Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Leituras, leitor,

escritor e crítico

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É uma constante ouvir/ler lamúrias e reclamações. Que ninguém lê; que falta o apoio do governo (sic!); que Paulo Coelho é péssimo, porém milionário (sic!), etc, etc, etc.

A seguir, três escritores trazem um "decálogo para ser escritor, leitor e crítico". Antônio Torres garante que há escritor de-mais, leitor de-menos. Soares Feitosa mete a colher. O leitor está convidado. Sim, o leitor, cadê os leitores?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vera Queiroz

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Michel Laub

Entrelivros

 

Dez mandamentos para ser leitor, escritor e crítico

 

 


Ler por obrigação, ganhar pouco, ser odiado por autores criticados ou ignorados por você. Ante tantos dissabores, saiba para que serve, afinal, fazer crítica literária

I - Um bom começo pode ser a leitura de O imperador do vinho, de Elin McCoy, a biografia do americano Robert Parker. Trata-se da figura mais polêmica do universo milionário da enologia. Uma nota alta na The Wine Advocate, sua newsletter, é capaz de enriquecer um fabricante; uma nota baixa pode significar a falência. O olfato de Parker é segurado em cerca de US$ 1 milhão. Ao longo dos anos, percebeu-se que ele gostava de vinhos frutados. Muitas propriedades, até algumas tradicionais da França, passaram a chamar especialistas para estudar o solo, mudar a forma do plantio e da colheita, tudo para colher uvas que originassem vinhos adequados a esse gosto.

II - Saiba que esse talvez seja o exemplo máximo de crítico bem-sucedido no mundo de hoje – rico de fato, influente de fato, uma presença de fato essencial em seu meio. Quase todos os outros profissionais da categoria, trabalhem eles com música, cinema, gastronomia, televisão ou concursos de beleza, estão bem mais próximos da figura descrita por George Orwell em Confissões de um resenhista: “Trinta e cinco anos, mas aparenta cinqüenta(...) [trabalha num] conjugado frio, mas abafado (...). Dos milhares de livros que aparecem todo ano, é quase certo que existam 50 ou 100 sobre os quais teria prazer em escrever. Se for de primeira categoria na profissão, pode conseguir dez ou vinte. É mais provável que consiga dois ou três”.

III - Ou seja, prepare-se para uma atividade enfadonha e mal-remunerada. Você lerá só por obrigação. Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, não há nada a dizer sobre ele. Porque sempre haverá o que dizer. Se não houver, as contas não são pagas.

Michel LaubIV - Não se preocupe, porém. Há muitos truques para encher essas páginas em branco. Se você quer desancar um livro e não sabe como, recorra a alguns adjetivos algo abstratos em se tratando de literatura, mas ainda assim úteis numa resenha. A timidez, por exemplo. Argumente que o autor não explora suficientemente os conflitos de sua obra. Afinal, explorar conflitos é uma tarefa que não tem fim, e há um momento em que todo autor, por mais extrovertido que seja, precisa parar. Outros chavões sempre à mão: excesso de objetividade, excesso de subjetivismo, excesso de frieza, excesso de dramaticidade. A categoria das “idéias fora de lugar”, deslocada de seu contexto original, também ajuda bastante. Um romance correto, instigante e envolvente pode ser atacado por reproduzir um modelo “burguês” de contar histórias, incompatível com o nosso tempo. Um romance sem essas características pode ser destruído, justamente, por ser mal-escrito e não envolver o leitor.

V - Para o caso contrário, isto é, se você quer elogiar um livro que acha ruim – o das linhas finais do item IV, por exemplo –, há dois recursos clássicos: a) em relação à prosa desagradável, escatológica e/ou ilegível, diga que ela reproduz o incômodo e a irredutibilidade de sentidos do mundo contemporâneo; b) em relação à trama caótica e fragmentária, quando não se entende o que é início, o que é fim e do que é mesmo que estamos falando, afirme que a maçaroca reproduz, como uma “metáfora estrutural”, o caos fragmentário da sociedade pós-industrial.

VI - Usando desses truques, você está pronto para fazer nome devido à afinação com o vocabulário crítico de sua época. Mas se, por um desses acasos raros, você está decidido a realmente dizer o que pensa, há também dois caminhos a seguir. O primeiro é confiar cegamente nos seus juízos pessoais, não temendo a exposição de seus preconceitos íntimos em público. Assim, você terá mais chances de ser considerado um sujeito ranheta, excêntrico e/ou pervertido.

VII - O segundo caminho é considerar-se porta-voz de um “sistema”, para o qual são válidas mesmo obras que não são do seu agrado (por questões sociológicas, por exemplo). Mesmo que os motivos sejam nobres – sua humildade para não se considerar o juiz definitivo sobre o que é ou não relevante em termos estéticos –, há boas probabilidades de você ser visto como um crítico sem alma, sem coragem, sem graça.

VIII - Independentemente de sua escolha, é inevitável que você seja desprezado. Todos dirão que seu desejo secreto era ser ficcionista ou poeta, que você é leviano demais, complacente demais, que tem algum interesse obscuro – ascender na carreira, agradar aos pares da universidade, arrumar um(a) namorado(a) – ou está a soldo de alguma entidade obscura – grupos literários rivais, editores, maçons, seitas religiosas, partidos políticos de esquerda (se você escrever numa pequena publicação) ou de direita (se receber salário de alguma corporação de mídia).

IX - Mais que isso: você será odiado. Pelos autores que você desanca. Pelos autores que você ignora. Pelos autores que você elogia (os motivos serão sempre os errados, na opinião deles). Pelos outros críticos. Por boa parte do público, mesmo por aquele que o lê com freqüência.

X - Mas se, apesar de tudo isso, você ainda insiste em abraçar a profissão, é bom se perguntar o motivo. Quando criança, usando o olfato, Robert Parker era capaz de listar todos os ingredientes dos pratos que estavam sendo cozinhados na vizinhança, habilidade que o tornaria um campeão absoluto dos “testes cegos” de identificação de uvas e safras. Isso se chama vocação. É o seu caso? Você se sente preparado para conjugar erudição e capacidade interpretativa em tamanha escala? Sendo a resposta afirmativa, trata-se de uma ótima notícia. Não só para você, que talvez tenha achado um modo honesto de ganhar a vida, mas para o próprio meio literário. Porque não há nada de que ele necessite mais, hoje ou em qualquer tempo: alguém que o ajude a firmar tendências, corrigir rumos, separar o joio do trigo. Diferentemente do que se diz, um crítico autêntico não é apenas o advogado do público. Ele é, em última instância, o maior defensor da própria literatura.

