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Luís Antonio Cajazeira Ramos




 Poemas do livro Como Se

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Palavras da Salvação


E arrependeu-se o Senhor do pensamento, e da
imaginação, que tivera, de castigar o seu Povo.

Pe. Antônio Vieira

Enviei o Messias para anunciar a velha boa nova:
eterna é a morte, inesgotável ceia do Senhor.
Para que sentissem na pele o arrepio da verdade,
preguei na cruz o corpo vivo e disse: “Morra!”
(A morte é lenta ante os olhos da gazela assustada,
e a última palavra é um suspiro imperdoável.)

Para que soubessem seu destino de sono,
soltei as palavras ao vento, na fúria do mundo.
E a vida segue, ressurrecta, sua roleta mortal,
e estou perplexo: tanto insistem em vida e verdade.

Enganados nos ecos e reflexos à luz dos orifícios,
entorpecidos no tabuleiro de jogos de palavras,
lêem no embaralho de profecias sem conta
a realização dos desejos, a eternidade do enlevo.

Que marcha fúnebre compus que lhes soa aleluia!
De que vísceras secas sugam tanta vida?
Não sei mais se agi certo em dar-lhes livre arbítrio.
Para agarrarem-se a tábuas de salvação?!

Se ainda fosse a vida tempestade e correnteza,
e as naus errassem mais que os tripulantes brutos,
seria até admissível que arrebentasse a tormenta
os frágeis navios, e os náufragos resistissem heróis,
dando às ilhas paradisíacas de um oceano sem fim.

Mas qual! Apenas sopro um vento leve e calmaria,
e flutua na escotilha o trêmulo luar de violões.
Não seria melhor boiarem na superfície ondulada
e serem dignamente devorados pelos urubus?
Não sei... Foi minha culpa, minha culpa máxima,
acreditar em pensamentos que não vêm de mim.

Invento agora uma borrasca e passo uma borracha
nos rabiscos de tudo que escreveram como meu
e conto uma nova história, ou rasgo tudo e ponho um fim?

Não sei... Talvez me recolher à minha insigne ficância.


 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Nelly Novaes Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Elegia
 

A fúria das chamas atacou primeiro as partes baixas
da cidade, subiu as colinas, depois devastou...

Tácito

Minha cidade não tem estátua da liberdade.
Que concreto armado juntaria tantos fragmentos
num só corpo de mulher justíssima desvendada?
Talvez de barro seja feito um totem mulato,
e um sopro de mar faça-o sempre menino,
riso moleque rasgado num resto de calção,
caído na vida, iluminando a encruzilhada.

Meu Salvador não é o Cristo Redentor: é o Elevador
— que leva para o alto, mas leva também pra baixo,
misturando inferno e paraíso de todos os lados postais.

Não há sete maravilhas, mas há Sete Portas abertas,
dando em imensa feira — capital de sete pecados.

Sobre o tabuleiro que lhe serve de andor e palco,
ergue-se deusa do Desterro e caboclo da Misericórdia.

Protegida por fortes, faróis, igrejas e ebós, é santa
a Baía de Tolos e Sonsos e quantas ilhas e mais adornos,
sereia prometida sobre o promontório recôncavo,
vestida como um V de colo decotado e enfeitado
de balangandãs e de um presépio de invasões.

Cidade armada para intermitente batalha de largo,
explosiva guerra civil de batuques carnavalescos
— e a cavalaria dos trios elétricos galopa suas ruas,
no corpo-a-corpo fraterno e fratricida de exus e zumbis.

O abraço de seus casarões exala o suor dos pelourinhos,
entorpecendo as casas-grandes transvestidas em senzalas,
onde o Barão de Preto Velho usa terno de linho e saia rendada.

Escorre pelas ladeiras cansadas seu dendê e dengo,
lambuzando de bênçãos as promessas dos joelhos morenos,
arrastados contra as escadarias de colinas consagradas.

Salvador de ouro, meu berço e sarcófago,
minha trincheira e horizonte, minha guerra e paz,
fidelidade única de minha inconstância tanta!

Quando o mar arrastar de vez seus destroços,
meus plácidos olhos velarão seu funeral,
mergulhando em busca de seu canto Janaína.

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Elizabeth Marinheiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Cafundó


Não tenho epopéia para contar.
Minha história não tem memória.

