Antônio Torres,
filamentos de uma escritura
Antônio Torres
ocupa, na ficção brasileira, uma posição
singularíssima: tece, como poucos, um texto
peculiar, posto longe das tendências ou das
correntes literárias, ao mesmo tempo em que,
diante do leitor mais atento à elaboração da
escritura do que ao próprio desenrolar-se do
enredo, constitui sempre um desafio: decifra-me
ou
devoro-te. E tal peleja se torna mais árdua
quando o romancista trabalha com temas
recorrentes, como, de modo específico, dá-se com
a trilogia, iniciada com ´Essa Terra´, seguida
por ´O cachorro e o lobo´ e que fecha o círculo,
agora, com ´Pelo Fundo da Agulha´. (Editora
Record, 220 páginas) Tais questões integram o
motivo maior dessa edição, pois Antônio Torres
estará em Fortaleza, na próxima terça-feira, dia
28, para, no Centro Cultural do BNB, abrir o
Seminário ´Migrações: geografia das palavras´ -
evento coordenado pelas professoras Sarah Diva
Ipiranga e Solange Kate Araújo.
A linguagem é uma
estrutura simbólica que comporta a realidade.
Através dos signos lingüísticos, os homens se
comunicam entre si a a respeito do mundo - mas
não com o mundo. Há, portanto, uma separação
entre sujeito e objeto; os signos circulam entre
os indivíduos, comportando um sentido que exige
uma investigação: ´A linguagem reclama o pensar:
a palavra é propriamente o esquema do conceito;
quem a profere vai ao conceito´. (DUFRENNE,
1969, p. 31)
Múltiplos são os
caminhos por que se pode ler uma obra literária;
no entanto, em se trataando de romance, deve-se,
antes de tudo, concentrar uma especial atenção
no título e (caso haja) na epígrafe -
principalmente, se esta se referir ao texto como
um todo. (O título há de ser retomado mais à
frente; por enquanto, urge a epígrafe.) Em ´Pelo
Fundo da Agulha´, conscientemente ou não, (pouco
importa) a epígrafe, em vez de posta no
frontispício, (nesta posição sofre, quase
sempre, o desprezo do leitor) assiste à entrada
do primeiro capítulo: "A fronteira crepuscular
entre o sono e a vigília era, neste momento,
romana: fontes salpicando e ruas estreitas com
arcos. A dourada e pródiga cidade de flores e
pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou
entre escombros de guerra alemães, ou esquiando
na Suíça e num hotel entre a neve. Algumas
vezes, também, era um barbeiro da Geógia, certa
madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na
região sem tempo dos sonhos".
Este fragmento é
da escritora norte-americana Carson McCullers.
Nascida em Columbus, (Geórgia) partiu, ainda
adolescente, para Nova Iorque, perseguindo o
sonho da fama como escritora. Viveu, na carne e
na alma, o choque cultural, bem como o tormento
de ter o comportamento social (vivenciou as mais
diversas transgressões) regulado pelo olho da
opinião pública. Sua ficção, cuja
atmosfera
remonta à densidade psíquica de Dostoievsky, é
plena de comportamentos macabros e configura o
viver como a expressão de um pesadelo.
Todo esse intróito
se sedimenta numa funcionalidade: preparar o
leitor para o universo que, a partir de agora,
irá palmilhar, da mesma forma como, num lance
antecip A Tardeório, mostra uma identidade entre essa
escritura (a própria escritora) e o protagonista
da trama que, então, há de abrir-se ao leitor. O
protagonista da ´Trilogia do Suicídio´, de
Antônio Torres, tem o seu percurso ontológico no
seguinte movimento pendular: Totonhim - Antão
Filho - Totonhim, uma vez que vive aquele mesmo
impasse da personagem lírica do tearum mundi
drummoniano: ´Você marcha, José! / José, para
onde?´. (DRUMMOND, ), delineando, assim, o
desajuste entre o sujeito e o mundo - situação,
aliás, que inaugura a narrativa:
Era outra a cidade, e outros o país, o
continente, o mundo deste outro personagem, um
homem que já não sabia se ainda tinha sonhos
próprios.
Cá está ele: na cama.
Não o imagine um guerreiro que depois de todas
as batalhas finalmente encontrou repouso,
abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de
guerra. Esta é a história de um mortal comum,
sobrevivente de seus próprios embates
cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas da
sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo
seu esforço na corrida contra o tempo do que um
troféu de vencedor. Assim o vemos: deitado.
