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Abilio Terra Junior


 

Ébano


ébano
a cor escura de um mundo
povoado de deuses
de muitas danças e êxtases

de rituais antigos
de magia e mistério
de lindas mulheres
de homens imensos e pequenos

de música sincopada
de lutas entre tribos
de povos muito antigos
das profundezas da história

de rainhas suntuosas
de fantásticas pirâmides

de muita gente roubada
das suas terras divinas
onde brilha o eterno sol

algemada e banida
para uma terra longínqua
e aí escravizada
por tempos que não têm fim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Alma


uma alma apaixonada
sempre sempre a vagar
entre mil e uma estrelas
pousa em um sorrateiro bosque
que recebe raios
de uma rósea lua

se precipita ansiosa
em um precipício arcaico
em cujo fundo chão
se debatem
almas encobertas pela carne

que de si mesmas se esqueceram
e que vivem à cata
de vis e escusas nobrezas
que nada mais são
que momentâneos delírios
e gozos extemporâneos

ela também se perde
e encontra peso e substância
à medida que se entorpece
e que mais baixo desce
em cada dia que respira odores
que lhe provocam estertores

quando é subjugada
por lunáticos vampiros
que se chamam os donos
destes medonhos domínios

 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

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Helena Pedra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Ao Som de “La Mer”
(inspirado no filme “Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci)


braços despertos
procuram no escuro
curvas que ondulam
ao som de “La Mer”

é um amor prisioneiro
de um desejo primeiro
que rompe o frágil dique
que tenta sustê-lo

e a rubra prova escorre
na palma da mão

somos jovens
que no vinho encontramos
fugas
e delírios do amor

nossos jovens corpos
se encontram
se afagam

quem somos?

na dança das letras
a mente se embrinca

enquanto o coração
se afoga incerto
na corrente oculta
sob o árido deserto

grita-se liberdade nas ruas
e labaredas encrespam
a tarde
com lutas de parto

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Carmen Rocha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Canção do Amor Febril


entre penumbras fantasmas
permeadas por mil asas
ausculto o vibrar da vida
perseguida por ciclopes

e num entardecer sem fim
um canto triste e mortiço
me enfeitiça e me inebria

minha alma confusa se aninha
entre as pernas de uma negra
rainha das trevas oblíquas

sedenta bebe seu líquido
sedutor e marítimo

e minha alma se ergue
trêmula se apaixona
pela deusa milenar e complexa

e com ela ainda vive
entre beijos e amplexos
em outro convexo universo

 

 

 

Allan Banks, USA, Hanna

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Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Esta Vida Minha


nestas algaravias
de tortuosas magias
muitos se quedam confusos
pois do distante oriente
procedem tais alfabetos
depois entoados
já em forma de fados

e chegaram à nossa terra
onde mudaram seus usos
ante costas tão belas

eu tento me entender
e uso para isso a língua
mas ainda me perco no fuso

pois muito do que se passa
não se trata de u’a massa
mas começa
nas inconscientes penumbras

e assim como o nosso universo
gira em torno de um buraco
negro e perverso
que vive a devorar
miríades de estrelas

esta vida minha
singra uma espiral
entre o bem e o mal

que nada mais são que símbolos
de uma sina sutil
que não se enquadra
em um perfil

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Na Capital


uma pequena elevação
por onde os carros sobem e estacionam
junto aos blocos funcionais

folhas pigmentam
o piso de cimento e concreto
árvores magras e bojudas
espalhadas pela quadra e pistas

uma imensa garagem sob o bloco
um elevador para os moradores e suas visitas
e outro para as domésticas

do outro lado da rua bancos escola de judô
um pequeno prédio onde mora
uma moça alta e magra
de rosto rubro e cabelo crespo

as crianças brincam na área aberta
que dá acesso aos apartamentos
e adoram o velho porteiro
que acaba sendo demitido
devido às más línguas

eu vou de ônibus funcional todo dia
para o ministério lá na esplanada
onde os ministérios estão enquadrados
como soldados numa parada

ao fundo
os três poderes
em uma só praça

as cigarras cantam em escala sideral
e aparecem secas agarradas aos troncos das árvores
junto aos meus pés ou às patas da nossa cachorrinha
que procura a sombra

aves de rapina fazem blitze
sobre nossas cabeças
na praça das fontes
do gigantesco parque

