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Antônio Torres

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Ensaio, crítica, resenha & comentário:

Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vera Queiroz

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

Antônio Torres

 

A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil

12.10.2007

 

Na Bahia não há  atenção e espaço para o escritor

 

 

 

 

 

Ele é conhecido como um exímio romancista, que dilacera a alma de seus personagens em palavras certeiras e sempre bem esgrimidas.
Mas, uma das melhores características de Antonio Torres – e que talvez contribua sobremaneira para a sua prosa escrita – não está ao alcance da massa que o lê: é um conversador de mão-cheia, sempre disposto a entabular um bom papo. E, se o lugar for o espaço que o homenageia, na livraria Letras e Expressões do Leblon, Rio de Janeiro, melhor ainda. Lá, no Café D’Antonio Torres – nome que alude seu livro, Um Táxi para Viena d’Áustria –, ele é sempre encontrado e haja prosa fiada.
De uma dessas conversas, em “seu” café, saiu a entrevista que segue, concedida à repórter Ceci Alves, em que fala de seu novo livro, Sobre pessoas [Editora Leitura], que nada mais é do que uma longa conversa com o leitor sobre “as pequenas grandezas humanas”, que sempre o surpreendem positivamente.

 

A Tarde: O que aconteceu com esse intelectual, com essa pessoa? 

ANTÔNIO TORRES: Estamos todos dominados.

 

A Tarde: Dominados ou entorpecidos?

ANTÔNIO TORRES: Mas o entorpecimento faz parte da dominação. Estamos todos dominados como a turma da droga fala. “Tá tudo dominado” pelo neoliberalismo, pela falta de utopias, pelo fim das utopias. Lendo Glauber, agora, me assustei. Tá faltando esse cara nesse momento. E esse cara, agora, é que ia ser chamado de louco. Mas, que venham os doidos! Chega de tanta mente sã, nesse sentido que está aí. Chega de politicamente correto, chega desse tempo onde a crítica é malvista, qualquer voz discordante, hoje, é politicamente incorreta... Quer dizer, temos todos que ser, assim, os bons cordeiros de Deus! Aceitar pacificamente esse destino inescapável da dominação globalizada, do besteirol, da bobajada. Você vê o que está acontecendo hoje na política? Cadê a reação? Claro, não quer dizer que todo o mundo é a favor disso, não, mas você não vê nenhuma manifestação. É preocupante. A gente está num momento de apatia. Mas, essa apatia tem um negócio que é uma mistura de passividade e perplexidade, e as pessoas, sem saber pra onde ir, qual é o canal de de atuação. Qual o canal de comunicação, como participar? É um momento preocupante. E tudo isso que digo veio à propósito de quando eu recebo o livro e releio a entrevista que o Glauber me deu em 1964, no lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em São Paulo. Reler essa entrevista me levou ao ponto de fazer essas considerações.

 

A Tarde: Até que ponto esse estado de coisas que estamos vivendo contribui com a cultura brasileira? 

ANTÔNIO TORRES: Claro que tem influência, sim. Mas não é propriamente uma estagnação. A energia está direcionada em outro sentido, está direcionada na sobrevivência. E pegue essa sobrevivência num sentido muito mais amplo. Sobreviver com espaço em editora, livrarias, com espaço na imprensa, tudo isso demanda um dispêndio de energia muito grande. A competição agora é outra, não é pelas idéias, é pra quem vai ter o espaço dentro do quadro editorial que está aí. Tudo tem que ser marketizado, a cultura está ficando algo fashion, se o autor não estiver fazendo parte do mundo do espetáculo, ele tá fora do mercado, ou vai ter destino muito mais penoso. E o grande dispêndio de energia está já em compreender as regras do jogo, aceitá-las, senão você é tido como louco. Por outro lado, hoje há mais autor por metro quadrado do que leitor, e começa o gasto da energia pra você achar o seu lugar no meio dessa multidão.