 

 

Manoel de Barros

 

Augusto dos Anjos

 

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Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

Miguel Sanches Neto

 

 

 

Dez mandamentos para ser leitor, escritor e crítico

 

 

Depois de leitor, você pode se tornar, então, escritor– embora, pasme, muitos hoje pulem a leitura, por julgá-la dispensável, e já desejem publicar

I - Não fique mandando seus originais para todo mundo.Acontece que você escreve para ser lido extramuros, e deseja testar sua obra num terreno mais neutro. E não quer ficar a vida inteira escrevendo apenas para uma pessoa. O que fazer então para não virar um chato? No passado, eu aconselharia mandar os textos para jornais e revistas literárias, foi o que eu fiz quando era um iniciante bem iniciante. Mas os jovens agora têm uma arma mais democrática. Publicar na internet. Há muitos espaços coletivos, uma liberdade de inclusão de textos novos e você ainda pode criar seu próprio site ou blog, mas cuidado para não incomodar as pessoas, enviando mensagens e avisos para que leiam você.

II - Publique seus textos em sites e blogs e deixe que sigam o rumo deles. Depois de um tempo publicando eletronicamente, você vai encontrar alguns leitores. Terá de ler os textos deles, e dar opiniões e fazer sugestões, mas também receberá muitas dicas.

III - Leia os contemporâneos, até para saber onde é o seu lugar. Existe um batalhão de internautas ávidos por leitura e em alguns casos você atingirá o alvo e terá acontecido a magia de um texto encontrar a pessoa que o justifica. Mas todo texto escrito na internet sonha um dia virar livro. Sites e blogs são etapas, exercícios de aquecimento. Só o livro impresso dáMiguel Sanches Neto status autoral. O que fazer quando eu tiver mais de dois gigas de textos literários? Está na hora de publicar um livro maior do que Em busca do tempo perdido? Bem, é nesse momento que você pode continuar sendo um escritor iniciante comum ou subir à categoria de iniciante com experiência. Você terá que reduzir essas centenas e centenas de páginas a um formato razoável, que não tome muito tempo de leitura de quem, eventualmente, se interessar por um livro de estréia. Para isso, você terá de ser impiedoso, esquecer os elogios da mulher e dos amigos e selecionar seu produto, trabalhando duro para que fique sempre melhor.

IV - Considere apenas uma pequenina parte de toda a sua produção inicial, e invista na revisão dela, sabendo que revisar é cortar. O livro está pronto. Não tem mais do que 200 páginas, você dedicou anos a ele e ainda continua um iniciante. Mas um iniciante responsável, pois não mandou logo imprimir suas obras completas com não sei quantos tomos, logo você que talvez nem tenha completado 30 anos. Mas você quer fazer circular a sua literatura de maneira mais formal. Quer o livro impresso. E isso é hoje muito fácil. Você conhece um amigo que conhece uma gráfica digital que faz pequenas tiragens e parcela em tantas vezes. O livro está pronto. E anda sobrando um dinheirinho, é só economizar na cerveja.

V - Gaste todo seu dinheiro extra em cerveja, viagens, restaurantes e não pague a publicação do próprio livro. Se você fizer isso, ficará novamente ansioso para mandar a todo mundo o volume, esperando opiniões que vão comparar o seu trabalho ao dos mestres. O livro impresso, mesmo quando auto-impresso, dá esta sensação de poder. Somos enfim Autores. E podemos montar frases assim: Borges e eu valorizamos o universal. Do ponto de vista técnico, Borges e eu estamos no mesmo nível: produzimos obras impressas; mas a comparação não vai adiante. Então como publicar o primeiro livro se não conhecemos ninguém nas editoras? E aí começa um outro problema: procurar pessoas bem postas em editoras e solicitar apresentações. Na maioria das vezes isso não funciona. E, mesmo quando o livro é publicado, ele não acontece, pois foi um movimento artificial.

VI - Nunca peça a ninguém para indicar o seu livro a uma editora. Se por acaso um amigo conhece e gosta de seu trabalho, ele vai fazer isso naturalmente, com alguma chance de sucesso. Tente fazer tudo sozinho, como se não tivesse ninguém mais para ajudar você do que o seu próprio livro. Sim, este livro em que você colocou todas as suas fichas. E como você só pode contar com ele...

VII - Mande seu livro a todos os concursos possíveis e a editoras bem escolhidas, pois cada uma tem seu perfil editorial. É melhor gastar seu dinheiro com selos e fotocópias do que com a impressão de uma obra que não será distribuída e que terá de ser enviada a quem não a solicitou. Enquanto isso, dedique-se a atividades afins para controlar a ansiedade, porque essas coisas de literatura demoram, demoram muito mesmo. Você pode traduzir textos literários para consumo próprio ou para jornais e revistas, pode fazer resenhas de obras marcantes, ler os clássicos ou simplesmente manter um diário íntimo. O importante é se ocupar. Com sorte e tendo o livro alguma qualidade além de ter custado tanto esforço, ele acaba publicado. Até o meu terminou publicado, e foi quando me tornei um iniciante adulto. Tinha um livro de ficção no catálogo de uma grande editora. E aí tive de aprender outras coisas. Há centenas de livros de iniciantes chegando aos jornais e revistas para resenhas e uma quantidade muito maior de títulos consagrados. E a maioria vai ficar sem espaço nos jornais. E é natural que os exemplares distribuídos para a imprensa acabem nos sebos, pois não há resenhistas para tantas obras.

VIII - Não force os amigos e conhecidos a escrever sobre seu livro. Não quer dizer que eles não possam escrever, podem sim, mas mande o livro e, se eles não acusarem recebimento ou não comentarem mais o assunto, esqueça e não lhes queira mal, eles são nossos amigos mesmo não gostando do que escrevemos. Se um ou outro amigo escrever sobre o livro, festeje mesmo se ele não entender nada ou valorizar coisas que não julgamos relevantes em nosso trabalho. E mande umas palavras de agradecimento, pois você teve enfim uma apreciação. E se um amigo escrever mal de nosso livro, justamente dessa obra que nos custou tanto? Se for um desconhecido, ainda vá lá, mas um amigo, aquele amigo para quem você fez isso e aquilo.