 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Pétalas


pétalas despudoradas
imantadas de dor
circulam em torno de mim
com seu odor
que me aquece o sangue

persigo-as
e elas se fecham
em um botão hermético

descanso
e elas se abrem
e sorriem com suas faces coloridas
trocam segredos
troçam de mim

ameaço-as
e elas mudam de tons e formatos
e se agrupam como folhas espinhentas

pétalas formosas
sedosas
ganham o espaço
e formam mil arcos
que me indicam
o caminho do fim

 

 

 

Ticiano, Salomé

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Sonia Sales

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Poetas e Passarinhos


a lua
metade preta
dá meio sorriso

o traseiro da princesa
encontra-se
a meio caminho

o comprador de lâmpadas
de Aladim
(afim)
pisca um olho
pra aia

na praia
do mar sem fim
ela cuida do seu pássaro

notas
sobrecutâneas
cheiram a roubo

escrevo
perto do sol
e sinto inspiração

mas à meia luz
solto
lavas labaredas

escorracho
os rebentos
que não estejam atentos

tropeço
no sobrenome
que saltou sobre o nome

na alcova vazia
dedinhos
dedões serões

o disco
se diz amigo
e leva muitos consigo

eu rio
de tanta pena
levada pelo redemoinho

e penso
que minha pena
acaba por ser amena

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Rosane Villela

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Rei ou Súdito


entre as matas ciliares
andei portando andrajos
que ainda mais se consumiam
ao contato com os espinhos
e com os falsos moinhos
que apenas meus olhos viam

nestas andanças noturnas
por tantos ásperos caminhos
era seduzido e movido
pela magia da lua
que de tão branca e tão pura
me levava ao seguido êxtase

imaginava-me um príncipe
com um séqüito formidável
ou um sábio notável
ganhador de muitos nobeis

mas minhas estrepolias
eram bem mais humildes
de um trôpego forasteiro
a cata de aventuras
que de tão fúteis e inúteis
valiam não mais que um vintém

esta minha humilde história
assim tão inglória
conto-a para os amigos
que com sua boa índole
saberão entendê-la

e olhem que de repente
consomem-me versos ardentes
que transponho para o papel
pois não é que sou poeta
admiro-me a medida
que me movo
entre alvoroçado e contido
entre estrofes de mil moldes

a vocação me domina
e minha musa mui sutil
me leva pela mão
ao nosso lar incorpóreo
em que sou rei ou súdito
segundo a ocasião

 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Regine Limaverde

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Abilio Terra Junior


 

Sou um Lobo


sou um lobo pachorrento
que coço as orelhas
e me espreguiço
ao por do sol

sou um lobo teimoso
que nem um jumento
que não arredo pé
da minha loba

sou um lobo alfa
que domino minha alcatéia
com meu olhar incisivo
e mantenho meu posto
com destemor pose
e gosto

sou um lobo meloso
que me deixo seduzir
naquelas noites
de lua cheia

em que minha loba
se achega
lambendo meu focinho
com seu olhar
que é só amor

sou um lobo cônscio
do meu papel
não sou rei
de um bordel

minha alcatéia
segue
leis milenares
ditadas por mim
que herdei
dos meus ancestrais

tudo corre a tempo
e a gosto
na ordem natural
seguida
por todos os lobos

e por isso sei
que sou um membro
eleito
pelo majestoso rei
que comanda
o universo

nada temo
tenho minha alma
em paz
apesar do meu apetite
voraz

sei que respeito
todas as leis
inquebrantáveis
e notáveis
de que só eu sei

 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

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Marina Leitão

 

 

27/12/2005