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Adelmo Oliveira


 

Balada dos Erros de um Profeta

Joys laugh not! Sorrows weep not!
William Blake

Man, an explosion
walking through the night
in rich and intolerable loneliness

Walt Whitman


Trago para dentro do mundo
Longos dias sem manhã
Longas noites sem aurora
– Estrelas caídas de bruços
No vazio

Trago para dentro do mundo
A Voz – signo obscuro do medo
Grito de silêncio devorado pela esfinge
– Pedra-enígma da mente
Na vertigem

Trago para dentro do mundo
O Sol – zodíaco das trevas
– Touro selvagem empalhado
Cuja língua vomita da boca
Sangue coagulado

Trago para dentro do mundo
A Terra – bólide errante das esferas
– Assobio de náufragos e transeuntes cegos
Que trauteia um eco surdo nos ouvidos
E nos passos que se perdem

Trago para dentro do mundo
A Lua – corvo branco da noite
Que ludibria o terror das sombras
Que dissimula a morbidez da loucura
E afia seus punhais contra o desespero dos dragões

Trago para dentro do mundo
Este navio sem origem
– Este porto sem mar
Cuja âncora atraca na raiz das ruínas
Arquivos de ilusão

Trago para dentro do mundo
Aquilo que é o meu corpo
Aquilo que é a minha alma
– Sopro veloz de um único suspiro
Entre o início do princípio e o ocaso do fim


Ipitanga - 14.02.2004

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Adelmo Oliveira


 

Fragmentos da noite

A Jair Meira, amigo


A lua que de longe no caminho
Alumiava a sombra dos meus passos
Dividindo o silêncio dos compassos
Nas canções de viola e cavaquinho


E zonzo - aquela voz pelo caminho
Prendia a grande noite num abraço
- A noite que fingia de cansaço
Passando vaga - derramando vinho


Acima da cabeça ouvia os astros
E via dentre os anjos uns penhascos
De nuvens - um tremor de desvario


E depois da ilusão na madrugada
Meu rosto se desfez - fez-se de lágrimas
- Era a vida - E corria como um rio


(Inédito)

 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Rubens, Julgamento de Paris

 

 

 

 

 

Adelmo Oliveira


 

Insônia


Avança madrugada vizinha
O sono não é o teu vigia
- O sono não chegou às pupilas

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.

Avança madrugada sozinha
O frio corta a pele matutina
- Gritam sapos que saltam tablados
Lá nas baixadas do Rio Sapato.

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.

O vento de açoite está uivando
Uiva nas esquinas
madrugadas
Com medo de lembranças que batem
- Cantigas antigas de ninar.

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.

Avança madrugada vizinha
- Cigarro
Joguei pelas cortinas
Das sombras da memória que vinha
Levando pedaços desta vida.

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.


(Inédito)

 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Sonia Sales

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Adelmo Oliveira


 

Soneto (Quero partir o espelho deste enigma)


Quero partir o espelho deste enigma
Que tanto me atormenta e me rodeia
Nem sei quando ele nasce e me acontece
Mas sei que fico preso numa teia.

E me deixo caído quase em sangue
Numa poça de lua em algum cais
Este mito desperta oculto pranto
Nem sei para onde vou - para onde vai.

Sei que tal força vem das tempestades
Consumindo as marés num cais de pedra
Onde o mundo cortou a eternidade.

Demônio ou mito pendular da lágrima
E me atiro na fúria destas águas
- Neste oceano onde nasceu minha alma.


(Canto Mínimo, 2000)

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Vidula Sawant

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Adelmo Oliveira


 

Soneto da última estação (Mitologia Marinha)


Esta que vem do mar por entre os ventos,
Sacudindo as espumas dos cabelos,
Vem molhada de azul nos pensamentos,
Seu corpo oculta a ilha dos segredos.

Vem e dança ao andar sobre as areias
Úmidas sob os passos e os desejos,
Onde as ancas são ondas em cadeias
Infinitas de luz contra os espelhos.

Nem precisa de flor nem de perfume,
Ela é a própria essência do ciúme,
Feita de mito e se fazendo estrela.

Vem – dança – e passa aos fogos do verão
– Fantasia da última estação.
Explodiu na vertigem da beleza.


