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Francisco Miguel de Moura


 

Poeta são chico


sou poeta do piauí
até não existir mais
o rio
rio
de são paulo a piauí
dos santos, todos os cantos
bahia, frança, oropa
são aqui, são agora.

são chico, sou piauí

se ninguém me quis
ninguém me chamou
para a sua história...

se a chama é aqui
e a vida é aqui
a morte foi-se embora.

eu vi todo o mundo mudo
o mundo que não me viu.

o poeta estava, está
lá e aqui
e os outros se afundaram:
- ti-bum! ti-bão!
bem-te-vi!
como chico
piauí!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

Tercetos


Porque dormi ao lado
de alguém só-ridente,
senti-me ser alado.

Porque sonhei deitado,
num sonho imprevidente,
rolei-me ao outro lado

Caí no chão, pelado,
mas levantei contente,
ainda assim cansado.

É que dormindo amado
amei imensamente
mais do que acordado.

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Thiago de Mello

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos, o lado profissional de Soares Feitosa

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

Nós e as nuvens


Nuvens somos
como somos cromosssomos:
no parecer iguais: seu volúvel
de volumes e volutas
ou reentrâncias.

Mal nascemos, somos sonho,
mal subtraímos já somamos.
Mal andados, já tropeços.

A vida chega cheia
de veias, consciente.
E já desaparece na noite,
à moita das águas subterrâneas
dos crânios ocos:
- Mal cheirosa, mal sulfurosa,
semi-séria, cemitéria...

As nuvens quando
em bando
se distraem
e se misturam com carbono
e com iodo, com matéria de cometa...

Nuvens já não somos.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

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Mauro Mendes

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

Militância


semente que tentou florir
na rocha impossível, aqui.
por trás da farda
de brim cáqui floriano
preso na hierarquia.
por trás do capacete duro
uma cabeça ágil,
fervente,
por trás da violência de escravo
(no dever?)
há um homem ferido e acorrentado
(seja paz, seja guerra)
por trás dos olhos ligeiros
de lince, de lança
há o homem-fome,
o homem-faz-medo-a-criança
por trás, os olhos feridos
de distância
e o comum dia-a-dia.
tu vês (por profissão)
o campo de batalha
no inimigo-irmão.
saber ser leal ao dono
e diferes do cão.
embora tudo isto,
a cachaça e a sífilis
(e a gota de sangue do coração).


 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Miguel Sanches Neto, 2002

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

Três


Não lhe contarei minha história.
a da vaquinha morta,
e não me deu o leite da vida:
urubus pastaram seus olhos.
E pastarão sobre mim.

Nem a história de mamãe-titia,
de meu pai-pequeno-e-feio,
de meu nascer-Chico
por simples fuxico.
Não houve melhor jeito.
Depois, morreremos de comer, de beber:
— o sono-inanição era todo nosso.

E o medo do outro (e de nós?)
e os desejos menos preciosos
que morriam?

o mundo antes de mim,
do alto do descaso,
jogou-me na grande roleta.
E bicho permaneço.

Não me deram nem carne nem osso,
nem cabeça — mundo deus, mundo diabo.
Deram-me tripa
muita tripa
e coração.

Assim subvivi para este sonho
entre aves de rapina
e frutos escassos,
cactos, espinhos, trapos,
despetalando a vida que não quis.


 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Neide Archanjo

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

Soneto dos cinqüentanos


Aos cinqüenta bebidos, me apeteço
porque a vida me ofertou de espinhos.
flores poucas, encantos mitigados.
E em todo passo a busca de sentidos.

Feliz por ser fidel no que me arrimo.
São secretas conquistas, muito humanas.
Sorrio ao que me passa e vai ao vento:
— Eu sou vagar, sou tempo e não me canso.

Meu corpo alcança o corpo mais cansado,
minha alma inflama a irmã insubmissa,
sem barulhar a paz que me guerreia.

Semeio amor. Na dúvida, campeio
o que me arma de força e decisão.
E vou seguindo. E sei que vou ficando...

 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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José Lívio Dantas

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

Ter-e-sina


Há Roma, Paris e Bagdá
com sonhos que não sei
com céus que me escaparam
pelos pés.
Você conheço de pele
de manha
de manhãs desfeitas
de sol e chuva meio a meio
de ponte anoitecer
de rua e rio e rima.
Só você com seus ares
de mulher que ensina
a vida, o ventre
e o tonel.

Teresina conheço de antros
de antes.
Bagdá é um sonho
não vou lá.
Meu sonho em que sonho
de acordo
         é você.

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Adriano Espinola

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

DEUSA


Era uma deusa humanamente bela,
de olhos molhados a deitarem luz,
sobre perdidos corações sem cores.
Desprendia paixões nos seus encantos.

Da carne, o cheiro, a tepidez, o orvalho
eram pingos da tarde... E a noite vinha.
Mas o brilho dos olhos tão intenso
iluminava todos os caminhos.

E eu disse - “tolo”! - à blusa desdobrada
à brisa, que assanhava as mentes frias,
cheia da graça dos recantos da alma.

De repente, nas asas dos seus braços
levado vi-me e, pelos céus abertos,
caírem penas pelos meus pecados.


 

 

 

Baloubet du Rouet, campeoníssimo de Rodrigo Pessoa

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Cecília Quadros

 

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

A DEUSA NUA


Vi uma deusa solitária e nua.
Brincava pelas praias sem segredo,
Em silêncio. Confesso senti medo
Da cor de prata . Mas não tinha lua.

Corri para apanhá-la, inda era cedo,
Com vergonha de mim, vindo da rua
Tão faminto e cansado. E ela na “sua”.
Pensei: se deusa for, vence o rochedo.

Cego e surdo eu corria, eis que perdido
Sem esperança, louco e comovido,
Queria o mel dos lábios dos seus beijos.

Tinha as faces rosadas de ternura,
Pulsante seio, oh, estranha formosura!...
Caí de amor, morrendo de desejos.


 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

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Eloí Elisabeet Bocheco





 

01/02/2006