lido duma só vez,
Vez única.
Infinita.
O tempo o tempo o tempo
Círculo de raio infinitamente longo.
Tão longo quanto é longo
O infinitamente curto.
O meio dia.
A eternidade.
O tempo o tempo o tempo
O tempo é livro.
Infinito.
O mesmo livro que tens agora
Diante de ti,
Agora,
Em tuas mãos,
Se apenas fechares os olhos
Ou antes sentires o nada.
Este
Aqui!
Vês?
O tempo o tempo o tempo
PAÍSES MEUS
Num meu país que ainda não existia
A poesia era a música do logos
E o logos era a desarmonia
E a guerra.
Num meu país que já não existia
A música era pura desarmonia
O logos devinha poesia
E a poesia era guerra.
Num país meu que nunca existia
A guerra era poesia
A música descontínua desvanecia
E o logos devinha desarmonia.
DESARMONIA
Sou minhas contradições, nunca tautologias.
Vivo de meus arabescos,
Sou a urdidura de uma trama persa.
Me crio e por isso creio em mim.
Eu não me encontro, me perco.
Sou disperso, dispersão, desespero.
Desarmonia é a minha palavra,
Desarmônico, o meu gesto.
Meu nome é legião, por que sou muitos,
Sou comunidade em guerra.
Sou feliz, quando fascista de minha alma,
Quando anti-líder de minhas revoluções.
Meu corpo é minha alma e morre sempre.
Fragmentação.
Meu corpo é feito de versos
Descontínuo e múltiplo, diverso.
Talvez seja eu o último moderno.
Por que não haveria de me encontrar?
Eu dou comigo em toda parte,
Meu corpo é cisão, esquizofrenia, particularidade.
Desarmonia é minha palavra
O terrível é o lugar onde me deito
Com minha solidão tão sólida
E minha música de nada, silêncio.
O abismo é o lugar de minha dança e de meu riso
E donde grito minha palavra – Desarmonia.
MISANTROPIA
I
Deixa que eu te diga,
Deixa que eu te diga uma coisa.
Tu, tu tomas teus comprimidos
E reclamas da minha embriaguez.
Eu me rio, eu me rio de te, gargalho.
Tomas teus comprimidos e perturbas o próprio sono, assombrado,
Querendo dormir, mas com medo, com medo de te afogares nas sombras
de teus sonhos.
O sono não é pra te uma boa morte.
Tu tomas teus comprimidos e perturbas o sono dos outros,
Perturbarás a todos,
Até que todos te deixem só.
E então culparás aos outros por não se deixarem perturbar.
Eu te perturbo?
Tu te perturbas.
Perturbaste a ti mesmo sempre.
Eu não sou nada.
E tu, tu és apenas um pouco mais que eu.
Tu és a perturbação.
O inquieto.
O inquieto.
Pensaste que a vida te tinha sido dada de presente?
Por tua mãe? Não.
Ela te mataria se soubesse que isto fosse bastante para a
felicidade.
Mas não, ela não o soube. Por isto tu vives.
Por isto ela não te matou.
Tua mãe não te deu um prêmio. Pelo quê?
Se tua mãe te deu algo foi a maldição.
Ela mesma, já amaldiçoada, te deu de presente a maldição.
A maldição de viver,
A maldição de te manteres vivo e tu vives.
Até quando com o acaso te encontrares.
Até que o acaso te pegue pelas costas.
Sem fim nem finalidade.
Sem finalidade nem fim.
Teu caminho é uma seqüência de bifurcações.
E todas elas se equivalem.
Bifurcações de bifurcações de bifurcações.
E não esperes que acabe,
Teu caminho não espera por te
E não se acaba.
Não se acaba.
II
A felicidade?
A felicidade não era teu fim.
A felicidade não te quer, aquela maldita.
Ela não quer a ninguém,
Nem a si própria.
A felicidade não se encontra,
Jamais se encontra.
Se se visse diante dum espelho
Ela degolaria com as unhas a própria garganta.
A felicidade? Tu não foste feito pra isso.
És, antes, vivo pra morte. Sem sentido.
E a felicidade não cuida dos piolhos debaixo do véu da morte.
III
Eu?
Eu estive com Deus.
Numa dessas noites, quando chovia,
Chovia forte. Parava. Voltava a chover.
Eu estive com Deus
E ele me disse,
Lastimou-se acerca da sua sorte,
Das suas paixões e tragédias.
Os problemas que afligem a Deus,
Os mesmos que afligem aos homens.
Deus tem mazelas.
As mesmas que tu e eu.