Imóvel. A olhar para o teto e paredes de um
quarto. E a assustar-se com a sombra de uma
cortina em movimento, que supôs ser o fantasma
de uma alma tão penada quanto a sua. Uma alma de
mulher com certeza. (p.7-8)
Assim, a narrativa
põe diante do leitor uma personagem entregue a
divagações e a incertezas, apontando, por outro
lado, duas preocupações temáticas por que há de
orientar-se a organização da trama: o
estrangeiro e a metrópole; ou seja: o
estranhamento que resulta desse encontro; por um
outro, a construção do discurso, com pausas
dramáticas e cortes abruptos, ressalta a
problemática da linguagem como um dos
elementos-chave dessa criação ficcional.
A princípio, a
desfiguração do espaço entranha-se à da
personagem: ´um homem que já não sabia se ainda
tinha sonhos próprios´. O narrador, por sua vez,
ao referir-se ao protagonista como ´outro
personagem´, reconhece-se como tal e, pela
intrusão, estende esse estado também ao leitor:
´Não o imagine um guerreiro...´ Nesse sentido,
personagem, narrador e leitor formam um
inextrincável tripé - atores, evidentemente, de
todo o estranhamento, partícipes da
pós-modernidade, cúmplices por ´sua total
aceitação do efêmero, do fragmentário, do
descontínuo e do caótico´. (HARVEY, 1992, p. 49)
Desse modo, todos - e não apenas o protagonista
- são ´um mortal comum´, e, por inferência,
transformados em coisa: ´Assim o vemos: deitado.
Imóvel.´ Ora, se ´o vemos´, (narrador e leitor)
é porque, assim como ele, (o protagonista)
também estamos imóveis: ´a passividade é a marca
do olhar´. (CHAUÍ, 1998, p. 33) Todos, enfim,
aniquilados, despidos de sua condição de
sujeito.
Nas atividades
semióticas, a literatura integra um estatuto
privilegiado: ´tem a linguagem ao mesmo tempo
como ponto de partida e como ponto de chegada;
ela lhe fornece tanto a sua configuração
abstrata quanto sua matéria perceptível´.
(TODOROV, 2004, p.54) a literatura é a linguagem
plena de significado: ´A grande literatura é
simplesmente a linguagem carregada de
significado em seu mais alto grau´. (POUND,
1959, p.23)
Antônio Torres
realiza ´A grande literatura´. Nesse fragmento
em análise, imprime-se a habilidade com que tece
o discurso, servindo-se do jogo de ´palavra-puxa-palavra´
- recurso estilístico pouco encontrável em
prosadores. (Cf. Garcia, 1978, p.202-234) Esse
processo resulta do encadeamento de palavras,
fruto de afinidades as mais diversas,
configurando associação semântica: um termo
evoca um outro, que evoca um outro etc: ´Era
outra a cidade, e outros o país, o continente, o
mundo deste outro personagem...´
Essa seqüência
frasal tem como pilares a recorrência implícita
a ´Era´ e explícita ao termo ´outra´ em suas
declinações. Sendo ´outra a cidade´, entra esta
em oposição a Junco e às metrópoles por que
andou, antes, (o leitor sabe tratar-se de uma
trilogia) a personagem; ´outros´ são ainda ´o
país, o continente´ e, sobretudo, ele, o
protagonista´, que, embora seja o mesmo, é
´outro´, pois vive o inferno da alteridade. O
parágrafo ´Cá está ele: na cama.´ transmite ao
leitor a sensação de intimidade, de estar diante
de alguém a quem possa, facilmente, identificar.
E tal situação se consolida em ´Não o imagine um
guerreiro que depois de todas as batalhas
finalmente encontrou repouso...´, pois, assim, o
leitor recupera, por associação, o ser e o tempo
deste: Antão Filho e suas desventuras.
