Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha


 

Vagas Lembranças, um ensaio gráfico-poético:

A Gravura de Valdir Rocha

Desde o primeiro contato, a gravura de Valdir Rocha me passou a idéia de solidão, um retrato quase sempre aflito de rostos inquietos construídos com traços que mais parecem cicatrizes, alguns fundos, outros leves, mas sempre com esse registro do incerto, da perplexidade. São figuras comoventes.

Que se contorcem num espaço escasso de onde não se pode escapar. Porque esses desenhos revelam a idéia de ser cercado por e em si mesmo, diante de sua angústia e receio sem palavras, sem gestos, uma espécie de cárcere em que se transforma a paisagem íntima desse artista plástico que trabalha com zelo e tenta encontrar entre os escombros o que ainda pode existir de lírico e poético. E isso se estende também à sua escultura. O universo de Valdir Rocha demonstra o olhar para o outro, aquele à margem, o sem-expectativa, o sem-rumo, o sem-saída.

Há sempre um grito mudo de socorro nestas gravuras de Valdir. Um apelo. Um aceno sem volta. A cicatriz do traço é dolorida. Valdir retrata o que está por dentro do homem num tempo de escuridão em que, a qualquer custo, o importante é ainda acreditar na poesia.

Álvaro Alves de Faria

A Poesia de Álvaro Alves de Faria

Álvaro é poeta tão inteiro que tem por apelido justamente Poeta; estou certo de que vê antes e mais do que o comum dos mortais: “O espelho não vê / o que daqui se avista...”

A ficção – ferramenta de criador – do que se vale não lhe obriga a deixar escondido o que lhe vai pelas entranhas. Ao contrário, deixa bem revelado em cada uma de suas palavras de autor – para além do fingidor -, alguém que vive cada dia, reza a “Nossa Senhora de minha angústia”, respira fundo e segue adiante, “em busca da raiz”, como se fora homem comum (“O homem comum / não se surpreende no espelho / e nem se vê / na imagem em que se interfere”).

Álvaro vê e diz, porque há a profecia a ser revelada e “o poema por sentir”. Ainda bem, “Que seja assim enquanto for. / Que seja.”

Alivia-me, nos poemas de Álvaro Alves de Faria, que compõem estas Vagas Lembranças, a leitura dissimulada que faz de assuntos que sendo meus não têm necessariamente a direção que lhes terei dado. Assim, fica mantido o segredo. Ainda bem.



Valdir Rocha



Valdir Rocha

« Mais Valdir Rocha »

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Santim
 


Nossa Senhora da minha guarda
santificada sejas no pomar
entre as laranjas da tarde
entre as luas derradeiras
santificada sempre sejas entre os homens
e entre as mulheres cheias de graça
sejas sempre entre os pecadores
esse olhar que se estende
manto de salvar o mundo
sejas sempre
Nossa Senhora de minha angústia
sejas sempre.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Prateleiras
 


Minhas cabeças se calam 
num armário no quarto 
como bolas de vidro 
a mulher antiga que me habita 
e me diz palavras desnecessárias 
dessas de amor que não se usam mais. 
Calam em mudez ausente 
essa boca de lábio feita 
na cara do espanto. 
Minhas faces se cortam afiadas 
no espaço escasso deste tempo 
invólucro do que se conclui 
no canto da sala.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Vai
 


O homem comum atravessa
o olho de sua morte e nasce
como nascem as aves no outono
e os dias nos calendários.
O homem comum há de ser comum
entre a noite de cal e o oceano
como se assim pudesse se alcançar
tentativa da palavra escassa.
O homem comum
não se surpreende no espelho
e nem se vê
na imagem em que se interfere.
Morre o homem comum
como morrem
as escamas dos peixes
morre na alternativa
de não ser mais.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Escolhidos
 


Corta a tesoura
a tez da paisagem
nuvem
que o olhar não sabe.
Corta a faca o giz da lousa
o tempo antigo
da própria reminiscência.
Corta a unha
a palavra
no verso perversa
o som das coisas
o dia por vir
o rosto o rosto o rosto.
Corta a face a cicatriz
o ausente
corta
o corte do incerto.
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Múmia
 


Palavra morta
a boca morta
à palavra morta.
À morte a palavra
que não vive
desperta que está
no tempo
do que não é.
O tempo extinto
na extinta imagem
do tempo vão.
O vão do tempo
no vil do entanto.
O rosto morto
na morta face
a face morta
no rosto mostra
a face imóvel
do rosto inerte.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria

com xilogravuras de

Valdir Rocha



Contrito
 


O espelho cala fundo
o rosto inerte
de traços e veias quietas.
O espelho não vê
o que daqui se avista
a sombra que sobra
a sombra
a sombra
a sombra que esvai
a sombra
do instante que não há
que se cala
no fundo da imagem
do espelho que cala fundo.


 

 

 

 

 

 

 

19/07/2005