IX - Nunca passe recibo às críticas negativas. Ao publicar você se torna uma pessoa pública. E deve absorver todas as opiniões, inclusive os elogios equivocados. Deixe que as opiniões se formem em torno de seu trabalho, e talvez a verdade suplante os equívocos, principalmente se a verdade for que nosso trabalho não é lá essas coisas. O livro está publicado, você já pensa no próximo, saíram algumas resenhas, umas superficiais, outras negativas, uma muito correta. Você é então um iniciante com um currículo mínimo. Daí você recebe a prestação de contas da editora, dizendo que, no primeiro trimestre, as devoluções foram maiores do que as vendas. Como isso é possível? Vejam quantos livros a editora mandou de cortesia. Eu não posso ter vendido apenas 238 exemplares se, só no lançamento, vendi 100, o gerente da livraria até elogiou – enfim uma vantagem de ter família grande.

X - Evite reclamar de sua editora. Uma editora não existe para reverenciar nosso talento a toda hora. É uma empresa que busca o lucro, que tem dezenas de autores iguais a nós e que quer ter lucro com nosso livro, sendo a primeira prejudicada quando ele não vende. Não precisamos dizer que é a melhor editora do mundo só porque nos editou, mas é bom pensar que ocorreu uma aposta conjunta e que não se alcançou o resultado esperado. Mas que há oportunidades para outras apostas e, um dia, quem sabe...Foi tentando seguir estas regras que consegui ser o autor iniciante que hoje eu sou.

 

 

Entrelivros

   
 
 

 

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John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

Alberto Mussa

 

 


 

Dez mandamentos para ser leitor, escritor e crítico

 


I - Nunca leia por hábito: um livro não é uma escova de dentes. Leia por vício, leia por dependência química. A literatura é a possibilidade de viver vidas múltiplas, em algumas horas. E tem até finalidades práticas: amplia a compreensão do mundo, permite a aquisição de conhecimentos objetivos, aprimora a capacidade de expressão, reduz os batimentos cardíacos, diminui a ansiedade, aumenta a libido. Mas é essencialmente lúdica, é essencialmente inútil, como devem ser as coisas que nos dão prazer.

II - Comece a ler desde cedo, se puder. Ou pelo menos comece. E pelos clássicos, pelos consensuais. Serão cinqüenta, serão cem. Não devem faltar As mil e uma noites, Dostoiévski, Thomas Mann, Balzac, Adonias, Conrad, Jorge de Lima, Poe, García Márquez, Cervantes, Alencar, Camões, Dumas, Dante, Shakespeare, Wassermann, Melville, Flaubert, Graciliano,Alberto MussaBorges, Tchekhov, Sófocles, Machado, Schnitzler, Carpentier, Calvino, Rosa, Eça, Perec, Roa Bastos, Onetti, Boccaccio, Jorge Amado, Benedetti, Pessoa, Kafka, Bioy Casares, Asturias, Callado, Rulfo, Nelson Rodrigues, Lorca, Homero, Lima Barreto, Cortázar, Goethe, Voltaire, Emily Brontë, Sade, Arregui, Verissimo, Bowles, Faulkner, Maupassant, Tolstói, Proust, Autran Dourado, Hugo, Zweig, Saer, Kadaré, Márai, Henry James, Castro Alves.

III - Nunca leia sem dicionário. Se estiver lendo deitado, ou num ônibus, ou na praia, ou em qualquer outra situação imprópria, anote as palavras que você não conhece, para consultar depois. Elas nunca são escritas por acaso.

IV - Perca menos tempo diante do computador, da televisão, dos jornais e crie um sistema de leitura, estabeleça metas. Se puder ler um livro por mês, dos 16 aos 75 anos, terá lido 720 livros. Se, no mês das férias, em vez de um, puder ler quatro, chegará nos 900. Com dois por mês, serão 1.440. À razão de um por semana, alcançará 3.120. Com a média ideal de três por semana, serão 9.360. Serão apenas 9.360. É importante escolher bem o que você vai ler.

V - Faça do livro um objeto pessoal, um objeto íntimo. Escreva nele; assinale as frases marcantes, as passagens que o emocionam. Também é importante criticar o autor, apontar falhas e inverossimilhanças. Anote telefones e endereços de pessoas proibidas, faça cálculos nas inúteis páginas finais. O livro é o mais interativo dos objetos. Você pode avançar e recuar, folheando, com mais comodidade e rapidez que mexendo em teclados ou cursores de tela. O livro vai com você ao banheiro e à cama. Vai com você de metrô, de ônibus, e de táxi. Vai com você para outros países. Há apenas duas regras básicas: use lápis; e não empreste.

 

VI - Não se deixe dominar pelo complexo de vira-lata. Leia muito, leia sempre a literatura brasileira. Ela está entre as grandes. Temos o maior escritor do século XIX, que foi Machado de Assis; e um dos cinco maiores do século XX, que foram Borges, Perec, Kafka, Bioy Casares e Guimarães Rosa. Temos um dos quatro maiores épicos ocidentais, que foram Homero, Dante, Camões e Jorge de Lima. E temos um dos três maiores dramaturgos de todos os tempos, que foram Sófocles, Shakespeare e Nelson Rodrigues.

VII - Na natureza, são as espécies muito adaptadas ao próprio hábitat que tendem mais rapidamente à extinção. Prefira a literatura brasileira, mas faça viagens regulares. Das letras européias e da América do Norte vem a maioria dos nossos grandes mestres. A literatura hispano-americana é simplesmente indispensável. Particularmente os argentinos. Mas busque também o diferente: há grandezas literárias na África e na Ásia. Impossível desconhecer Angola, Moçambique e Cabo Verde. Volte também ao passado: à Idade Média, ao mundo árabe, aos clássicos gregos e latinos. E não esqueça o Oriente; não esqueça que literatura nenhuma se compara às da Índia e às da China. E chegue, finalmente, às mitologias dos povos ágrafos, mergulhe na poesia selvagem. São eles que estão na origem disso tudo; é por causa deles que estamos aqui.

