Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Camisa-de-força
 


Não desperta teu espanto 
na tarde imóvel de teu apelo 
nem cala tua sombra 
no móvel exato de teu silêncio. 
Não fala de teu passado 
Helder Macedo 
a planta mais clara de teu passo 
a ausência mais nítida da tua cara 
a cara mais justa de tua sina. 
Não desperta 
não desperta teu espaço 
esse invólucro do nada 
onde residem os insetos 
na terra de teu jardim. 
Ao acaso rigoroso do que és 
dás teu sangue pulsando como afronta. 
No entanto 
não desperta da tua manhã 
dessa palavra 
do teu espelho 
não desperta nem aguarda 
as manchas da tua noite 
esse navio ausente que deixa o porto 
como se nada fosse além da sombra.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Soslaio
 


O olho avesso
corta o possível corte
da cara
corta o olho o ovo a ave
o véu
corta essa gilete afiada
o vôo
a vitima do poema
a ode
elegias derradeiras
derradeiras palavras
para sempre.

Para sempre
derradeiras palavras
elegias derradeiras
a ode
a vítima do poema
o vôo
corta essa gilete afiada
o véu
corta o olho o ovo a ave
da cara
corta o possível corte
o olho avesso
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha


 

Eu culpado
 


A farpa do dia
na jarra de cristal
o olho olha alheio
além do que vê
no circulo de seu espanto.
Parte da luz
é a luz que parte
no espaço efêmero
da palavra
por dentro a se falar
por onde escorre
o rio da frase.

O poema é nada
neste discurso sem saída.

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



João-Teimoso
 


Não há olhar espesso
na espessa claridade
do fim do vaso
essa escama de ferros
a cortar
e tecer
o instante
como se assim fosse possível
tecer
e cortar
em fatias imensas
o quarto em três partes
a sala
e o quadro na parede
a fotografia antiga
que pula de sua imagem.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Mira
 


Há tempo espero
o que invade o poema
como se assim
pudesse guardar a palavra
no nó da gravata vermelha
que não uso
no bolso do meu paletó antigo
nos sapatos que se perdem.

Há tempo aguardo
como se isso fosse o bastante
como se isso
não fosse
como se isso fosse o corte
no fundo da cicatriz
essa fenda
na fina imagem do olho
que salta da cara.


 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Guarda
 


A folha que absorve a terra nesta raiz de muitas
vidas a página que vira o tempo e nele se estende
tardio como as aves nos temporais as bocas
nos apelos e o beijo que corta o lábio como a faca
corta os gomos de uma fruta como o corte
esse corte sempre esse corte por afiada lâmina
por exausta tarde que se exaure por exposto corpo
que voa
voa
voa
a vez de esquecer o ser ausente.
 


 

 

 

 

 

 

 

19/07/2005