Talvez por isso
haja, em todo o romance, um privilégio das
impressões sensoriais, sobretudo das que evocam
a visão, a audição e o olfato: ´Oh, memoráveis
serenatas em noites enluaradas para moças
sonhadoras recém-saídas do banho, cheirando a
eucalipto, todas farfalhantes em suas cambraias
engomadas...´ (p.45) Enumeram-se, ao longo do
texto, os ruídos das descargas, dos móveis que
se arrastam, dos automóveis que se chocam;
quando não, os frêmitos atávicos, que se evolam
de ´um carro de bois, vagaroso, gemedor´,
(p.111) e que hão de conduzir a personagem às
´luzes de uma cidade, que lhe provocariam um
impacto jamais igualado´. (p.111)
Memória é
evocação. Através dos sentidos, o ser reconstrói
o que o tempo dissolveu. Eis, quem sabe, a razão
de não nos cansarmos de cantar a mesma música,
de repetir determinadas frases, de saborear,
reiteradamente, os alimentos. Em toda a obra de
Antônio Torres, há sempre uma música a tocar no
rádio: ´Rosas vermelhas, as do bem-querer´;
(p.117) e das notas musicais advêm os passos, os
compassos, os descompassos: ´E dançava conforme
outra música. Cesse tudo. Silêncio. Ouça, menina
bonita: Eu sei que vou te amar / ... Por toda a
minha vida eu vou te amar...´ (p.146)
O exercício da
memória está, intrinsecamente, ligado à
aprendizagem. Aprender é apreender. O homem,
perdido de si mesmo e de seu semelhante, busca o
passado na sofreguidão de marcar um encontro
consigo mesmo no presente. Desse modo, o
protagonista de ´Pelo fundo da agulha´ percorre
toda a narrativa , reiterando aquele movimento
pendular: Totonhim - Antão Filho - Totonhim; e
reside aí a natureza de sua viagem: Memória. Um
irmão que se matou. Mas isso faz muito tempo.
Foi o seu pai quem fez o caixão, a consolar-se
numa garrafa de cachaça. Assim que o esquife
ficou pronto, tratou de levá-lo para a cova.
´Tinha tão pouca gente´, desolou-se, ao voltar
do enterro. Foi tudo nos conformes da lei dos
homens, velho. A igreja fechou-lhe as portas.
Suicida não entra na casa de Deus, nem no reino
do céu. E afasta as pessoas. Apavora-as. (p.64)
Uma das virtuoses
desse romance é fruto da escolha do ponto de
vista, uma vez que, conduzida pela terceira
pessoa, a narrativa sofre, freqüentemente, o
entrecorte do discurso indireto-livre, que,
muitas vezes, desemboca no fluxo da consciência.
Nesses momentos, depara-se a interioridade da
personagem, e esta se torna mais complexa, mais
humana, carregando em si um universo de dúvidas,
de contradições, de gozo, de culpas, de doces
lembranças ou de amargas recordações: Por
quantos anos mais os esteios e as paredes
daquelas casas se manteriam de pé? Nascera numa
delas, de fundos para o Nascente, rodeada de
árvores frutíferas, quintal de flores, verduras,
abóboras, bananeiras. E com um avarandado para o
poente. Para os crepúsculos longos e mais
silenciosos do mundo.
Agora via um
menino saindo de lá e pegando um caminho que
chegava a uma cancela. Era uma manhã ensolarada,
igual a muitas outras. Ao passar de um pasto
para outro, ele, o menino, se deparou com uma
explosão de tomates, estonteantes ao sol, tão
vermelhos que pareciam enfeites de um presépio.
(p.105-106)
Esse excerto
comprova que um dos aspectos estilísticos mais
recorrentes é a fusão do passado com o presente,
pois, o protagonista, com freqüência, entrega-se
a devaneios; são momentos em que procura um
sentido para a existência ou uma explicação para
os mistérios que a rodeiam.
A recorrência com
que o Autor se utiliza do discurso
indireto-livre, fazendo com que a personagem
seja, também, responsável pela condução do
enredo, transpõe para o foco em terceira pessoa
(ou ponto de vista externo) a onisciência
prismática; - esta é erigida a partir do
seguinte expediente: em vez de um narrador que
se apresenta tão-somente com a onisciência,
(aquele que tudo sabe e tudo vê, aquele que
conhece o narrar e o narrado) o leitor entra em
contato direto com a realidade, enxergando-a
pelo prisma da personagem. Inscreve-se, assim,
uma constante preocupação com as contradições da
consciência e mesmo do inconsciente do ser
dentro do contexto de uma realidade, emergindo
as tensões. E tudo se dá pela fusão de
perspectivas temporais: ora a simples lembrança;
ora o momento presente; ora a projeção do
passado no presente, a partir da qual assoma o
futuro, para que, finalmente, tudo se funda no
intemporal, pois os elementos configuradores do
real têm dissolvidos os seus contornos: Agora cá
estava. Sim, com meio caminho andado, entre o
passado e o futuro. Ainda não avistara o sinal
verde franqueando-lhe a passagem, no viaduto
entre os dois tempos. (p.128)
O título desse
romance - Pelo Fundo da Agulha - é um achado.
Anulada e aniquilada, a existência do
protagonista só poderá refazer-se A Tarderavés da
verbalização. Transmuda-se, por isso, em vozes.