 

A Tarde: A gente está vivendo uma miséria cultural, para usar um termo do crítico de cinema baiano André Setaro? 

ANTÔNIO TORRES: O que está havendo é um empobrecimento da linguagem. E quando você empobrece a linguagem, você está empobrecendo o pensamento. Está havendo um empobrecimento estético. Para mim a literatura é uma coisa muito simples, simplérrima (risos): é a conquista da linguagem e o domínio do estilo. E se não há mais interesse nisso, na linguagem e no estilo, ela vai se empobrecer. Talvez os autores, de alguma maneira, caminhem para ser submissos às imposições desse leitor de hoje, muito pouco exigente em termos de linguagem. E isso é muito triste porque quanto mais nos mantemos fiéis ao nosso projeto literário, menos leitores vamos ter. Eu creio que corremos o seguinte risco: ou você entra no mercadão, ou seja, esquece a qualidade e entra no consumo desbragado, ou você se mantém fiel à busca de uma qualidade pra se comunicar apenas com uma confraria.

 

A Tarde: Você acredita que a Bahia é cruel com seus filhos?

ANTÔNIO TORRES: Engraçado que em 1976 eu fui até para o lançamento do Essa Terra, que era um best seller. E o Joca [João Carlos Teixeira Gomes], que era diretor de redação do Jornal da Bahia, me pediu pra fazer um depoimento, que ele ia dar capa do caderno. Aí, fiz um depoimento assim: “Essa terra, doce e cruel”. A Bahia é uma terra muito forte, meus livros são muito trabalhados em cima dessa força de atração dela sobre os que partem. Os que voltam e se matam, até. Quer dizer, é um desencontro tão forte, que isso é recorrente, essa coisa de sair, voltar e se matar. A Bahia tem uma história muito forte, tradições muito fortes, uma experiência étnica fortíssima, o amálgama da Bahia é extraordinário. Mas tem uma coisa mal resolvida. A coisa do escritor é mal-resolvida. Você tem uma tradição de escritores, que vai de Castro Alves a Jorge Amado. Mas, depois, houve uma política muito de difusão da rua. Da cultura de rua, de massa. E se obliterou a literatura. A literatura não foi incluída. E isso olhando pra Salvador, especificamente. Ficou uma política cultural de palanque. É trio elétrico, é Carnaval, é festa de largo... Tudo o que faz parte até das tradições, mas que foram marketizadas ao extremo. Tudo bem, a vocação da cidade é essa, mesma. Porém, não precisava abafar tanto a cultura livresca. A grande queixa está nisso. E não existe uma política, também, uma  atenção, um espaço pra o escritor ocupar.

 

A Tarde: Como você vê o mercado editorial brasileiro hoje em dia, com tanta mobilidade e entrada de capital estrangeiro? 

ANTÔNIO TORRES: Eu acho que o mercado editorial brasileiro teve grandes picos, ou ciclos, que foi o ciclo José Olympio, o ciclo do Ênio Silveira, e só até onde a minha memória alcança. Aí, no final dos anos 80, chegou o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. Ele chegou uma visão, digamos, mas chique da literatura. Com edições bem cuidadas, tratamento gráfico diferenciado, começou a pegar autores brasileiros, fez uma coleção muito boa, eu entrei no bolo, lancei lá o Um Táxi para Viena d’Aústria, e senti o impacto, que foi fantástico. Eu acho, sinceramente, que o Schwarcz foi muito saudável para o mercado naquele período, porque ele levou as editoras a adquirirem uma nova postura diante dos autores brasileiros, diante do livro, o livro como produto, o tratamento do livro na imprensa. Hoje, todo mundo faz livro bonito no Brasil, todo mundo tem imprensa, todo o mundo disputa espaço na mídia, tanto faz ser grandona, média, pequena... O mercado, realmente, ganhou um grande impulso. E, agora, estamos num terceiro tempo, que é o da investida estrangeira. A invasão espanhola. Aí, você vê os grandes grupos hispânicos entrando aqui firme, comprando as editoras locais, como é o caso da Santillana, com a Moderna, da Alfaguara com a Objetiva, e a Planeta, que se implantou sozinha... Pra mim, o que fica disso todo é o seguinte: reclamasse que o Brasil tem pouco leitor, tem pouca livraria, que é um País ainda não suficientemente alfabetizado... Com os problemas todos que a gente está careca de saber. Mas, eu tenho a impressão que essa gente está investindo no futuro. Quer dizer, é de se crer que, na análise econômica desses grupos empresariais, esse futuro é bom. Ninguém vai botar grana assim se não vir uma possibilidade enorme de crescimento do mercado.

