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Affonso Ávila

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

 

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Culpa

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

Carvagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carvagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Affonso Ávila


Anti-Sonetos Ouropretanos

I

da vila rica de ouro preto o ouro
do preito o ouro do pilar o ouro
do pórtico o ouro do púlpito o ouro
do paramento o ouro do pálio o ouro

do panteão o ouro do pacto o ouro
do percalço o ouro do perjúrio o ouro
do patíbulo o ouro do proscrito o ouro
do prêmio o ouro do palimpsesto o ouro

do pedágio o ouro do pecado o ouro

do pulha o ouro do podre o ouro
do polvo o ouro do puro o ouro

do pobre o ouro do povo o ouro
do poeta o ouro do peito o ouro
da rima rica de outro preto o ouro

 

II

a cidade da hera e de idade
a antiguidade de édito e de idade
a posteridade de efígie e de idade
a eternidade de essência e de idade

a majestade de espírito e de idade
a gravidade de espectro e de idade
a dignidade de ênfase e de idade
a imobilidade de enlevo e de idade

a obliquidade de eflúvio e de idade
a soledade de exílio e de idade
a fatalidade de exaustão e de idade

a castidade de espera e de idade
a carnalidade de efêmero e de idade
a cidade de eros e de idade


ÁVILA, Affonso. Código de Minas & Poesia anterior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. 

 

 

 

 

 

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Affonso Ávila


Caro poeta Soares Feitosa 

Recebi, surpreso, o seu livro Psi, a Penúltima. O título não ajuda a encaminhar bem os textos ali reunidos. A surpresa fica por conta dos poemas ali reunidos, que transbordam (o que é estranho em terra seca), mas com estranhos redemoinhos, unificando cultura clássica com cheiro de chão. Grego e cantador-de-viola convivem em cantiga-caatinga! E a Bíblia. Gostei de conhecer a sua poesia, apesar da minha ser árida e despojada, embora o peso mineiro do barroco. 

Achei delicioso e tive de ir ao dicionário de termos populares para encontrar a imburana-de-cheiro. Cheiro tentador! Se fuma ou só perfuma? Minha mulher pensou em colocar o envelope-poema em meio à gaveta de roupas íntimas. É fetiche?

Affonso Ávila

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Affonso Ávila


Soneto de Amor

O coração não pulsa a clave dura
Cantando a rosa de si mesma urdida,
Seu tempo esculpe a aurora sem medida
Sobre as orlas da carne que amadura.


Nenhuma fonte aqui nos inaugura
Com a floração de água surpreendida,
Revolvemos os campos onde a vida
Pendoa-se e aos seus dias transfigura.

Confluência de vento e flauta rústica,
Em nosso lábio colhem outra acústica
Os pássaros moldados pela tarde.

Entanto, despojando-se de tudo
O amor ainda se apura e, embora mudo,
Faz do silêncio a fórmula de alarde.

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Affonso Ávila


Os negros de Itaverava


Três negros de Itaverava,
irmãos em sangue e aflição,
não dormiam, como os outros,
a noite que é sujeição,
dormiam, sim, as auroras
— as luzes em combustão
dos sonhos que, mesmo estéreis,
sucedem no coração.

Enquanto as almas penadas
nos caminhos pranteavam
o corpo que se perdera
e os cães com elas choravam,
na senzala não se ouviam
os passos que se cuidavam,
as vozes que, a medo e susto,
no paiol confabulavam.

Para quem é jaula o dia,
que seja conspiração
de perfídia e sortilégio,
de roubo e contravenção
a noite cujas estradas
não se sabe aonde dão,
a noite que enlaça o negro
com seus silêncios de irmão.



ÁVILA, Affonso. Código de Minas & Poesia anterior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

lio Castañon Guimarães

Jornal do Brasil

[13/SET/2003]


A lógica particular do poeta

 

Afonso Ávila discute as relações entre a história e os percursos individuais

 Júlio Castañon Guimarães

Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa

 

A lógica do erro
Affonso Ávila
Perspectiva, 206 páginas
R$ 26

 

Afonso Ávila, um dos mais importantes poetas contemporâneos brasileiros, ao longo de sua produção intelectual vem desenvolvendo também atividades como pesquisador e como crítico. É autor, por exemplo, da coletânea de ensaios O lúdico e as projeções do mundo barroco. Além disso, tem-se dedicado de forma constante, duradoura e profícua a permitir a circulação de trabalhos de numerosos pesquisadores, propiciando a produção de muitos desses trabalhos.

Isto vem se dando, há mais de 30 anos, com a publicação da revista Barroco - por ele criada e dirigida -, cujos números têm surgido com a relativa regularidade permitida pelas dificuldades a serem transpostas em empreendimentos desse tipo. São volumes alentados, que reúnem trabalhos de importantes pesquisadores de várias áreas que se dedicam ao estudo do barroco. A lembrança desses dados não tem o intuito apenas de oferecer informações sobre o autor, mas também de salientar como o objeto dessas suas atividades não está distante de sua poesia.

