Soares Feitosa
1. Da buscada dos leitores que
jamais leram coisa alguma. 2. Da kombi de Jorge Amado e a da banheira de
João Cabral. 3. Da incerteza de vida inteligente em Nova-Russas. 4.
Dos autores
de-mais, e dos leitores de-menos. 5. Do
seqüestro de 65.000 livros! 6. Da impossibilidade de ler os livros
fundadores.
Neste 2007, o poeta e contista Jorge
Pieiro convidou-me para uma palestra no Centro Cultural do Banco do
Nordeste, aqui na terrinha, Fortaleza, Ceará. Pediu que escolhesse o
tema. Escolhi: «Como conseguir novos leitores de poesia». Novos
leitores? Isto mesmo, no pressuposto de que os "velhos leitores" não
têm tempo para ler.
Conto-lhe meu caro leitor, eu vi com estes
olhos que a terra há de comer mas só daqui a muitos anos, quando eles,
olhos, se cansarem de mim: Cidade da Bahia, como eu gosto de chamar
a bela Salvador, morava lá; numa manhã qualquer, enquanto
conversava com outros poetas na Academia de Letras da Bahia, chegou
a kombi de Jorge Amado entupida de livros até a tampa. Fomos
conferir: eram os livros que semanalmente Jorge Amado recebia de
seus muitos leitores, Brasil e mundo afora. Muitos. Centenas.
Milhares. Com dedicatória, é claro. Era lá pelo ano de 1997, Jorge,
já de vista cansada, presumo que apenas os folheasse e pedisse que
lhe lessem a dedicatória. Se fosse abrir cada um, ainda que a esmo,
tenho que não teria tempo para mais nada.
Jorge mandava-os, gratuitos, para a
Academia. Inutilmente, pois eram entesoirados em grossas estantes.
"Não mexa", na daqui havia uma placa, do lado de dentro do vidro. E
cadeado. Melhor que os mandasse ao sebo; no mínimo, manuseados,
vendidos, trocados, circulados: o destino do livro - novos leitores.
Um poeta, não lembro quem, me contou da
banheira de João Cabral, peixe que vendo pelo mesmo preço, com o
defeito de que não tenho como garantir se verdadeiro ou não. Era uma
banheira daquelas antigas, fora de uso, imensa, repleta de livros de
poesia. Quando transbordava, a esposa do poeta, a também poeta Marly
de Oliveira, mandava desbastar.
E a poeta Astrid Cabral a me contar que,
num outro sebo manuseou livro novo, seu, que recém-dedicara a um medalhudo.
Em suma, gente famosa, regra geral, mandar
livros para eles, uma (quase) perda de tempo. Botei um (quase) na
frase anterior. Pois com "quase" ou sem "quase", não deixe, meu caro
leitor/autor, de mandar o seu livro para o medalhão. É de lei! Quem
sabe, quem sabe...?! [Jorge Amado era extremamente
generoso.
Guardo com o maior carinho carta dele, de dupla folha, na máquina de
escrever.]
A minha proposta é no sentido de acharmos
leitores novos. Gente que jamais ganhou um livro de presente. Lembro
de um engenheiro, façanha da Internet, que me disse que depois
que lera poesias on line, de Manuel Bandeira, no Jornal de Poesia, resolveu comprar o
livro dele, obras completas, uma lindeza de poeta esse Bandeira.
Falou que lera poesia apenas de obrigação, no vestibular, há muitos
anos. Exato, esses leitores! Engenheiros, padres, médicos,
porteiros, parteiros —onde estão eles?