 

A Tarde: Como define seu novo livro? 

ANTÔNIO TORRES: São exercícios efêmeros que acabaram por me dar uma idéia da minha própria trajetória pessoal, de minhas vivências, em diferentes momentos. E que me deixou um pouco pensativo sobre esses tempos, o que torna inevitável uma comparação com o tempo atual. Eu sei que a minha marca é de romancista, fui um cronista temporário de jornais, não tenho altas pretensões de ser reconhecido como cronista. Mas, me fez bem publicar um livro de textos impuros, efêmeros, mais leve. Espero que seja um divertimento para o leitor. Algo despretensioso, cuja única pretensão é de que quem leia se sinta batendo papo com essas pessoas. E essa descoberta que também me surpreendeu: que tudo o que eu escrevi até hoje foi sobre pessoas. Todos os meus personagens, foram sobre pessoas, em primeiro lugar, e os lugares dos encontros com essas pessoas.

 

A TARDE: Vamos começar por seu novo livro, o Sobre pessoas?

ANTÔNIO TORRES: Sobre pessoas saiu pela (Editora) Leitura, porque foi um convite para integrar uma coleção de cronistas, que tem Marina Colasanti, Alcena Araújo, Miguel Santos Neto, Carlos Herculano Lopes e todos autores da Record. Quando me convidaram, eu pensei: já que convidaram todos da Record [risos]... não tem problema... Aí, não me contive só em catar crônicas publicadas aqui e ali, passei um pente fino em toda a minha produção, reescrevi muita coisa, e produzi textos novos, como aquele sobre Glauber Rocha, por exemplo, que é um texto novo, embora aquela entrevista que ele me concedeu seja bem antiga, publicada há muito tempo. E escrevi um texto sobre o poeta português Alexandre O’Neil, que me deu muita emoção. Morei em Portugal, cheguei lá no dia 25 de junho de 1965, e nesse exato dia eu o conheci e ficamos amigos para sempre. E é um grande poeta. Publico até uns poemas dele, para dar uma mostra ao brasileiro, já que ele não é conhecido aqui. Porque, também, desde que eu vim de lá, eu propus a editores fazer uma antologia dele, e ninguém topou, porque achavam que ele era desconhecido, que não vende. Aí, no livro, eu faço uma mini-antologia, só para que sintam a força criadora desse poeta. Tem também dois textos que apresentei na Bahia: “Idéias de Jeca Tatu”, que foi uma conferência que eu fiz, ano passado, em Jequié, na Universidade do Sudoeste baiano, num simpósio de Monteiro Lobato. Eu a retrabalhei um pouquinho e publiquei como texto, mesmo. E o outro foi “O Roteiro Sentimental de um Leitor de Jorge Amado”, uma conferência que eu fiz nas Faculdades Jorge Amado, ano passado, a convite da Fundação Casa de Jorge Amado, e da Academia de Letras da Bahia. E, como eu senti que a Myriam Fraga chorou quando eu acabei, tava lá o James Amado, a Luisa Ramos Amado, e me pareceu que também gostaram muito, resolvi publicar como texto, também, mudando um pouco o final. Escrevi um texto novo, também, sobre D. João VI, pra fazer justiça ao rei feioso que fez o bem que nos pôde, mas,  Até hoje, é sacaneado.