Pode-se ainda lembrar a ligação de Affonso Ávila com os movimentos da poesia brasileira a partir dos anos 50. Nesse sentido, teve participação fundamental num acontecimento como a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, ocorrida em 1963 em Belo Horizonte, que assinalou um momento importante das vanguardas brasileiras surgidas na década de 50. Assinalou em especial a aproximação entre o concretismo paulista e o grupo mineiro reunido em torno da revista Tendência (da qual Affonso Ávila era integrante) - o número 4 da revista apresentava um dossiê intitulado justamente ''Diálogo Tendência-Concretismo''.

Essa aproximação ressaltava exatamente um dado que até hoje - ou por prejulgamento ou por lamentável desconhecimento - é apontado em sentido inverso, ou seja, como se houvesse por parte de um setor dos poetas ligados a essas vanguardas um afastamento da realidade em benefício de explorações formais (a propósito disso se publicou, por exemplo, no número já referido de Tendência, o texto de Haroldo de Campos ''A poesia concreta e a realidade nacional'').

Todos esses dados ligados ao trabalho de Afonso Ávila permitem detectar alguns elementos de destaque em sua poesia, pois se trata de uma obra em que convivem a temática social e política, a pesquisa histórica, a experimentação e a invenção poética. Assim, a história, por via do interesse especial do poeta pelo barroco, constitui matéria básica de um livro como Cantaria barroca (1975). Ainda em Barrocolagens (1981) encontram-se textos mais longos e aparentemente mais discursivos, mas na verdade altamente fragmentados, pois resultam, como indica o título, da colagem de trechos de textos de vários autores, substancialmente relacionados com a história do Brasil. Já Código de Minas (1969), um dos grandes livros da poesia contemporânea brasileira, realizou uma excepcional aliança entre uma perspectiva político-social e uma elaboração construtiva.

Mas a poesia de Afonso Ávila apresenta ainda outras linhas de atuação, como nas condensações lírico-irônicas de O visto e o imaginado (1990) ou naquelas talvez especialmente mordazes do Delírio dos cinqüent'anos (1984), em que são eliminadas quaisquer possibilidades de memória autocomplacente. No livro O belo e o velho (1987), que se poderia contrapor aos outros pelo aspecto mais discursivo do texto, destaca-se justamente uma organização de fato antidiscursiva, por meio de uma disposição gráfica que cria pontos de desarticulação para o fluxo do texto.

Em seu livro mais recente, A lógica do erro, são retomados vários dos pontos fortes que se encontram ao longo da obra de Afonso Ávila. No entanto, este é um livro excepcionalmente novo (se é que esta expressão seja apropriada para um livro cujo vigor surge da elaboração de uma violência com raízes profundíssimas). Na apresentação do volume, Jacó Guinsburg conseguiu com felicidade sumariar os aspectos centrais do livro, não sem estabelecer uma distinção entre aqueles que vieram marcando a obra do poeta e aqueles que constituem o traço novo deste volume. Talvez a grande distinção esteja em que a dimensão da memória, da auto-reflexão, da subjetividade, ''não flui mais como um ego definido, mas como um self-universo''. Assim, a individualidade que seria matéria dos poemas não ocorre de modo isolado; ela na verdade abarca o próprio contexto em que se situa. E esse contexto consiste no tempo em que essa individualidade está presente, sendo que nesse universo a dimensão cultural ocupa posição especial.

Desse modo, uma constante na obra poética de Afonso Ávila permanece de modo vigoroso neste novo livro - a inter-relação entre memória individual e história. E mais uma vez aqui cabe a observação de que se trata de uma memória sem autocomplacência, que se desenvolve nos poemas (sobretudo na segunda parte do livro) numa corrosiva exposição do enfrentamento entre os fragmentos de um percurso existencial (o que antes de tudo já é indicado extra-textualmente pela identificação de uma foto do autor no livro: ''O poeta chegando aos 70'') e os pequenos e grandes desastres do mundo.

No conjunto, os poemas desenvolvem uma reflexão sobre temas como a criação poética ou a passagem do tempo, temas certamente elevados, mas, por outro lado, essa reflexão se faz carregada de ''ironia hílare'', para usar expressão de Haroldo de Campos. Esses temas elevados não se desenvolvem exatamente enquanto tais, mas a partir da sucessão de elementos mais rasteiros, mais quotidianos. Se de um lado são a ironia e o humor ácido que de certa forma abrem as picadas críticas dessa poesia, de outro lado isto se faz em associação fundamental com alguns elementos próprios da constituição do poema. Um deles é a conformação do verso, que em sua extensão tende a pôr em questão a própria condição de verso, para o que ainda contribui a situação sintática, em que os nexos não se mantêm com regularidade, mas se rompem com freqüência, desorientando a possibilidade de uma leitura pacífica. O ritmo que assim se estabelece, com toda sua aspereza e imprevisibilidade, talvez seja o índice mais palpável dos desafios a que esta poesia se propõe.