Mas eu, eu estive com Deus e ele me disse,
Ele me disse o que tu
Não serias capaz de suportar agora.
ROBESPIERRE
NÃO
ESTÁ
MORTO
.
soltem os presos da cadeia
pública municipal
tirem os loucos dos hospícios
internem seus médicos
submetam-nos a eletro-choques
nos testículos
joguem os magistrados na guilhotina
robespierre não está morto
robespierre não está morto
foi comprar cigarros na esquina
livrem os assassinos da cadeira
elétrica
não aterrorizem contra os terroristas
os torturadores é que devem ser torturados
tortuosamente
os enforcadores enforcados
os carrascos encarcerados
robespierre não está morto
robespierre não está morto
foi comprar cigarros na esquina
ao reverendo deve ser imputada a maior pena
em vida
e a eternidade de pecados
no inferno
altos executivos, economistas, advogados
cancerígenos
prostráticos
devem ser castrados
com arames enfiados nos ureteres
os funcionários públicos devem ser deixados
à míngua
robespierre não está morto
robespierre não está morto
apenas foi comprar cigarros na esquina
A GUERRA DO HOMEM SÓ
Naquele tempo, em que as coisas não tinham nome,
Em que os demônios de lodo planavam acima de nossas cabeças,
O homem só já tinha cansado de guerra.
Seu corpo era frágil, convalido, incandescente,
Mas seus inimigos ainda não tinham caído por terra.
Naquele tempo, em que as coisas tinham perdido o nome,
Em que os monstros de iodo infestavam nossas células,
Em que as borboletas de ferro invadiam nossas terras,
Em que os gafanhotos de boro empestavam nossas glebas,
Em que os louva-deuses de cobalto entulhavam nossas veias,
Em que as coisas claras já não tinham nome,
Perdiam-se entre as outras que nunca tiveram.
Podiam ter sido os homens amigos, e certamente teriam sido,
Se não tivessem sido feitos homens.
E se homens não fossem feitos desejo,
Se os homens não habitassem a máxima falta,
Se os homens não quisessem a absoluta ausência,
Se homens não fossem feitos de guerra.
Podiam tê-lo sido.
Porém, quando era possível, simplesmente morreram.
Tornaram-se solidão e silêncio.
Tornaram-se matéria, etérea réstia daquilo que já não é vivo
nem eterno.
Matéria.
E o homem só ficou
Com suas dores, seu reumatismo e suas honrarias de guerra.
NARRENSCHIFF
A Michel Foucault
Chamem os jovens gigantes cáusticos
Com suas longas pernas de cavalo,
Rumando sem norte, contrário do sol.
Vejam nos olhos do sol de cálcio
Os reis magos, os três mágicos,
Ruminando a sorte, contrário do sol.
Brinquem com as esferas de berílio,
Eternos guindastes de plástico
Da aurora de rubi dos homens maus.
Chamemos a Nau dos Loucos.
Os enormes navios vazios
Cheios de nada, cheios de nós.
Vaguemos na imensidão de cobalto,
Rostos expostos à brisa de aço,
Velas içadas, oitocentos nós.
TEMPORAL
Meu tempo é agora
– Imperativo!
Tempo de ir embora
Tempo de outrora
Tempo traçado das horas
Tempo tecido do tempo
Temporal
Meu tempo não se divide
– Segundos milênios limites
Meu tempo é atemporal
– Intempestivo
Tempero da vida
Meu tempo: tempo de vida
Meu tempo é momento
Solavanco eterno
Fincado na espinha de Deus
Meu tempo é agora
Para o mais não tenho tempo
LÍTIO
Nítido,
Polímero de carbono ou ácido
Sob meus pés descalços
O vacilo pouco antes do colapso,
Lapso, lapso, lapso
A razão vagueia momentaneamente
E o corpo dança
Como dança quem já não sente.
Colírio,
Acetado ou hidrácido
Em meus olhos encarnados
O delírio um tanto antes do contacto
Tacto, tacto, tacto
O corpo intacto se eleva
E a razão retoma, faz-se presente
Na ausência de quem já não sente.
Lítio,
Putrefeito, diluído, disseminado
Sêmen em cada corpo contrário
Corpos feitos um compacto
Pacto, pacto, pacto
Amor louco, loucura certa
E o corpo se contorce, mente
Trai como quem já não sente.
NÃO HÁ POESIA AQUI
Não há poesia aqui
Aqui
Não há
Poesia
Nunca houve
A poesia passou por aqui
Há muito foi-se
Embora
Poesia aqui
Nunca houve
Não há poesia aqui
Nem poeta
Nunca, jamais houve
Nada
Não há poesia aqui
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