A Tarde: Fale um pouco dessas pequenas emoções a que você se refere no livro... 

ANTÔNIO TORRES: Vamos começar pela crônica sobre Fernando Sabino que abre o livro. Faz algum tempo o Ziraldo assumiu o Caderno B do Jornal do Brasil, e me convidou para ser cronista diário. Queria que eu fizesse uma coluna do tamanho da do Cony, na Folha de São Paulo. A primeira crônica que eu fiz foi assim: “Pra Começar”. Aí, fiz me lembrando da última crônica do Fernando Sabino. Saiu aquilo, e eu senti, porque houve uma festa, três dias depois, o lançamento do novo Caderno B, e as pessoas vinham, o Roberto D’Ávila chegou e me pediu a crônica, porque queria mandar pra filha... Já na noite do lançamento de Sobre pessoas, chegou uma senhora que disse, sem quê nem porquê: “Eu fui casada com Fernando Sabino”. Aí, mostrei que a primeira, crônica, “Pra começar”, era com ele. E ela disse: “Agora, vou chorar...” Então, isso quer dizer o seguinte: ao pegar esse material, eu não me dava conta que eu tinha escrito muito sobre essas coisas, essas relações bacanas das pessoas comigo, que me ajudaram em algum momento... Essas pequenas grandezas humanas, que você vai descobrindo. A grandeza do Glauber Rocha comigo, naquele dia, foi um negócio fantástico! Eu era um foca, um desconhecido, ele era um cara famosão, teve uma atitude comigo inesquecível. Tava no auge, explodindo, não tinha tempo pra nada, e foi pra máquina de escrever me responder. Respondeu tudo por escrito, e é uma entrevista antológica. Aquilo mexeu muito comigo, ler aquela entrevista de Glauber. Tá faltando esse cara hoje. Tá faltando Glauber, hoje! Mexeu comigo, de uma forma a me fazer mal, a me incomodar! O que é que eu ando fazendo nesse mundo? Que atitudes o escritor está tomando, o cineasta, o intelectual, o pensador, hoje... Cadê esse visionário, esse camarada que sabe botar os pontos nos is, que sabe botar a boca no trombone, sabe conceituar, pensar o País, o tempo! Essa entrevista, lida, agora, me fez muito mal!


 

* Antônio Torres, 67 anos, é natural do povoado de Junco, hoje município de Sátiro Dias. Publicou, entre outros, Essa Terra (1976) e
Um Táxi para Viena D´Áustria (1991). Ganhou, pelo conjunto de sua obra, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2000.

 

   
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conceição Paranhos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vera Queiroz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nelly Novaes Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlos Augusto Viana
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

26.11.2006

 


 

Antônio Torres,

filamentos de uma escritura

 

Antônio Torres ocupa, na ficção brasileira, uma posição singularíssima: tece, como poucos, um texto peculiar, posto longe das tendências ou das correntes literárias, ao mesmo tempo em que, diante do leitor mais atento à elaboração da escritura do que ao próprio desenrolar-se do enredo, constitui sempre um desafio: decifra-me ouCarlos Augusto Viana devoro-te. E tal peleja se torna mais árdua quando o romancista trabalha com temas recorrentes, como, de modo específico, dá-se com a trilogia, iniciada com ´Essa Terra´, seguida por ´O cachorro e o lobo´ e que fecha o círculo, agora, com ´Pelo Fundo da Agulha´. (Editora Record, 220 páginas) Tais questões integram o motivo maior dessa edição, pois Antônio Torres estará em Fortaleza, na próxima terça-feira, dia 28, para, no Centro Cultural do BNB, abrir o Seminário ´Migrações: geografia das palavras´ - evento coordenado pelas professoras Sarah Diva Ipiranga e Solange Kate Araújo.

