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Adrianne Fontoura


 

Instante

 

 

Noite do dia 4, madrugada do dia 5 de abril, 2004


Sobre a folha manchas negras de nanquim.
Antes fosse escura bruma em noite serena.
Corpos entrelaçados - eu em ti, tu em mim:
desenho divino traçado sem pena.


Com a carne dos lábios e da mão minha
contorno teu corpo como quem tenta
segurar o instante que definha
na noite que passa em hora tão lenta.


União da vida e da morte na água:
origem e fim de tudo o que vive.
Libertam-se dois seres da dor e da mágoa.
Absurdo de prender-se tornando-se livre!


Te vejo em espanto proferir a quem escreve
soltas palavras, metafisificadas.
Compreensão do encontro soturno e breve
das metades do andrógino unificadas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

Adrianne Fontoura


 

Espelho


 

Face,
olha-me atenta.
Especte!
Movo-me lenta.
Espere.
(Sorriso. Desgosto.)
Descreve
o desafio proposto.


Espelho,
sou diferente
do reflexo
transparente,
sem nexo.
Onde estou?
Superfície.
O que restou?
O que não disse.


Sofro.
Amo, amei
a ti, tanto
amarei
ainda, enquanto
passa tudo,
o tempo em mim
já mudo.


Que seja assim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, The Knight at the Crossroads

 

Adrianne Fontoura


 

Pintura fraseada

 

 

O som, o sono, o sonho, o ser
e tudo mais que te pertence,
não sei quanto, até onde,
ou quando mais do que eu pense,
prenda e atribua ao que se esconde
valor maior do que o aparente, revelado,
o que me fala, o que me conta;
o que me sara, me fere enamorado
de toda sensação que desponta.


O copo, o vinho; o corpo sozinho
e todo o resto não visto,
sem nome, noite, beijo, carinho
e o saber da busca por quem insisto,
tanto quero, estranho, afago e espero.
A voz que vejo, passos que visto,
me despindo da pele, me desespero.
Em carne viva, na boca salgada
o pranto rola; rimel, maquiagem,
nanquim, água que tudo desbota da amada
que te esboça com tinta, palavra, (sem) imagem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

Adrianne Fontoura


 

Cama cálida ou Ciúmes de Camila (fragmento)

 

 

(...)
São belos os nomes que te embalam
os sonhos que escrevo em todos meus versos.
O ciúme confesso em noturnos que calam
o eco dos teus pensamentos diversos
(ficção desta que, sozinha, enfrenta
o tédio,a saudade, inventa universos
de ritmada conspiração em hora tão lenta).
A cidade, a noite em meus olhos dispersos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

Adrianne Fontoura


 

A ave sai do ovo

 

 

Por vezes, quando até de mim esqueço,
uma pergunta ou outra toma forma
e, nessa viagem ao profundo abismo desço
com olhos de quem teme a resposta.
Desço, e descubro-me já a espera de mim.
E sou eu quem anda e observa o passo que erra,
o céu que se alarga e, do Universo, o fim
(pois é aqui dentro que tudo se encerra).
Mostro-me. Sou o espelho e o olhar espelhado.
Tenho asas que me entregam e minha voz proclama:
“Não pertenço a este lugar; meu o corpo ensopado
das lágrimas que escondo, desfalece mudo.
Não julgarei a carne que se ala
nem o espírito que se reparte vendo e que é visto.
Sem valores que aprisionam pelo medo que cala,
existo enquanto altos vôos e distantes terras conquisto.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

Adrianne Fontoura


 

Som

 

 

Que a Lua caia sobre mim
e essa luz clara me embriague.
Que a noite inicie sem ter fim
e este silêncio condense em gotas, sangue.
Que eu viva cada cor
e que cada forma se desfaça em pétala.
Que seja a essência do amor a flor
e que a flor seja palavra, sentença
ecoante e bem feita na garganta.
Que seja o ouvido a morada densa
do som que se propaga enquanto alguém canta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

Adrianne Fontoura


 

Revelação

 

 

Abram o caminho para a Bruxa que passa em corvo!
Sou eu em minha escura sombra nua.
Tombei máscaras e tornei-me posse minha
para jamais ser de ninguém – nem tua.
Descobre-te em mim e não compreendes como
é possível que estejas impresso em alma estranha.
Mal sabes que o Destino tem nossos nomes e que nada tomo:
nem um segredo, sentimento ou passo que te acompanha.

 

 

 

 

 

 

10.11.2005