VIII - Tente evitar a repetição dos mesmos gêneros, dos mesmos temas, dos mesmos estilos, dos mesmos autores. A grande literatura está espalhada por romances, contos, crônicas, poemas e peças de teatro. Nenhum gênero é, em tese, superior a outro. Não se preocupe, aliás, com o conceito de gênero: história, filosofia, etnologia, memórias, viagens, reportagem, divulgação científica, auto-ajuda – tudo isso pode ser literatura. Um bom livro tem de ser inteligente, bem escrito e capaz de provocar alguma espécie de emoção.

IX - A vida tem outras coisas muito boas. Por isso, não tenha pena de abandonar pelo meio os livros desinteressantes. O leitor experiente desenvolve a capacidade de perceber logo, em no máximo 30 páginas, se um livro será bom ou mau. Só não diga que um livro é ruim antes de ler pelo menos algumas linhas: nada pode ser tão estúpido quanto o preconceito.

X - Forme seu próprio cânone. Se não gostar de um clássico, não se sinta menos inteligente. Não se intimide quando um especialista diz que determinado autor é um gênio, e que o livro do gênio é historicamente fundamental. O fato de uma obra ser ou não importante é problema que tange a críticos; talvez a escritores. Não leve nenhum deles a sério; não leve a literatura a sério; não leve a vida a sério. E faça o seu próprio decálogo: neste momento, você será um leitor.

 

Entrelivros

   
 

 

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Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

Antônio Torres

 

A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil

12.10.2007

 

Na Bahia não há  atenção e espaço para o escritor

 

 

 

 

 

Ele é conhecido como um exímio romancista, que dilacera a alma de seus personagens em palavras certeiras e sempre bem esgrimidas. Mas, uma das melhores características de Antonio Torres – e que talvez contribua sobremaneira para a sua prosa escrita – não está ao alcance da massa que o lê: é um conversador de mão-cheia, sempre disposto a entabular um bom papo. E, se o lugar for o espaço que o homenageia, na livraria Letras e Expressões do Leblon, Rio de Janeiro, melhor ainda. Lá, no Café D’Antonio Torres – nome que alude seu livro, Um Táxi para Viena d’Áustria –, ele é sempre encontrado e haja prosa fiada. De uma dessas conversas, em “seu” café, saiu a entrevista que segue, concedida à repórter Ceci Alves, em que fala de seu novo livro, Sobre pessoas [Editora Leitura], que nada mais é do que uma longa conversa com o leitor sobre “as pequenas grandezas humanas”, que sempre o surpreendem positivamente.

 

A Tarde: O que aconteceu com esse intelectual, com essa pessoa? 

ANTÔNIO TORRES: Estamos todos dominados.

 

A Tarde: Dominados ou entorpecidos?

ANTÔNIO TORRES: Mas o entorpecimento faz parte da dominação. Estamos todos dominados como a turma da droga fala. “Tá tudo dominado” pelo neoliberalismo, pela falta de utopias, pelo fim das utopias. Lendo Glauber, agora, me assustei. Tá faltando esse cara nesse momento. E esse cara, agora, é que ia ser chamado de louco. Mas, que venham os doidos! Chega de tanta mente sã, nesse sentido que está aí. Chega de politicamente correto, chega desse tempo onde a crítica é malvista, qualquer voz discordante, hoje, é politicamente incorreta... Quer dizer, temos todos que ser, assim, os bons cordeiros de Deus! Aceitar pacificamente esse destino inescapável da dominação globalizada, doAntônio Torres besteirol, da bobajada. Você vê o que está acontecendo hoje na política? Cadê a reação? Claro, não quer dizer que todo o mundo é a favor disso, não, mas você não vê nenhuma manifestação. É preocupante. A gente está num momento de apatia. Mas, essa apatia tem um negócio que é uma mistura de passividade e perplexidade, e as pessoas, sem saber pra onde ir, qual é o canal de de atuação. Qual o canal de comunicação, como participar? É um momento preocupante. E tudo isso que digo veio à propósito de quando eu recebo o livro e releio a entrevista que o Glauber me deu em 1964, no lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em São Paulo. Reler essa entrevista me levou ao ponto de fazer essas considerações.

 

A Tarde: Até que ponto esse estado de coisas que estamos vivendo contribui com a cultura brasileira? 

ANTÔNIO TORRES: Claro que tem influência, sim. Mas não é propriamente uma estagnação. A energia está direcionada em outro sentido, está direcionada na sobrevivência. E pegue essa sobrevivência num sentido muito mais amplo. Sobreviver com espaço em editora, livrarias, com espaço na imprensa, tudo isso demanda um dispêndio de energia muito grande. A competição agora é outra, não é pelas idéias, é pra quem vai ter o espaço dentro do quadro editorial que está aí. Tudo tem que ser marketizado, a cultura está ficando algo fashion, se o autor não estiver fazendo parte do mundo do espetáculo, ele tá fora do mercado, ou vai ter destino muito mais penoso. E o grande dispêndio de energia está já em compreender as regras do jogo, aceitá-las, senão você é tido como louco. Por outro lado, hoje há mais autor por metro quadrado do que leitor, e começa o gasto da energia pra você achar o seu lugar no meio dessa multidão.

 

A Tarde: A gente está vivendo uma miséria cultural, para usar um termo do crítico de cinema baiano André Setaro? 

ANTÔNIO TORRES: O que está havendo é um empobrecimento da linguagem. E quando você empobrece a linguagem, você está empobrecendo o pensamento. Está havendo um empobrecimento estético. Para mim a literatura é uma coisa muito simples, simplérrima (risos): é a conquista da linguagem e o domínio do estilo. E se não há mais interesse nisso, na linguagem e no estilo, ela vai se empobrecer. Talvez os autores, de alguma maneira, caminhem para ser submissos às imposições desse leitor de hoje, muito pouco exigente em termos de linguagem. E isso é muito triste porque quanto mais nos mantemos fiéis ao nosso projeto literário, menos leitores vamos ter. Eu creio que corremos o seguinte risco: ou você entra no mercadão, ou seja, esquece a qualidade e entra no consumo desbragado, ou você se mantém fiel à busca de uma qualidade pra se comunicar apenas com uma confraria.