Lembro do meu tempo adolescente em Nova
Russas, um fim de mundo, 50 anos passados, no interior do Ceará. Lá,
pasme, meu caro leitor, havia leitores. Excelentes leitores. O Juiz,
Moacir Bastos, com duas amplas estantes, abertas aos jovens, que me
foram de grande utilidade. O vigário, Padre Leitão, decididamente
culto, recitava o Camões inteiro e o Soares Passos — O Firmamento —
com grande desenvoltura. E o diretor do ginásio, Odir Diogo, que
também lia. E dona Zilmar Mendes, professora, a melhor da cidade. E
os bancários, a turma do Banco do Nordeste. Havia ainda mestre
Raymundo (assim mesmo com ipsilone), Raymundo Aliaduz, que lia em inglês, a
Time debaixo do braço, solene e compenetrado, um grande
professor, quando conseguia alguma.
Agora, meio século depois, me dou conta de
que nas minhas listas de endereços não tenho um único leitor em
Nova-Russas! Teria cessado por lá a vida inteligente?! Eu é que me
descuidei de caçar leitor. Quando me levantar desta cadeira, vou
telefonar para o Benedito (o magistrado Francisco Gomes de Moura, um
leitor muito culto, meu colega de jovem) e pedir a ele os nomes de Nova-Russas. Se ele souber os de Ipueiras e São Benedito que, por
parentesco freqüenta, pedirei. Em suma, o banco de dados.
É fundamental o banco de dados.
Veja, meu caro leitor, neste Ceará somos
em torno de 200 municípios. Tenho nomes apenas em Sobral, Juazeiro,
Marco, Limoeiro do Norte, Russas, Santana do Acaraú e...? Onde mais, meu Deus?! Com que direito
hei de me queixar de que não sou lido?! Em cada cidade há um
vigário, um juiz, um promotor, médico, delegado, advogado e
professores. Esse gente não lê? Claro que lê. Motivação, o livro,
como lhe chegar o livro?
Que tal listar os professores de
literatura neste Brasil afora, assim mesmo, no municipal, de vidinha
mansa, todo o tempo do mundo para ler, ainda que apenas folheando e
olhando as figuras? Quem é do ramo tem que cultivar um banco
de endereços, isto é fundamental.
Lista de email? Sim, também. O email é a
rapidez, o quase custo nenhum, comparativamente com a carta, que a
ECT espicha-nos os olhos da cara. Nem todos porém possuem
computador. O email funciona, mas em termos. Muita gente não abre
email de desconhecidos: o medo de vírus, spans, trojans,
aumentadores de pênis, vendedores de viagras e golpes de toda a
ordem. Outro defeito é que você anota um email, mas daqui
pouco é desativado: mudança de provedor, desistência da conta, etc.
Bom mesmo, na minha cachola, como reserva
primeira, é o banco de endereços postais. Tenho o meu, ao seu
dispor. Algo como uns dez mil nomes. Era para ser muito maior se eu
viesse anotando, como devia, endereços que me foram surgindo ao
longo dos onze anos do Jornal de Poesia (13.6.1996).
No meu banco tem gente famosa. Jorge
Amado, que apaguei quando mudou-se para o céu; Hilda Hilst que
jamais respondeu e também apaguei. E tem gente de "fama nenhuma",
belos leitores que muito prazer me deram em contatar. Por exemplo, o
Manoel Ambrósio Queiroz Neto, do Recife. Não tem livro publicado mas
é um leitor cultíssimo. E o meu colega de trabalho (auditor da
Receita Federal, de que estou aposentado) Joel Marques de Souza.
Também não tem livro publicado. Muito modesto, você nem imagina que
tenha a cultura de que tanto tem. Quer ver?
Clique aqui. Se vale a pena mandar livros para
essa gente "não-famosa"? Claro que vale!
E destes leitores novos que quero chamar a
atenção. Veja, que tal atacar os comandantes de navios? Petroleiros
que fazem a rota Brasil - Oriente Médio - Venezuela? O que
essa gente lê? Dizem que nada fazem, o navio é todo automático, eles
ali pastoreando os céus, assim eu vi na Nat Geo. Claro que é tudo de
altíssima especialização e responsabilidade. Mas deve haver tempo
sobrando para ler. Presumo que em cada petroleiro haja uma
biblioteca. Será que a Petrobrás entregaria livros com essas
destinação? É tentar!