A linguagem é uma estrutura simbólica que comporta a realidade.  Através dos signos lingüísticos, os homens se comunicam entre si a a respeito do mundo - mas não com o mundo. Há, portanto, uma separação entre sujeito e objeto; os signos circulam entre os indivíduos, comportando um sentido que exige uma investigação: ´A linguagem reclama o pensar: a palavra é propriamente o esquema do conceito; quem a profere vai ao conceito´. (DUFRENNE, 1969, p. 31)

Múltiplos são os caminhos por que se pode ler uma obra literária; no entanto, em se trataando de romance, deve-se, antes de tudo, concentrar uma especial atenção no título e (caso haja) na epígrafe - principalmente, se esta se referir ao texto como um todo. (O título há de ser retomado mais à frente; por enquanto, urge a epígrafe.) Em ´Pelo Fundo da Agulha´, conscientemente ou não, (pouco importa) a epígrafe, em vez de posta no frontispício, (nesta posição sofre, quase sempre, o desprezo do leitor) assiste à entrada do primeiro capítulo: "A fronteira crepuscular entre o sono e a vigília era, neste momento, romana: fontes salpicando e ruas estreitas com arcos. A dourada e pródiga cidade de flores e pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou entre escombros de guerra alemães, ou esquiando na Suíça e num hotel entre a neve. Algumas vezes, também, era um barbeiro da Geógia, certa madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na região sem tempo dos sonhos".

Este fragmento é da escritora norte-americana Carson McCullers. Nascida em Columbus, (Geórgia) partiu, ainda adolescente, para Nova Iorque, perseguindo o sonho da fama como escritora. Viveu, na carne e na alma, o choque cultural, bem como o tormento de ter o comportamento social (vivenciou as mais diversas transgressões) regulado pelo olho da opinião pública. Sua ficção, cuja  atmosfera remonta à densidade psíquica de Dostoievsky, é plena de comportamentos macabros e configura o viver como a expressão de um pesadelo.

Todo esse intróito se sedimenta numa funcionalidade: preparar o leitor para o universo que, a partir de agora, irá palmilhar, da mesma forma como, num lance antecip A Tardeório, mostra uma identidade entre essa escritura (a própria escritora) e o protagonista da trama que, então, há de abrir-se ao leitor. O protagonista da ´Trilogia do Suicídio´, de Antônio Torres, tem o seu percurso ontológico no seguinte movimento pendular: Totonhim - Antão Filho - Totonhim, uma vez que vive aquele mesmo impasse da personagem lírica do tearum mundi drummoniano: ´Você marcha, José! / José, para onde?´. (DRUMMOND, ), delineando, assim, o desajuste entre o sujeito e o mundo - situação, aliás, que inaugura a narrativa:

Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios.

Cá está ele: na cama.

Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas da sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor. Assim o vemos: deitado. Imóvel. A olhar para o teto e paredes de um quarto. E a assustar-se com a sombra de uma cortina em movimento, que supôs ser o fantasma de uma alma tão penada quanto a sua. Uma alma de mulher com certeza. (p.7-8)

Assim, a narrativa põe diante do leitor uma personagem entregue a divagações e a incertezas, apontando, por outro lado, duas preocupações temáticas por que há de orientar-se a organização da trama: o estrangeiro e a metrópole; ou seja: o estranhamento que resulta desse encontro; por um outro, a construção do discurso, com pausas dramáticas e cortes abruptos, ressalta a problemática da linguagem como um dos elementos-chave dessa criação ficcional.