 

A Tarde: Você acredita que a Bahia é cruel com seus filhos?

ANTÔNIO TORRES: Engraçado que em 1976 eu fui até para o lançamento do Essa Terra, que era um best seller. E o Joca [João Carlos Teixeira Gomes], que era diretor de redação do Jornal da Bahia, me pediu pra fazer um depoimento, que ele ia dar capa do caderno. Aí, fiz um depoimento assim: “Essa terra, doce e cruel”. A Bahia é uma terra muito forte, meus livros são muito trabalhados em cima dessa força de atração dela sobre os que partem. Os que voltam e se matam, até. Quer dizer, é um desencontro tão forte, que isso é recorrente, essa coisa de sair, voltar e se matar. A Bahia tem uma história muito forte, tradições muito fortes, uma experiência étnica fortíssima, o amálgama da Bahia é extraordinário. Mas tem uma coisa mal resolvida. A coisa do escritor é mal-resolvida. Você tem uma tradição de escritores, que vai de Castro Alves a Jorge Amado. Mas, depois, houve uma política muito de difusão da rua. Da cultura de rua, de massa. E se obliterou a literatura. A literatura não foi incluída. E isso olhando pra Salvador, especificamente. Ficou uma política cultural de palanque. É trio elétrico, é Carnaval, é festa de largo... Tudo o que faz parte até das tradições, mas que foram marketizadas ao extremo. Tudo bem, a vocação da cidade é essa, mesma. Porém, não precisava abafar tanto a cultura livresca. A grande queixa está nisso. E não existe uma política, também, uma  atenção, um espaço pra o escritor ocupar.

 

A Tarde: Como você vê o mercado editorial brasileiro hoje em dia, com tanta mobilidade e entrada de capital estrangeiro? 

ANTÔNIO TORRES: Eu acho que o mercado editorial brasileiro teve grandes picos, ou ciclos, que foi o ciclo José Olympio, o ciclo do Ênio Silveira, e só até onde a minha memória alcança. Aí, no final dos anos 80, chegou o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. Ele chegou uma visão, digamos, mas chique da literatura. Com edições bem cuidadas, tratamento gráfico diferenciado, começou a pegar autores brasileiros, fez uma coleção muito boa, eu entrei no bolo, lancei lá o Um Táxi para Viena d’Aústria, e senti o impacto, que foi fantástico. Eu acho, sinceramente, que o Schwarcz foi muito saudável para o mercado naquele período, porque ele levou as editoras a adquirirem uma nova postura diante dos autores brasileiros, diante do livro, o livro como produto, o tratamento do livro na imprensa. Hoje, todo mundo faz livro bonito no Brasil, todo mundo tem imprensa, todo o mundo disputa espaço na mídia, tanto faz ser grandona, média, pequena... O mercado, realmente, ganhou um grande impulso. E, agora, estamos num terceiro tempo, que é o da investida estrangeira. A invasão espanhola. Aí, você vê os grandes grupos hispânicos entrando aqui firme, comprando as editoras locais, como é o caso da Santillana, com a Moderna, da Alfaguara com a Objetiva, e a Planeta, que se implantou sozinha... Pra mim, o que fica disso todo é o seguinte: reclamasse que o Brasil tem pouco leitor, tem pouca livraria, que é um País ainda não suficientemente alfabetizado... Com os problemas todos que a gente está careca de saber. Mas, eu tenho a impressão que essa gente está investindo no futuro. Quer dizer, é de se crer que, na análise econômica desses grupos empresariais, esse futuro é bom. Ninguém vai botar grana assim se não vir uma possibilidade enorme de crescimento do mercado.

 

A Tarde: Como define seu novo livro? 

ANTÔNIO TORRES: São exercícios efêmeros que acabaram por me dar uma idéia da minha própria trajetória pessoal, de minhas vivências, em diferentes momentos. E que me deixou um pouco pensativo sobre esses tempos, o que torna inevitável uma comparação com o tempo atual. Eu sei que a minha marca é de romancista, fui um cronista temporário de jornais, não tenho altas pretensões de ser reconhecido como cronista. Mas, me fez bem publicar um livro de textos impuros, efêmeros, mais leve. Espero que seja um divertimento para o leitor. Algo despretensioso, cuja única pretensão é de que quem leia se sinta batendo papo com essas pessoas. E essa descoberta que também me surpreendeu: que tudo o que eu escrevi até hoje foi sobre pessoas. Todos os meus personagens, foram sobre pessoas, em primeiro lugar, e os lugares dos encontros com essas pessoas.

 

A TARDE: Vamos começar por seu novo livro, o Sobre pessoas?

ANTÔNIO TORRES: Sobre pessoas saiu pela (Editora) Leitura, porque foi um convite para integrar uma coleção de cronistas, que tem Marina Colasanti, Alcena Araújo, Miguel Santos Neto, Carlos Herculano Lopes e todos autores da Record. Quando me convidaram, eu pensei: já que convidaram todos da Record [risos]... não tem problema... Aí, não me contive só em catar crônicas publicadas aqui e ali, passei um pente fino em toda a minha produção, reescrevi muita coisa, e produzi textos novos, como aquele sobre Glauber Rocha, por exemplo, que é um texto novo, embora aquela entrevista que ele me concedeu seja bem antiga, publicada há muito tempo. E escrevi um texto sobre o poeta português Alexandre O’Neil, que me deu muita emoção. Morei em Portugal, cheguei lá no dia 25 de junho de 1965, e nesse exato dia eu o conheci e ficamos amigos para sempre. E é um grande poeta. Publico até uns poemas dele, para dar uma mostra ao brasileiro, já que ele não é conhecido aqui. Porque, também, desde que eu vim de lá, eu propus a editores fazer uma antologia dele, e ninguém topou, porque achavam que ele era desconhecido, que não vende. Aí, no livro, eu faço uma mini-antologia, só para que sintam a força criadora desse poeta. Tem também dois textos que apresentei na Bahia: “Idéias de Jeca Tatu”, que foi uma conferência que eu fiz, ano passado, em Jequié, na Universidade do Sudoeste baiano, num simpósio de Monteiro Lobato. Eu a retrabalhei um pouquinho e publiquei como texto, mesmo. E o outro foi “O Roteiro Sentimental de um Leitor de Jorge Amado”, uma conferência que eu fiz nas Faculdades Jorge Amado, ano passado, a convite da Fundação Casa de Jorge Amado, e da Academia de Letras da Bahia. E, como eu senti que a Myriam Fraga chorou quando eu acabei, tava lá o James Amado, a Luisa Ramos Amado, e me pareceu que também gostaram muito, resolvi publicar como texto, também, mudando um pouco o final. Escrevi um texto novo, também, sobre D. João VI, pra fazer justiça ao rei feioso que fez o bem que nos pôde, mas,  Até hoje, é sacaneado.