Meu passado não tem rosto ou lustro.
Meu antepassado não foi heróico ou justo.
Seus ossos foram roídos pelo esquecimento.

Um branco sugou sua força e banzo.
Um negro ocupou sua terra e oca.
Um índio comeu seus restos e destroços.

Seus filhos, caboclos, mulatos, cafuzos,
fugiram para os confins do anonimato
e não deixaram rastro e lembrança.

Meus passos não foram seguidos
e não ecoaram nas capoeiras e matas.
As terras arrasadas ocupei sem resistência,
e nenhuma guerra enfrentei cotidiana.
Onde, minha esperança de vitória?

A luz do dia cega o horizonte carcomido,
e a noite cega os sonhos no chão batido.
Meu deserto sobrevive caatinga,
e chove o tanto para que eu continue cipó.

Minhas paredes não retêm a cal das escrituras,
e não sei ler signos em alvenaria de sopapo.
Meus filhos carregam o legado da solidão nos olhos
e não sabem seu próprio nome ou destino.

Meus mortos esquentam-se ao sol das enxadas,
secando como adubo para a mandioca.
A cana apodreceu meus dentes de açúcar,
e o sisal decepou meus braços, assim
não sorrio, não gesticulo, não sei falar de mim
e não tenho epopéias para contar miséria.

São tão poucas as posses que não tenho virtude,
e são tantas as dores que não tenho dor.

No marasmo da vida, tenho só um aban(don)o,
para espantar as moscas da fome que me rondam.

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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albano Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Au revoir les enfants


Aqui jaz minha juventude.

Dei a volta ao mundo, voltei-me
contra todos, dei as costas a tudo,
mas volto sem revolta, sem as armas,
com os calos.

Gastei os dias buscando uma saída,
volto ao ponto de partida sem chegar
no lugar. O que me chega é um basta.

Volto para o desconhecido de sempre
— cidade, pessoas, passado, tudo
em que não me reconheço.

Não me satisfaço, mas me dou por satisfeito.
Entrego os pontos, assino o cotidiano
e enterro a juventude na cidadania.

Esqueço o que não realizo e me realizo.
Enfrento a realidade realizando a realidade
e sonho tão-somente com a realidade.

Diante do cliente, sou paciente.
Cheiro a sabonete, calço sapatos
e me empacoto para o presente.

Agendo os sonhos disponíveis do meu fim-
-de-semana e descanso, faça chuva ou sol.
Descanso-me de mim mesmo todos os dias.

Entrego-me sob cartola e casaco ao mordomo
e deixo o que pensam que sou entrar no recinto
e sentar à mesa das cerimônias e espetáculos,
enquanto me amarroto, ausente, no cabide vazio.

Aqui, ali, jaz minha juventude.
Arranquei a ilusão e cruzei a ponte
de fora para dentro do mundo.

Esqueci de vir junto comigo.
Não importa: prefiro-me assim,
desacompanhado.

 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Rubens Ricupero

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Diário


Querido Diário,

A vida é tão bela, pois sou tão querida,
mamãe tão bonita, papai sabe tudo,
mas hoje a tristeza não quer me deixar.
Não quero ir pra escola, não quero sorvete,
não quero presente, nem quero brincar.

Só quero meu canto no fundo do quarto,
sentada de costas, os olhos fechados,
o dedo na boca, esquecida do mundo,
o tempo parado, ninguém como amigo,
sozinha, sem riso, sem choro, sem nada.

Meu sonho dourado, no céu azulado
de lua prateada, caiu-se pranteado
nos braços da noite estrelada sem luz.

Por que, meu querido de páginas doces,
que as flores mais belas beijaram perfume,
e a neve mais clara passou um pincel?

Por que, confidente das horas mais lindas,
que brinco contente no parque feliz?
Por que, companheiro que sabe das fadas,
bonecas, amigas e tudo que é meu?

Por que (diz, amigo!) sou triste, por quê?

Não sei por que choro meu pranto sem graça.
Não sei por que as lágrimas saltam dos olhos
e molham meu rosto. Não sei... Que desgosto!

Ajuda-me, livro que aos poucos escrevo,
ajuda que eu seja um pouquinho feliz?

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Benedicto Ferri de Barros