A princípio, a desfiguração do espaço entranha-se à da personagem: ´um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios´. O narrador, por sua vez, ao referir-se ao protagonista como ´outro personagem´, reconhece-se como tal e, pela intrusão, estende esse estado também ao leitor: ´Não o imagine um guerreiro...´ Nesse sentido, personagem, narrador e leitor formam um inextrincável tripé -  atores, evidentemente, de todo o estranhamento, partícipes da pós-modernidade, cúmplices por ´sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico´. (HARVEY, 1992, p. 49) Desse modo, todos - e não apenas o protagonista - são ´um mortal comum´, e, por inferência, transformados em coisa: ´Assim o vemos: deitado. Imóvel.´ Ora, se ´o vemos´, (narrador e leitor) é porque, assim como ele, (o protagonista) também estamos imóveis: ´a passividade é a marca do olhar´. (CHAUÍ, 1998, p. 33) Todos, enfim, aniquilados, despidos de sua condição de sujeito.

Nas atividades semióticas, a literatura integra um estatuto privilegiado: ´tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada; ela lhe fornece tanto a sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível´. (TODOROV, 2004, p.54) a literatura é a linguagem plena de significado: ´A grande literatura é simplesmente a linguagem carregada de significado em seu mais alto grau´. (POUND, 1959, p.23)

Antônio Torres realiza ´A grande literatura´. Nesse fragmento em análise, imprime-se a habilidade com que tece o discurso, servindo-se do jogo de ´palavra-puxa-palavra´ - recurso estilístico pouco encontrável em prosadores. (Cf. Garcia, 1978, p.202-234) Esse processo resulta do encadeamento de palavras, fruto de afinidades as mais diversas, configurando associação semântica: um termo evoca um outro, que evoca um outro etc: ´Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem...´

Essa seqüência frasal tem como pilares a recorrência implícita a ´Era´ e explícita ao termo ´outra´ em suas declinações. Sendo ´outra a cidade´, entra esta em oposição a Junco e às metrópoles por que andou, antes, (o leitor sabe tratar-se de uma trilogia) a personagem; ´outros´ são ainda ´o país, o continente´ e, sobretudo, ele, o protagonista´, que, embora seja o mesmo, é ´outro´, pois vive o inferno da alteridade. O parágrafo ´Cá está ele: na cama.´ transmite ao leitor a sensação de intimidade, de estar diante de alguém a quem possa, facilmente, identificar. E tal situação se consolida em ´Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso...´, pois, assim, o leitor recupera, por associação, o ser e o tempo deste: Antão Filho e suas desventuras.

Talvez por isso haja, em todo o romance, um privilégio das impressões sensoriais, sobretudo das que evocam a visão, a audição e o olfato: ´Oh, memoráveis serenatas em noites enluaradas para moças sonhadoras recém-saídas do banho, cheirando a eucalipto, todas farfalhantes em suas cambraias engomadas...´ (p.45) Enumeram-se, ao longo do texto, os ruídos das descargas, dos móveis que se arrastam, dos automóveis que se chocam; quando não, os frêmitos  atávicos, que se evolam de ´um carro de bois, vagaroso, gemedor´, (p.111) e que hão de conduzir a personagem às ´luzes de uma cidade, que lhe provocariam um impacto jamais igualado´. (p.111)

Memória é evocação.  Através dos sentidos, o ser reconstrói o que o tempo dissolveu. Eis, quem sabe, a razão de não nos cansarmos de cantar a mesma música, de repetir determinadas frases, de saborear, reiteradamente, os alimentos. Em toda a obra de Antônio Torres, há sempre uma música a tocar no rádio: ´Rosas vermelhas, as do bem-querer´; (p.117) e das notas musicais advêm os passos, os compassos, os descompassos: ´E dançava conforme outra música. Cesse tudo. Silêncio. Ouça, menina bonita: Eu sei que vou te amar / ... Por toda a minha vida eu vou te amar...´ (p.146)

