Copan mon
amour
Entre curvas de concreto, aço e vidro,
escritor recria o dia-a-dia agitado de um
dos edifícios mais famosos do arquiteto
NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Chove sobre o Copan, chove muito. Agora
faz sol. Calor. Agora chove outra vez. Faz
frio. O sol volta, a chuva volta, o calor
volta, o frio volta e esse vaivém é parte do
plano secreto da natureza que pretende fazer
nevar sobre o Copan. A natureza é ardilosa.
Nesse ritmo, logo, logo vai nevar sobre o
Copan. Gaúchos, mineiros, cariocas, goianos,
pernambucanos, paraenses. Faça chuva ou sol,
o país inteiro cabe no Copan. Na quitinete
do bloco B cabe o advogado mato-grossense
que se separou da mulher e veio para São
Paulo, deixando para trás também os dois
filhos.
"Todo recomeço é difícil. Não tenho família
aqui, mas não dava pra continuar em Cuiabá.
As opções eram Rio ou São Paulo. O espaço?
Dá pro gasto. É bom. Mas não quero morar
aqui pra sempre. Por enquanto vale a pena, o
aluguel é baixo. Mas a vizinhança é
barra-pesada." A balconista de rosto
amassado -mas bonito-, da lanchonete que
fica perto da portaria do bloco D, mora
longe.
Trem e metrô na ida e na volta, todo dia. O
estudante de arquitetura para quem ela
entregou o suco de laranja e o bauru conta
que roubaram seu carro no estacionamento do
edifício. "E as câmeras?", ela quer saber.
"Não pegaram nada. A única apontada para o
carro estava quebrada."
A movimentação vai ficando mais intensa no
térreo. Os restaurantes estão mais animados.
O porteiro do bloco B aponta: "Lá vai o
senhor síndico". Saindo do elevador, alguém
passa rapidinho e desaparece na multidão.
Parecia o Plínio Marcos. Mas não era. Estava
bem vestido demais pra ser. O porteiro gosta
do síndico. "Ele é muito honesto e
trabalhador. Sua administração melhorou
muito as coisas por aqui."
A amiga do porteiro comenta qualquer coisa,
e pelas primeiras palavras percebe-se que
ela é baiana da gema. De Mangue Seco, no
norte da Bahia. A multidão apressada que
freqüenta o Copan não parece moderna nem
pós-moderna. Parece sem tempo, eterna. Essa
multidão quase sempre assusta. Já a curva de
concreto, aço e vidro, essa curva assusta
sempre. E comove. E encanta. Curva triste.
Curva miserável. Curva sedutora.
Admirando São Paulo do terraço do edifício,
o garotão segura a garotona pela cintura, os
dois apoiados na grade. Ela pede: "Tira uma
foto". Ele se desculpa: "Não dá, a memória
tá cheia". A dois metros, mais garotões e
garotonas de olho na cidade, de ouvido na
batida que vaza dos fones. Vêm de longe, da
periferia. Vêm para ver as pessoas do alto:
as que estão no topo ou quase lá (logo ali
dois garotões de terno comem sanduíche
enquanto conversam) e as que podem ser
vistas de cima pra baixo. Depois do
sanduíche, o baseado básico antes de voltar
ao escritório.
Os turistas mexicanos dão risada de qualquer
coisa no céu. O casal argentino caminha para
o elevador. As paredes não chegam a gritar,
mas murmuram o tempo todo. Quando o elevador
pára, a fala do edifício faz eco,
monocórdia. Só as crianças, na cabine,
tentam responder a essa fala que escorre
pelo poço do elevador.
O médico de voz rouca, do apartamento do
bloco A, enquanto espera seu café -"o melhor
café da cidade é este aqui"-, conta o susto
que levou semanas atrás no terraço do Copan.
O médico também mexe com teatro, sua voz
rouca é muito dramática. A atriz e o
fotógrafo, amigos do médico, quiseram
conhecer o terraço, admirar a cidade, tirar
umas fotos, essas coisas. "Só que o cara
começou a tirar foto da mulher, e a mulher
foi se empolgando, se empolgando, e tirou
também a roupa. O segurança do terraço ficou
pasmado, sem jeito, abobalhado. Quase que
ele cai lá de cima."
Briga
Dois sujeitos de comédia americana da década
de 40, um alto e magro, o outro baixo e
gordo, brigam em frente à agência de
turismo. Gesticulam muito, possuídos pela
fúria. O sotaque é carregado. Na verdade, os
sotaques: alemão e italiano. Sem legenda.
Então, o silêncio: o Copan está pensando.
Na calçada, o jornaleiro e o taxista tiram
sarro da cara do porteiro que está indo para
casa. Futebol. São adversários, sem ser
inimigos. "O pai-de-santo, hein?", o
jornaleiro debocha. "Nem com mandinga
braba", o taxista ri. "Pelo menos a gente
escapou do rebaixamento", o outro se
defende. Na calçada, nas lojas, na recepção,
nos elevadores, nos corredores, nos
apartamentos, todo mundo conversa, comenta,
tira sarro, cochicha. Mas o Copan não
conversa com o edifício Itália. Nem com o
Hilton.
Nem com os outros edifícios vizinhos. O
Copan conversa silenciosamente apenas com as
pessoas que o atravessam, que trabalham
nele, que o habitam, que passam ao largo.
Essas pessoas não sabem que são veículos das
ruminações do Copan. Ele sussurra no ouvido
delas, e elas vão em frente, conversando
entre si, espalhando as palavras. Essas
pessoas vão para a praça da República,
encontram as pessoas que estão vindo do
Itália, do Hilton e de outros edifícios, as
palavras se misturam. Os edifícios conversam
por meio dos homens.
Agora a garoa engrossa, amolecendo essa
conversa. Chove sobre o Copan, chove muito.
Agora faz sol. Calor. Agora chove outra vez.
Faz frio.
Não há como impedir: um dia vai nevar sobre
o Copan.
NELSON DE OLIVEIRA é escritor, autor de
"O Filho do Crucificado" (Ateliê).