A
lógica do erro
Affonso Ávila
Perspectiva, 206 páginas
R$ 26
Afonso
Ávila, um dos mais importantes poetas contemporâneos
brasileiros, ao longo de sua produção intelectual vem
desenvolvendo também atividades como pesquisador e como crítico.
É autor, por exemplo, da coletânea de ensaios O lúdico e as
projeções do mundo barroco. Além disso, tem-se dedicado de
forma constante, duradoura e profícua a permitir a circulação
de trabalhos de numerosos pesquisadores, propiciando a produção
de muitos desses trabalhos.
Isto
vem se dando, há mais de 30 anos, com a publicação da revista Barroco
- por ele criada e dirigida -, cujos números têm surgido com a
relativa regularidade permitida pelas dificuldades a serem
transpostas em empreendimentos desse tipo. São volumes alentados,
que reúnem trabalhos de importantes pesquisadores de várias áreas
que se dedicam ao estudo do barroco. A lembrança desses dados não
tem o intuito apenas de oferecer informações sobre o autor, mas
também de salientar como o objeto dessas suas atividades não está
distante de sua poesia.
Pode-se
ainda lembrar a ligação de Affonso Ávila com os movimentos da
poesia brasileira a partir dos anos 50. Nesse sentido, teve
participação fundamental num acontecimento como a Semana
Nacional de Poesia de Vanguarda, ocorrida em 1963 em Belo
Horizonte, que assinalou um momento importante das vanguardas
brasileiras surgidas na década de 50. Assinalou em especial a
aproximação entre o concretismo paulista e o grupo mineiro
reunido em torno da revista Tendência (da qual Affonso Ávila
era integrante) - o número 4 da revista apresentava um dossiê
intitulado justamente ''Diálogo Tendência-Concretismo''.
Essa
aproximação ressaltava exatamente um dado que até hoje - ou por
prejulgamento ou por lamentável desconhecimento - é apontado em
sentido inverso, ou seja, como se houvesse por parte de um setor
dos poetas ligados a essas vanguardas um afastamento da realidade
em benefício de explorações formais (a propósito disso se
publicou, por exemplo, no número já referido de Tendência,
o texto de Haroldo de Campos ''A poesia concreta e a realidade
nacional'').
Todos
esses dados ligados ao trabalho de Afonso Ávila permitem detectar
alguns elementos de destaque em sua poesia, pois se trata de uma
obra em que convivem a temática social e política, a pesquisa
histórica, a experimentação e a invenção poética. Assim, a
história, por via do interesse especial do poeta pelo barroco,
constitui matéria básica de um livro como Cantaria barroca
(1975). Ainda em Barrocolagens (1981) encontram-se textos
mais longos e aparentemente mais discursivos, mas na verdade
altamente fragmentados, pois resultam, como indica o título, da
colagem de trechos de textos de vários autores, substancialmente
relacionados com a história do Brasil. Já Código de Minas
(1969), um dos grandes livros da poesia contemporânea brasileira,
realizou uma excepcional aliança entre uma perspectiva político-social
e uma elaboração construtiva.
Mas
a poesia de Afonso Ávila apresenta ainda outras linhas de atuação,
como nas condensações lírico-irônicas de O visto e o
imaginado (1990) ou naquelas talvez especialmente mordazes do Delírio
dos cinqüent'anos (1984), em que são eliminadas quaisquer
possibilidades de memória autocomplacente. No livro O belo e o
velho (1987), que se poderia contrapor aos outros pelo aspecto
mais discursivo do texto, destaca-se justamente uma organização
de fato antidiscursiva, por meio de uma disposição gráfica que
cria pontos de desarticulação para o fluxo do texto.
Em
seu livro mais recente, A lógica do erro, são retomados vários
dos pontos fortes que se encontram ao longo da obra de Afonso Ávila.
No entanto, este é um livro excepcionalmente novo (se é que esta
expressão seja apropriada para um livro cujo vigor surge da
elaboração de uma violência com raízes profundíssimas). Na
apresentação do volume, Jacó Guinsburg conseguiu com felicidade
sumariar os aspectos centrais do livro, não sem estabelecer uma
distinção entre aqueles que vieram marcando a obra do poeta e
aqueles que constituem o traço novo deste volume. Talvez a grande
distinção esteja em que a dimensão da memória, da auto-reflexão,
da subjetividade, ''não flui mais como um ego definido, mas como
um self-universo''. Assim, a individualidade que seria matéria
dos poemas não ocorre de modo isolado; ela na verdade abarca o próprio
contexto em que se situa. E esse contexto consiste no tempo em que
essa individualidade está presente, sendo que nesse universo a
dimensão cultural ocupa posição especial.
Desse
modo, uma constante na obra poética de Afonso Ávila permanece de
modo vigoroso neste novo livro - a inter-relação entre memória
individual e história. E mais uma vez aqui cabe a observação de
que se trata de uma memória sem autocomplacência, que se
desenvolve nos poemas (sobretudo na segunda parte do livro) numa
corrosiva exposição do enfrentamento entre os fragmentos de um
percurso existencial (o que antes de tudo já é indicado extra-textualmente
pela identificação de uma foto do autor no livro: ''O poeta
chegando aos 70'') e os pequenos e grandes desastres do mundo.
No
conjunto, os poemas desenvolvem uma reflexão sobre temas como a
criação poética ou a passagem do tempo, temas certamente
elevados, mas, por outro lado, essa reflexão se faz carregada de
''ironia hílare'', para usar expressão de Haroldo de Campos.
Esses temas elevados não se desenvolvem exatamente enquanto tais,
mas a partir da sucessão de elementos mais rasteiros, mais
quotidianos. Se de um lado são a ironia e o humor ácido que de
certa forma abrem as picadas críticas dessa poesia, de outro lado
isto se faz em associação fundamental com alguns elementos próprios
da constituição do poema. Um deles é a conformação do verso,
que em sua extensão tende a pôr em questão a própria condição
de verso, para o que ainda contribui a situação sintática, em
que os nexos não se mantêm com regularidade, mas se rompem com
freqüência, desorientando a possibilidade de uma leitura pacífica.
O ritmo que assim se estabelece, com toda sua aspereza e
imprevisibilidade, talvez seja o índice mais palpável dos
desafios a que esta poesia se propõe.