O exercício da memória está, intrinsecamente, ligado à aprendizagem. Aprender é apreender. O homem, perdido de si mesmo e de seu semelhante, busca o passado na sofreguidão de marcar um encontro consigo mesmo no presente. Desse modo, o protagonista de ´Pelo fundo da agulha´ percorre toda a narrativa , reiterando aquele movimento pendular: Totonhim - Antão Filho - Totonhim; e reside aí a natureza de sua viagem: Memória. Um irmão que se matou. Mas isso faz muito tempo. Foi o seu pai quem fez o caixão, a consolar-se numa garrafa de cachaça. Assim que o esquife ficou pronto, tratou de levá-lo para a cova. ´Tinha tão pouca gente´, desolou-se, ao voltar do enterro. Foi tudo nos conformes da lei dos homens, velho. A igreja fechou-lhe as portas. Suicida não entra na casa de Deus, nem no reino do céu. E afasta as pessoas. Apavora-as. (p.64)

Uma das virtuoses desse romance é fruto da escolha do ponto de vista, uma vez que, conduzida pela terceira pessoa, a narrativa sofre, freqüentemente, o entrecorte do discurso indireto-livre, que, muitas vezes, desemboca no fluxo da consciência. Nesses momentos, depara-se a interioridade da personagem, e esta se torna mais complexa, mais humana, carregando em si um universo de dúvidas, de contradições, de gozo, de culpas, de doces lembranças ou de amargas recordações: Por quantos anos mais os esteios e as paredes daquelas casas se manteriam de pé? Nascera numa delas, de fundos para o Nascente, rodeada de árvores frutíferas, quintal de flores, verduras, abóboras, bananeiras. E com um avarandado para o poente. Para os crepúsculos longos e mais silenciosos do mundo.

Agora via um menino saindo de lá e pegando um caminho que chegava a uma cancela. Era uma manhã ensolarada, igual a muitas outras. Ao passar de um pasto para outro, ele, o menino, se deparou com uma explosão de tomates, estonteantes ao sol, tão vermelhos que pareciam enfeites de um presépio. (p.105-106)

Esse excerto comprova que um dos aspectos estilísticos mais recorrentes é a fusão do passado com o presente, pois, o protagonista, com freqüência, entrega-se a devaneios; são momentos em que procura um sentido para a existência ou uma explicação para os mistérios que a rodeiam.

A recorrência com que o Autor se utiliza do discurso indireto-livre, fazendo com que a personagem seja, também, responsável pela condução do enredo, transpõe para o foco em terceira pessoa (ou ponto de vista externo) a onisciência prismática; - esta é erigida a partir do seguinte expediente: em vez de um narrador que se apresenta tão-somente com a onisciência, (aquele que tudo sabe e tudo vê, aquele que conhece o narrar e o narrado) o leitor entra em contato direto com a realidade, enxergando-a pelo prisma da personagem. Inscreve-se, assim, uma constante preocupação com as contradições da consciência e mesmo do inconsciente do ser dentro do contexto de uma realidade, emergindo as tensões. E tudo se dá pela fusão de perspectivas temporais: ora a simples lembrança; ora o momento presente; ora a projeção do passado no presente, a partir da qual assoma o futuro, para que, finalmente, tudo se funda no intemporal, pois os elementos configuradores do real têm dissolvidos os seus contornos: Agora cá estava. Sim, com meio caminho andado, entre o passado e o futuro. Ainda não avistara o sinal verde franqueando-lhe a passagem, no viaduto entre os dois tempos. (p.128)

O título desse romance - Pelo Fundo da Agulha - é um achado. Anulada e aniquilada, a existência do protagonista só poderá refazer-se  A Tarderavés da verbalização. Transmuda-se, por isso, em vozes. É ele o oráculo de si mesmo. Tendo o olhar voltado para suas próprias entranhas, não contempla a opacidade da cidade pela janela de um quarto de hotel, pois outra é sua viagem: ´Toda narrativa é uma viagem - percurso construído pela imaginação para escoar possibilidades´. (DALCASTAGNÈ, 2000, p. 11)