 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Marina Leitão

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Adelmo Oliveira


 

Meu natal de sempre


Ficou na sombra a casa onde morei
As árvores do quintal, a ventania
E eu, ainda pequeno me recordo
Quanto chorei, quando cantar devia

Ficou no céu o tempo que sonhei
– Sapato de verniz dependurado
Num saco bem vazio de esperança
– Meu barco se perdeu em águas negras

Não finjo o sonho em que me sustentei
No portal da janela de meu quarto
– As bolas de borracha coloridas
– Revólver de brincar de detetive

Meus irmãos já tiveram as mesmas coisas
Meus amigos também o que não tive
– A vida da presente todo dia
– A dor que sinto agora não sentia.

Ficou no rosto o traço que não tinha
– A solidão que sopra lá de fora
Multiplico os minutos pelas horas
E tenho as mesmas horas repartidas

Ganho então um presente de lembranças
– Uma flor na lapela e meu cansaço
Costuro mágoas e as transformo em ânsias
E corto a fantasia em mil pedaços


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Adelmo Oliveira


 

Fragmentos de uma canção que morria


A efígie apocalíptica do Caos
Dançava no meu cérebro sombrio

Augusto dos Anjos

Whith suth name as “Nevermore”
Edgar Alan Poe


Altino Soares
– O Rio do Ouro secou
Um galho de pau d´arco arriou
                   à beira do caminho
– Aquela estrada antiga não chegou
                   até o Morro da Velha

Meu pai dizia
– Menino
         as estrelas variaram no céu
         as veredas já cruzaram o destino
Ainda ontem
         o relâmpago incendiou o boqueirão do dia
Reduzindo escarpas de pedra
         em torrão de cinzas
Noite de breu
         um cargueiro rangia
         nas curvas molhadas dos trilhos
Assustando o medo de assombração
Nos esconderijos das Grotas da Guia

Altino Soares
O zabelê na tarde cantou onde eu não existia
Longe
         nas travessias do pensamento

Espíritos da maldição rondavam o Sítio da Finada Gutarda
Onde cães ferozes
         em vão
         latiam contra a palidez da lua

De repente
         na Serra do Tombador
         um espantalho jogou os braços pelo vento
– Um grito partiu ferido
         gelado
         da vertigem das alturas
E caiu
         de queda súbita
         Num poço escuro
                   de águas mortas

Depois
Depois
         O silêncio escondeu a solidão
                  atrás do Morro da Velha

(Os espectros são mentiras da realidade
– A luz da visão confundiu os espelhos
Um gesto se fez retrato de memória
– A fantasia interpretou a ilusão)

Altino Soares
– O Rio do Ouro secou
O zabelê na tarde cantou onde eu não existia
– A loucura riu de mim
Aquela estrada antiga não chegou
          até o Morro da Velha


 

 

 

Ticiano, Salomé

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Teresa Schiappa

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Adelmo Oliveira


 

Noturno

Para Jeovah de Carvalho


Na minha cama de menino verde
Na minha cama de menino verde
Deitado em coberto de antigo dorme bem
Pelas coisas que via nos olhos do passado
Aquele apito surdo de trem
Vinha montado com esporas agudas de medo

Aquele apito surdo
                             era um pregão da noite
Dentro
          gelado
                    sombras negras do inverno
Aquele apito surdo de fogo
                                         e de foice
– Fantasma parado na estação ferroviária do leste
Dentro da noite breu
Vinha montado com esporas agudas de medo

Na minha de menino verde
Na minha de menino verde
Aquele apito surdo da noite
Chamou a cidade para dentro do peito
A ventania de pátinas sacudia ou uivos do telhado
E a maldição apagou as últimas estrelas
Que não via
                    dentro da alma e do abismo
Aquele grito de máquinas a ranger de aflito
Vinha montado com esporas agudas de medo

O trem queria partir
                             e não partia
Era alguém que partia
                             e não sabia

Ruídos de patas de gato
Unhavam as sensações do mistério

O trem fugia de mim
                             e não partia
Era alguém que partia
                             e não existia
Talvez um dragão de visões de lua
Encrespando o cabelo das rodas do tempo
Aquele apito noturno do mundo
Vinha montado com esporas agudas do medo

Na minha cama de menino verde
Na minha cama de menino verde


 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Renata Palottini

 

 

13/07/2006