E as embaixadas? O pessoal, doido de
saudade, mais os viajantes que aparecem por lá, prontos para folhear
algo daqui?!
E se "roubarem" o livro? Não há problema,
pois, na certa o "ladrão" o lerá. [Tenho estupendas histórias de
ladrão de livros... eu mesmo.] E os porteiros de apartamentos, o dia
todo, sem nada para fazer, coçando um pé com o outro? O que essa
gente lê? Aqui está o problema. Vejamos o que nos diz, hoje, 12 de
outubro de 2007, século XXI, o Ministro da Educação do Brasil:
"Por fim, não resta dúvida de que o
Brasil terá mais chance de sucesso
não só quando as aulas tiverem um nível mais elevado, mas também
quando o dogmatismo deixar de vez as salas de aula. Em Cuba, os
estudantes vão bem nas provas, mas em compensação saem da escola
despreparados para atuar como indivíduos autônomos no mundo moderno.
O Brasil deve ambicionar muito mais do que isso." [Entrevista, Veja,
12.10.2007]
O escritor Antônio Torres reclama que há
escritor de mais e leitor de menos.
É isto, meu caro Torres, os porteiros que
não sabem ler, o analfabetismo comendo solto. Parece que a escola
não mais reprova ninguém. Antigamente a gente dizia: «Escola PP,
pagou, passou». Hoje, dizem que é assim: «Escola MP, merendou,
pagou». É o que desejamos? Pior são as "faculdades" que sequer
merenda dão, mas "merendam" as isenções fiscais, um ensino de
péssima qualidade.
Voltemos à divulgação. Leitor, divulgue o
seu escrito. Seja no blog, na page, no email, mas sobretudo na
plaquete de correio e no livro para leitores que "não querem ler".
Os professores de Literatura. Sim, eles mesmos, quantos são neste
Brasil? E ganham uma miséria, como poderão comprar livros, se o
livro é um dos produtos mais caros deste País?! Veja, um livro, na tipografia, o seu preço
de custo, raro um que saia por mais de R$ 5,00, estourando, R$ 7,00.
Isto mesmo, sete reais. Vá ver na livraria! Cinqüenta, sessenta
paus, uma roubalheira. E o livro não tem carga tributária
alta comparativamente com outros produtos, pneus, tapioca, chinelas
e jerimuns. Não paga ICMS, nem PIS. nem Cofins, nem IPI. Por que é tão caro? Melhor dá-los de graça!
Quero aproveitar para discordar, com todo
o respeito, do decálogo de Alberto Mussa: «III
- Não empreste.» Isto mesmo, jamais empreste seus livros!
Mas, indago: para que hei de emprestar um livro que já li? Melhor,
mil vezes, botá-lo para andar. Em vez de emprestar, dê. Se
emprestar, não o receba de volta. Mostre-se ofendido com quem vier
devolvê-lo.
Tenho que o verdadeiro inimigo da cultura
é o armazenador de livros. Só admito uma hipótese para o empréstimo
de livros: Pedra do Reino, de Suassuna, um livro estupendo, até o
instante que esteve fora de mercado. Emprestei o meu, diversas
vezes, mas fiquei atento. Para receber e emprestar de novo, umas dez
vezes ou mais. Agora, que está no mercado novamente, não vejo motivo
para não passá-lo adiante. No dia em que me der vontade de relê-lo,
adquiri-lo-ei outra vez, mas terei em meu favor a alegria da
divulgação daquele exemplar que estaria apodrecendo, inútil, nas
estantes que mandei desmanchar.
Sabe, leitor, qual o verdadeiro
prazer da leitura?
Compartilhar!
Abaixo as estantes! Contaram-me que o
Secretário de Cultura daqui possui uma estante com 65.000 livros.