Palmilhando ruas e avenidas, becos e ruelas, num banco de táxi ou de um ônibus, no frio da Europa ou sob o sol do empoeirado agreste, está o protagonista, em verdade, imóvel, e, em sua direção, apenas o passado e suas sombras. Inútil, pois, jogar fora todas as cordas: inúmeros, os camelos; inexorável, a agulha. A noite se dissemina em agônicas assombrações: ´Não percebeu que era tudo o que seu irmão queria? Uma corda para se enforcar?´ (p.96) A noite água a dúvida, o inesperado, o imponderável: ´o desaparecimento da luz nos confina no isolamento, nos cerca de silêncio e portanto nos desassegura´.(DELUMEAU, 1989, p. 99)

Pelo fundo da agulha, passa uma narrativa alinhavada; passam os automóveis, os aviões, o rugir ronceiro de um carro de boi, os solavancos de um coração, os dados que se quedam sobre a mesa, a cadência remissiva dos boleros, ´Xote, maracatu e baião´, (p.143) os olhos do enforcado, a indiferença de um ´Deus que não amava os suicidas´. (p.212) Desse modo, na narrativa, todos os referenciais ´misturam os discursos numa compulsão circular, moebiana.´. (BAUDRILLARD, 1991, p. 28) Na solidão de um quarto, emaranham-se os tijolos da construção de um ser em narrativa: ´todo o ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não pede o contado com o mundo dos meus semelhantes´. (ARENDT, 1989, p. 528)

Entre a janela de um quarto de hotel e o buraco de uma agulha, duas linhas por que se cirzem o passado e o presente: o tecido num bastidor, o pergaminho da memória. O bordado de um texto no entrecruzar-se dessas linhas: embora o real não seja mais possível, é possível a ilusão de um avarandado coração; assim, ´mais leve, se sentirá (o protagonista) um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha´. (p.218)



BIBLIOGRAFIA

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d´Água, 1991.

CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. In O olhar, NOVAES, A. (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

DALCASTAGNÈ, R. A garganta das coisas. Brasília: Editora UnB, 2000.

DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300 - 1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Editora Globo,1969.

GARCIA, O. Alguns processos poéticos de Carlos Drummond de Andrade. In: Carlos Drummond de Andrade, BRAYNER, S. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

POUND, E. O que é literatura, o que é linguagem etc? In: Ensaios críticos de literatura, BEAVER, H. (org.) São Paulo: Lidador, 1959

TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2004.

TORRES, A. Pelo fundo da agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.
 


 


TRECHO

Calma aí, homem. O mundo ainda não acabou, se é assim que lhe parece. O que ele não oferece é o encanto dos descobrimentos, como na era das grandes navegações. Sejamos sinceros: viajar, hoje, não tem a menor graça. É um saco. Aeroportos enormes, desconfortáveis, cans A Tardeivos. Conexões estorvantes. Passageiros destituídos de glamour e pessoal de bordo sem tempo para delicadezas. Lembra da sua primeira viagem aérea? Quando o avião balançou e o pr A Tardeo de comida voou da mesinha para o seu peito, logo surgiu uma aeromoça com uma toalha embebida em água quente e lavanda para, com mãos de fada, remover toda a sujeira sobre o seu paletó azul, comprado à prestação especialmente para aquela estréia no ar. Havia algo de m A Tardeerial naquele gesto, não? Agora, o seu vôo será realizado num plano impessoal, com a frieza da lógica. Embarque, ajeite-se como puder, fique  A Tardeento aos avisos eletrônicos, aguarde os serviços de praxe e tente dormir, se for capaz de não se apavorar com as turbulências. No seu sonolento embarque, perceberá que o mundo ficou igual, no que tem de pior. No mercadão universal não há sonhos à venda. Mas bugigangas que podem ser encontradas ali na esquina. (TORRES, A. Pelo Fundo da Agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p.36-37)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

14.4.2007