A Tarde: Fale um pouco dessas pequenas emoções a que você se refere no livro... 

ANTÔNIO TORRES: Vamos começar pela crônica sobre Fernando Sabino que abre o livro. Faz algum tempo o Ziraldo assumiu o Caderno B do Jornal do Brasil, e me convidou para ser cronista diário. Queria que eu fizesse uma coluna do tamanho da do Cony, na Folha de São Paulo. A primeira crônica que eu fiz foi assim: “Pra Começar”. Aí, fiz me lembrando da última crônica do Fernando Sabino. Saiu aquilo, e eu senti, porque houve uma festa, três dias depois, o lançamento do novo Caderno B, e as pessoas vinham, o Roberto D’Ávila chegou e me pediu a crônica, porque queria mandar pra filha... Já na noite do lançamento de Sobre pessoas, chegou uma senhora que disse, sem quê nem porquê: “Eu fui casada com Fernando Sabino”. Aí, mostrei que a primeira, crônica, “Pra começar”, era com ele. E ela disse: “Agora, vou chorar...” Então, isso quer dizer o seguinte: ao pegar esse material, eu não me dava conta que eu tinha escrito muito sobre essas coisas, essas relações bacanas das pessoas comigo, que me ajudaram em algum momento... Essas pequenas grandezas humanas, que você vai descobrindo. A grandeza do Glauber Rocha comigo, naquele dia, foi um negócio fantástico! Eu era um foca, um desconhecido, ele era um cara famosão, teve uma atitude comigo inesquecível. Tava no auge, explodindo, não tinha tempo pra nada, e foi pra máquina de escrever me responder. Respondeu tudo por escrito, e é uma entrevista antológica. Aquilo mexeu muito comigo, ler aquela entrevista de Glauber. Tá faltando esse cara hoje. Tá faltando Glauber, hoje! Mexeu comigo, de uma forma a me fazer mal, a me incomodar! O que é que eu ando fazendo nesse mundo? Que atitudes o escritor está tomando, o cineasta, o intelectual, o pensador, hoje... Cadê esse visionário, esse camarada que sabe botar os pontos nos is, que sabe botar a boca no trombone, sabe conceituar, pensar o País, o tempo! Essa entrevista, lida, agora, me fez muito mal!


 

* Antônio Torres, 67 anos, é natural do povoado de Junco, hoje município de Sátiro Dias. Publicou, entre outros, Essa Terra (1976) e Um Táxi para Viena D´Áustria (1991). Ganhou, pelo conjunto de sua obra, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2000.

 

   
 
 

 

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John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

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1. Da buscada dos leitores que jamais leram coisa alguma. 2. Da kombi de Jorge Amado e a da banheira de João Cabral. 3. Da incerteza de vida inteligente em Nova-Russas.  4. Dos autores de-mais, e dos leitores de-menos. 5. Do seqüestro de 65.000 livros! 6. Da impossibilidade de ler os livros fundadores. 

 

Neste 2007, o poeta e contista Jorge Pieiro convidou-me para uma palestra no Centro Cultural do Banco do Nordeste, aqui na terrinha, Fortaleza, Ceará. Pediu que escolhesse o tema. Escolhi: «Como conseguir novos leitores de poesia». Novos leitores? Isto mesmo, no pressuposto de que os "velhos leitores" não têm tempo para ler.

Conto-lhe meu caro leitor, eu vi com estes olhos que a terra há de comer mas só daqui a muitos anos, quando eles, olhos, se cansarem de mim: Cidade da Bahia, como eu gosto de chamar a bela Salvador, morava lá; numa manhã qualquer, enquanto conversava com outros poetas na Academia de Letras da Bahia, chegou a kombi de Jorge Amado entupida de livros até a tampa. Fomos conferir: eram os livros que semanalmente Jorge Amado recebia de seus muitos leitores, Brasil e mundo afora. Muitos. Centenas. Milhares. ComSoares Feitosa dedicatória, é claro. Era lá pelo ano de 1997, Jorge, já de vista cansada, presumo que apenas os folheasse e pedisse que lhe lessem a dedicatória. Se fosse abrir cada um, ainda que a esmo, tenho que não teria tempo para mais nada.

Jorge mandava-os, gratuitos, para a Academia. Inutilmente, pois eram entesoirados em grossas estantes. "Não mexa", na daqui havia uma placa, do lado de dentro do vidro. E cadeado. Melhor que os mandasse ao sebo; no mínimo, manuseados, vendidos, trocados, circulados: o destino do livro - novos leitores.

Um poeta, não lembro quem, me contou da banheira de João Cabral, peixe que vendo pelo mesmo preço, com o defeito de que não tenho como garantir se verdadeiro ou não. Era uma banheira daquelas antigas, fora de uso, imensa, repleta de livros de poesia. Quando transbordava, a esposa do poeta, a também poeta Marly de Oliveira, mandava desbastar.

E a poeta Astrid Cabral a me contar que, num outro sebo manuseou livro novo, seu, que recém-dedicara a um medalhudo.

Em suma, gente famosa, regra geral, mandar livros para eles, uma (quase) perda de tempo. Botei um (quase) na frase anterior. Pois com "quase" ou sem "quase", não deixe, meu caro leitor/autor, de mandar o seu livro para o medalhão. É de lei! Quem sabe, quem sabe...?! [Jorge Amado era extremamente Jorge Amadogeneroso. Guardo com o maior carinho carta dele, de dupla folha, na máquina de escrever.]