É ele o oráculo de si mesmo. Tendo o olhar
voltado para suas próprias entranhas, não
contempla a opacidade da cidade pela janela de
um quarto de hotel, pois outra é sua viagem:
´Toda narrativa é uma viagem - percurso
construído pela imaginação para escoar
possibilidades´. (DALCASTAGNÈ, 2000, p. 11)
Palmilhando ruas e
avenidas, becos e ruelas, num banco de táxi ou
de um ônibus, no frio da Europa ou sob o sol do
empoeirado agreste, está o protagonista, em
verdade, imóvel, e, em sua direção, apenas o
passado e suas sombras. Inútil, pois, jogar fora
todas as cordas: inúmeros, os camelos;
inexorável, a agulha. A noite se dissemina em
agônicas assombrações: ´Não percebeu que era
tudo o que seu irmão queria? Uma corda para se
enforcar?´ (p.96) A noite água a dúvida, o
inesperado, o imponderável: ´o desaparecimento
da luz nos confina no isolamento, nos cerca de
silêncio e portanto nos desassegura´.(DELUMEAU,
1989, p. 99)
Pelo fundo da
agulha, passa uma narrativa alinhavada; passam
os automóveis, os aviões, o rugir ronceiro de um
carro de boi, os solavancos de um coração, os
dados que se quedam sobre a mesa, a cadência
remissiva dos boleros, ´Xote, maracatu e baião´,
(p.143) os olhos do enforcado, a indiferença de
um ´Deus que não amava os suicidas´. (p.212)
Desse modo, na narrativa, todos os referenciais
´misturam os discursos numa compulsão circular, moebiana.´. (BAUDRILLARD, 1991, p. 28) Na
solidão de um quarto, emaranham-se os tijolos da
construção de um ser em narrativa: ´todo o ato
de pensar é feito quando se está a sós, e
constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas
esse diálogo dos dois-em-um não pede o contado
com o mundo dos meus semelhantes´. (ARENDT,
1989, p. 528)
Entre a janela de
um quarto de hotel e o buraco de uma agulha,
duas linhas por que se cirzem o passado e o
presente: o tecido num bastidor, o pergaminho da
memória. O bordado de um texto no entrecruzar-se
dessas linhas: embora o real não seja mais
possível, é possível a ilusão de um avarandado
coração; assim, ´mais leve, se sentirá (o
protagonista) um camelo capaz de passar pelo
fundo de uma agulha´. (p.218)
BIBLIOGRAFIA
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totalitarismo. São
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BAUDRILLARD, J.
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DELUMEAU, J. História do
medo no Ocidente (1300 -
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DUFRENNE, M. O poético.
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POUND, E. O que é
literatura, o que é
linguagem etc? In:
Ensaios críticos de
literatura, BEAVER, H.
(org.) São Paulo:
Lidador, 1959
TODOROV, T. As
estruturas narrativas.
São Paulo: Perspectiva,
2004.
TORRES, A. Pelo fundo da
agulha. Rio de Janeiro:
Editora Record, 2006.
TRECHO
Calma aí, homem. O mundo ainda não acabou, se é
assim que lhe parece. O que ele não oferece é o
encanto dos descobrimentos, como na era das
grandes navegações. Sejamos sinceros: viajar,
hoje, não tem a menor graça. É um saco.
Aeroportos enormes, desconfortáveis, cans A
Tardeivos.
Conexões estorvantes. Passageiros destituídos de
glamour e pessoal de bordo sem tempo para
delicadezas. Lembra da sua primeira viagem
aérea? Quando o avião balançou e o pr A Tardeo de
comida voou da mesinha para o seu peito, logo
surgiu uma aeromoça com uma toalha embebida em
água quente e lavanda para, com mãos de fada,
remover toda a sujeira sobre o seu paletó azul,
comprado à prestação especialmente para aquela
estréia no ar. Havia algo de m A Tardeerial naquele
gesto, não? Agora, o seu vôo será realizado num
plano impessoal, com a frieza da lógica.
Embarque, ajeite-se como puder, fique A
Tardeento aos
avisos eletrônicos, aguarde os serviços de praxe
e tente dormir, se for capaz de não se apavorar
com as turbulências. No seu sonolento embarque,
perceberá que o mundo ficou igual, no que tem de
pior. No mercadão universal não há sonhos à
venda. Mas bugigangas que podem ser encontradas
ali na esquina. (TORRES, A. Pelo Fundo da
Agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006,
p.36-37)