Para quê, meu Deus? É de um tempo em que o livro simbolizava a
dominação, o poder «Eu sei ler!», dizia, calado, o poderoso do
trecho.
Veja que às costas de nosso bravo Presidente,
desde os tempos dos generais 4-estrelas, há uma fileira de
livros, no gabinete. Para quê? Melhor fosse uma paisagem Brasil,
qualquer uma, ainda que um caminhão cheio de flagelados. [Já andei
neles. Melhor que a pé, que também já andei.]
Fico assombrado como é que alguém
"seqüestra" 65.000 livros! E ainda diz que está a caminho de
100.000! Pensando nisto, fundei a Biblioteca Cururu, um bicho que
você espanta de casa, no pau de vassoura, mas ele lhe salta de
volta, para dentro. Assim os livros da Cururu.
Você os distribui, gratuitos, aleatórios, até para quem não sabe ler
e, quem sabe, no mesmo ritmo das distribuições sucessivas, aquele
livro que mandou andar, um dia, lhe pula de volta. Quer conhecer a
Cururu? Clique na figura ao lado. Já despachei alguns milhares de
livros, libertando-os da inutilidade das estantes. E mais
despacharei. Nos pátios dos colégios, esquinas e praças.
Quanto à reclamação generalizada de que o
governo não ajuda, de pleno acordo. Não tem que ajudar mesmo. Tem,
sim, é que ensinar a molecada a ler. Não adianta incentivar autores
em meio a uma população de analfabetos. O Torres tem razão: leitores
de menos.
Quanto à outra reclamação do Torres, de
que a Bahia não ajuda, pelo contrário, no tempo em que morei lá (e
ainda hoje é assim), a Copene, atual Brasken, mantinha um plano
editorial de não sei quantos livros de poesia, todos os anos, romance e conto,
gratuitos, inclusive o coquetel. Isto mesmo, livro (e bebida, tudo
de fino gosto) de graça, bolinhos de bacalhau inclusos, bastava
comparecer para ganhar. Se alguém lia? Muito pouco, porque eram os
mesmos convidados que se repetiam ao próximo lançamento. Ah tempo
bom! Eu mesmo compareci a não sei quantos. Leitores, sim, cadê os
leitores?!
E, finalmente, um comentário sobre a lista
de bons autores, dos decálogos. Excelente! Complemento com os livros que chamo
«sacerdotais». Bíblias, várias, inclusos os livros deuterocanônicos
e os apócrifos. Também o Corão, cujo exemplar (tradução de Mansur
Chalita) o filósofo e amigo meu, Alexandre Forte, levou emprestado
e, num piscar de olhos, ele me garantiu que o "trocara" no sebo por
um livro não sei lá de quem. Claro que demos grandes gargalhadas em
torno. São os livros fundadores nesta banda do mundo, dita Ocidente.
Não há cultura fora dos livros fundadores. Com um defeito: são de
leitura impossível. Porque se o leitor for religioso, serão lidos
sob o viés da fé, o que é muito ruim, péssimo; se for ateu, sob o viés da
zombaria. Qual a rota de lê-los? Leia-os "de noite".
"De dia", em contraponto, leia o Richard Dawkins e seus asseclas,
heresiarcas de nutrida folhagem. Mas isto é assunto para outra
cerveja.
E antes que me esqueça: a ruindade de
Paulo Coelho e os bilhões do mago.
Falo disto na entrevista aos jovens poetas de Goiás, basta clicar na
figura. Pelo contrário, Paulo Coelho é excelente. Ou não é? Veja lá.
Com fundamentação, por favor. Como deve ser.
E, finalmente, ainda na minha lista, outro livro
fundador, sacerdotal também: a obra completa do senhor Chico Pires,
um cantador nordestino nascido na Inglaterra, e seus apóstolos, Bloom, Frye e todo o resto.
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