A minha proposta é no sentido de acharmos leitores novos. Gente que jamais ganhou um livro de presente. Lembro de um engenheiro, façanha da  Internet, que me disse que depois que lera poesias on line, de Manuel Bandeira, no Jornal de Poesia, resolveu comprar o livro dele, obras completas, uma lindeza de poeta esse Bandeira. Falou que lera poesia apenas de obrigação, no vestibular, há muitos anos. Exato, esses leitores! Engenheiros, padres, médicos, porteiros, parteiros —onde estão eles?

Lembro do meu tempo adolescente em Nova Russas, um fim de mundo, 50 anos passados, no interior do Ceará. Lá, pasme, meu caro leitor, havia leitores. Excelentes leitores. O Juiz, Moacir Bastos, com duas amplas estantes, abertas aos jovens, que me foram de grande utilidade. O vigário, Padre Leitão, decididamente culto, recitava o Camões inteiro e o Soares Passos — O Firmamento — com grande desenvoltura. E o diretor do ginásio, Odir Diogo, que também lia. E dona Zilmar Mendes, professora, a melhor da cidade. E os bancários, a turma do Banco do Nordeste. Havia ainda mestre Raymundo (assim mesmo com ipsilone), Raymundo Aliaduz, que lia em inglês, a Time debaixo do braço, solene e compenetrado, um grande professor, quando conseguia alguma.

Agora, meio século depois, me dou conta de que nas minhas listas de endereços não tenho um único leitor em Nova-Russas! Teria cessado por lá a vida inteligente?! Eu é que me descuidei de caçar leitor. Quando me levantar desta cadeira, vou telefonar para o Benedito (o magistrado Francisco Gomes de Moura, um leitor muito culto, meu colega de jovem) e pedir a ele os nomes de Nova-Russas. Se ele souber os de Ipueiras e São Benedito que, por parentesco freqüenta, pedirei. Em suma, o banco de dados. É fundamental o banco de dados.

Veja, meu caro leitor, neste Ceará somos em torno de 200 municípios. Tenho nomes apenas em Sobral, Juazeiro, Marco, Limoeiro do Norte, Russas, Santana do Acaraú e...? Onde mais, meu Deus?! Com que direito hei de me queixar de que não sou lido?! Em cada cidade há um vigário, um juiz, um promotor, médico, delegado, advogado e professores. Esse gente não lê? Claro que lê. Motivação, o livro, como lhe chegar o livro?

Que tal listar os professores de literatura neste Brasil afora, assim mesmo, no municipal, de vidinha mansa, todo o tempo do mundo para ler, ainda que apenas folheando e olhando as figuras?  Quem é do ramo tem que cultivar um banco de endereços, isto é fundamental.

Lista de email? Sim, também. O email é a rapidez, o quase custo nenhum, comparativamente com a carta, que a ECT espicha-nos os olhos da cara. Nem todos porém possuem computador. O email funciona, mas em termos. Muita gente não abre email de desconhecidos: o medo de vírus, spans, trojans, aumentadores de pênis, vendedores de viagras e golpes de toda a ordem. Outro defeito é que você anota um email, mas daqui pouco é desativado: mudança de provedor, desistência da conta, etc.

Bom mesmo, na minha cachola, como reserva primeira, é o banco de endereços postais. Tenho o meu, ao seu dispor. Algo como uns dez mil nomes. Era para ser muito maior se eu viesse anotando, como devia, endereços que me foram surgindo ao longo dos onze anos do Jornal de Poesia (13.6.1996).

No meu banco tem gente famosa. Jorge Amado, que apaguei quando mudou-se para o céu; Hilda Hilst que jamais respondeu e também apaguei. E tem gente de "fama nenhuma", belos leitores que muito prazer me deram em contatar. Por exemplo, o Manoel Ambrósio Queiroz Neto, do Recife. Não tem livro publicado mas é um leitor cultíssimo. E o meu colega de trabalho (auditor da Receita Federal, de que estou aposentado) Joel Marques de Souza. Também não tem livro publicado. Muito modesto, você nem imagina que tenha a cultura de que tanto tem. Quer ver? Clique aqui. Se vale a pena mandar livros para essa gente "não-famosa"? Claro que vale!

E destes leitores novos que quero chamar a atenção. Veja, que tal atacar os comandantes de navios? Petroleiros que fazem a rota  Brasil - Oriente Médio - Venezuela? O que essa gente lê? Dizem que nada fazem, o navio é todo automático, eles ali pastoreando os céus, assim eu vi na Nat Geo. Claro que é tudo de altíssima especialização e responsabilidade. Mas deve haver tempo sobrando para ler. Presumo que em cada petroleiro haja uma biblioteca. Será que a Petrobrás entregaria livros com essas destinação? É tentar!

E as embaixadas? O pessoal, doido de saudade, mais os viajantes que aparecem por lá, prontos para folhear algo daqui?!

E se "roubarem" o livro? Não há problema, pois, na certa o "ladrão" o lerá. [Tenho estupendas histórias de ladrão de livros... eu mesmo.] E os porteiros de apartamentos, o dia todo, sem nada para fazer, coçando um pé com o outro? O que essa gente lê? Aqui está o problema. Vejamos o que nos diz, hoje, 12 de outubro de 2007, século XXI, o Ministro da Educação do Brasil:

"Por fim, não resta dúvida de que o Brasil terá mais chance de sucessoFernando Hadad, Ministro da Educação, Brasil não só quando as aulas tiverem um nível mais elevado, mas também quando o dogmatismo deixar de vez as salas de aula. Em Cuba, os estudantes vão bem nas provas, mas em compensação saem da escola despreparados para atuar como indivíduos autônomos no mundo moderno. O Brasil deve ambicionar muito mais do que isso." [Entrevista, Veja, 12.10.2007]

O escritor Antônio Torres reclama que há escritor de mais e leitor de menos.

É isto, meu caro Torres, os porteiros que não sabem ler, o analfabetismo comendo solto. Parece que a escola não mais reprova ninguém. Antigamente a gente dizia: «Escola PP, pagou, passou». Hoje, dizem que é assim: «Escola MP, merendou, pagou». É o que desejamos? Pior são as "faculdades" que sequer merenda dão, mas "merendam" as isenções fiscais, um ensino de péssima qualidade.

Voltemos à divulgação. Leitor, divulgue o seu escrito. Seja no blog, na page, no email, mas sobretudo na plaquete de correio e no livro para leitores que "não querem ler". Os professores de Literatura. Sim, eles mesmos, quantos são neste Brasil? E ganham uma miséria, como poderão comprar livros, se o livro é um dos produtos mais caros deste País?! Veja, um livro, na tipografia, o seu preço de custo, raro um que saia por mais de R$ 5,00, estourando, R$ 7,00. Isto mesmo, sete reais. Vá ver na livraria! Cinqüenta, sessenta paus, uma roubalheira. E o livro não tem carga tributária alta comparativamente com outros produtos, pneus, tapioca, chinelas e jerimuns. Não paga ICMS, nem PIS. nem Cofins, nem IPI. Por que é tão caro? Melhor dá-los de graça!

Quero aproveitar para discordar, com todo o respeito, do decálogo de Alberto Mussa: «III - Não empreste.» Isto mesmo, jamais empreste seus livros! Mas, indago: para que hei de emprestar um livro que já li? Melhor, mil vezes, botá-lo para andar. Em vez de emprestar, dê. Se emprestar, não o receba de volta. Mostre-se ofendido com quem vier devolvê-lo.

Tenho que o verdadeiro inimigo da cultura é o armazenador de livros. Só admito uma hipótese para o empréstimo de livros: Pedra do Reino, de Suassuna, um livro estupendo, até o instante que esteve fora de mercado. Emprestei o meu, diversas vezes, mas fiquei atento. Para receber e emprestar de novo, umas dez vezes ou mais. Agora, que está no mercado novamente, não vejo motivo para não passá-lo adiante. No dia em que me der vontade de relê-lo, adquiri-lo-ei outra vez, mas terei em meu favor a alegria da divulgação daquele exemplar que estaria apodrecendo, inútil, nas estantes que mandei desmanchar.

Sabe, leitor, qual o verdadeiro prazer da leitura?

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Abaixo as estantes! Contaram-me que o Secretário de Cultura daqui possui uma estante com 65.000 livros. Para quê, meu Deus? É de um tempo em que o livro simbolizava a dominação, o poder «Eu sei ler!», dizia, calado, o poderoso do trecho.

Veja que às costas de nosso bravo Presidente, desde os tempos dos generais 4-estrelas,  há uma fileira de livros, no gabinete. Para quê? Melhor fosse uma paisagem Brasil, qualquer uma, ainda que um caminhão cheio de flagelados. [Já andei neles. Melhor que a pé, que também já andei.]

Fico assombrado como é que alguém "seqüestra" 65.000 livros! E ainda diz que está a caminho de 100.000! Pensando nisto, fundei a Biblioteca Cururu, um bicho que você espanta de casa, no pau de vassoura, mas ele lhe salta de volta, para dentro. Assim os livros da Cururu.Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes Você os distribui, gratuitos, aleatórios, até para quem não sabe ler e, quem sabe, no mesmo ritmo das distribuições sucessivas, aquele livro que mandou andar, um dia, lhe pula de volta. Quer conhecer a Cururu? Clique na figura ao lado. Já despachei alguns milhares de livros, libertando-os da inutilidade das estantes. E mais despacharei. Nos pátios dos colégios, esquinas e praças.

Quanto à reclamação generalizada de que o governo não ajuda, de pleno acordo. Não tem que ajudar mesmo. Tem, sim, é que ensinar a molecada a ler. Não adianta incentivar autores em meio a uma população de analfabetos. O Torres tem razão: leitores de menos.

Quanto à outra reclamação do Torres, de que a Bahia não ajuda, pelo contrário, no tempo em que morei lá (e ainda hoje é assim), a Copene, atual Brasken, mantinha um plano editorial de não sei quantos livros de poesia, todos os anos, romance e conto, gratuitos, inclusive o coquetel. Isto mesmo, livro (e bebida, tudo de fino gosto) de graça, bolinhos de bacalhau inclusos, bastava comparecer para ganhar. Se alguém lia? Muito pouco, porque eram os mesmos convidados que se repetiam ao próximo lançamento. Ah tempo bom! Eu mesmo compareci a não sei quantos. Leitores, sim, cadê os leitores?!

E, finalmente, um comentário sobre a lista de bons autores, dos decálogos. Excelente! Complemento com os livros que chamo «sacerdotais». Bíblias, várias, inclusos os livros deuterocanônicos e os apócrifos. Também o Corão, cujo exemplar (tradução de Mansur Chalita) o filósofo e amigo meu, Alexandre Forte, levou emprestado e, num piscar de olhos, ele me garantiu que o "trocara" no sebo por um livro não sei lá de quem. Claro que demos grandes gargalhadas em torno. São os livros fundadores nesta banda do mundo, dita Ocidente. Não há cultura fora dos livros fundadores. Com um defeito: são de leitura impossível. Porque se o leitor for religioso, serão lidos sob o viés da fé, o que é muito ruim, péssimo; se for ateu, sob o viés da zombaria. Qual a rota de lê-los? Leia-os "de noite". "De dia", em contraponto, leia o Richard Dawkins e seus asseclas, heresiarcas de nutrida folhagem. Mas isto é assunto para outra Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopaguscerveja.

E antes que me esqueça: a ruindade de Paulo Coelho e os bilhões do mago. Falo disto na entrevista aos jovens poetas de Goiás, basta clicar na figura. Pelo contrário, Paulo Coelho é excelente. Ou não é? Veja lá. Com fundamentação, por favor. Como deve ser.

E, finalmente, ainda na minha lista, outro livro fundador, sacerdotal também: a obra completa do senhor Chico Pires, um cantador nordestino nascido na Inglaterra, e seus apóstolos, Bloom, Frye e todo o resto. 

 

 

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Dos leitores, autores e escritores

Cláudio Willer

 

 

 

Cláudio Willer

Sent: Sunday, October 14, 2007 2:27 PM

Subject: Re: Vejam só (Abraxas)


 

muito bem!

interessante a diversidade de decálogos.

enquanto não melhorarem o ensino médio, que por enquanto tem piorado, especialmente língua & literatura no ensino médio, tudo continuará como está; prosseguiremos com 70% de analfabetos funcionais, semi-alfabetizados.

abraxas,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

12.10.2007