César Leal
Apresentação
Na
análise de um texto de alta complexidade, como este de Delmo
Montenegro, poeta integrado às vanguardas mundiais, neste início
de milênio, impõe-se ao pesquisador literário uma disciplina tão
rigorosa para sua leitura, compreensão e
interpretação, quanto
deve ser exigida daquele que organizou a sua tessitura intelectual e
técnica. Sem uma teoria crítica que sirva de base à investigação,
o crítico de poesia arrisca-se a ficar desamparado. As atitudes dos
melhores leitores, infelizmente, ainda persistem no quadro dos
estudos avançados da poesia contemporânea.
As
últimas vanguardas mundialmente aceitas foram as que atuaram na
transição do século XIX para o século XX. Logo a seguir, as
patrulhas conservadoras organizariam a sua reação. Mas os
movimentos novos que se seguiram ao trabalho dos pioneiros se
colocaram à altura das invenções dos velhos mestres. Não poderíamos
imaginar nomes como os de Ezra Pound, T.S.Eliot, Marianne Moore,
e.e. cummings, Wallace Stevens, Paul Valéry e Octávio Paz, se por
trás desses autores não existissem as criações de Baudelaire,
Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé e Apollinaire. Esses poetas se
colocaram numa posição semelhante a dos cientistas que acabaram
por derrubar, entre a segunda metade do século XIX e princípios do
século XX, a Física Clássica, em sua maior parte construída por
Newton. Com Newton ruiu também a base de seu sistema, fundamentado
no universo tridimensional de Euclides. Nietzsche, após proclamar a
“Morte de Deus”, abriu caminhos novos para a Estética como teoria
da sensibilidade. Assim, não há dúvida de que o criador de Ecce
homo é, também, o pai de todas as vanguardas. Com a Quarta
Dimensão introduzida pelas teorias de Einstein, os avanços da mecânica
ondulatória de Werner Heisenberg e a teoria quântica de Max
Planck, no último ano do século XIX, nascia um novo universo, em
que o espaço das vanguardas alcançava extraordinária magnitude.
Para o filósofo Luc Ferry, atual ministro da Educação da França,
jovem que na revolução estudantil de 1968 contava apenas 17 anos,
“por mais paradoxal que possa parecer, a estética de Nietzsche
– talvez a mais anti-hegeliana
de todas as filosofias da arte – sob certos aspectos reata com
o projeto kantiano de conceder ao sensível uma autonomia em relação
ao inteligível; e, por razões análogas, essa autonomização do
sensível conduz a uma legitimidade do ponto de vista do homem
contra o do divino. Isso faz com que a “Morte de Deus”
signifique a morte do sujeito absoluto, servindo ainda como anúncio
do “sujeito cindido”.( Cf. o Homo
Aestheticus, Cap. I, Paris,
1990). A relação de Nietzsche com Kant está justamente no enlace
de sua teoria com a idéia do “sensível” que encontramos em
“Estética Transcendental”, famosa introdução do filósofo de
Königsberg à segunda edição da obra Critica
da Razão Pura (1781),
que introduz na Estética as formas que denominou de “intuições
puras”. Essas formas são o espaço e o tempo. Foram assim
chamadas por Kant por tornarem possível o conhecimento através da
sensibilidade. A intuição empírica ainda não é o conhecimento,
mas é a base da escada que nos leva até a ele. Assim, a teoria da
sensibilidade não é o mesmo que a teoria da beleza, também
postulada por Kant em sua Crítica
do Juízo (1787). Contudo não avançaremos mais, devemos
permanecer nesses primeiros degraus da Estética, já que o tema não
pode ser tratado em termos vulgarizados.
Apoiado
nessas breves indicações é que o texto de Delmo Montenegro deve
ser enfrentado. Seu livro situa-se no âmbito de uma teoria do sensível,
indo além da teoria do belo. Delmo Montenegro não deseja ser
julgado pelo “gosto” mas pelo “conhecimento”. É claro que
iremos precisar da teoria do belo para uma completa elucidação dos
problemas da poesia. A reflexão demonstra porque isso deve ser
assim. Digo “porque”, em atenção a uma indagação interior a ser oportunamente respondida em termos
adequados.
Essas
indagações nos permitem discordar do grande crítico inglês I. A.
Richards quando diz em seus Princípios
de Crítica Literária (1925), que a arte do passado “é em
verdade obsoleta, em extensão bem maior do que pretendem certos críticos”.
É infeliz essa afirmativa do grande crítico ao tomar como exemplo
a Divina Comédia. Diz ele que esse é um livro que já não se lê,
ignorando que todas as grandes artes da modernidade se apóiam em
Dante. Até Breton reconheceu essa verdade no Manifesto Surrealista
de 1924. Tal passagem de Richards se refere especificamente à alusão,
que é uma das características mais presentes na poesia da
modernidade; também a questão da permanência da poesia.
Isso quer dizer que muitas vezes um bom poema tem vida curta,
enquanto um poema de duvidoso valor pode ter uma duração sem fim
na literatura de um povo. Por exemplo, a permanência de Os
Lusíadas, como epopéia heróica, está mais relacionada ao
tema (assunto) – descoberta dos caminhos marítimos para o Oriente
– do que aos seus valores especificamente literários, tais como
criação de um novo ritmo, uma nova estrofe, um revolucionário
emprego das imagens e voluntad de estilo, de que
falava Ortega y Gasset. Tais valores estão mais presentes em
Fernando Pessoa do que no grande Camões. Todavia, Camões
permanecerá vivo na história da poesia de língua portuguesa, com
o mesmo vigor em que permanecerá o seu mais famoso rei. Sua permanência
é assegurada não por valores poéticos puros, mas pela capacidade
de despertar, através da retórica e da eloqüência, esses valores
históricos que, em determinado momento, fizeram de Portugal uma
superpotência mundialmente respeitada pelos seus feitos.
O
livro de Delmo Montenegro situa-se no âmbito das obras de
vanguarda, tais como o Finnegan’s
Wake de Joyce, surgido, em sua versão final, precisamente em
1939, ano em que se iniciava a Segunda Grande Guerra. Desde o seu
aparecimento, nenhum crítico no mundo conseguiu penetrar nessa obra
e fazer um resumo do seu conteúdo. Isso seria impossível, tantas são
as singularidades e os mistérios desse livro de Joyce, cujos arquétipos
não permitem senão revivermos a imagem do mundo e da aventura do
homem no planeta. Esforço igual fora feito antes pela Ciência
Nova de Giambattista Vico, sem dúvida, a maior epopéia do gênero
humano, obra que tem influenciado, graças ao grande poder da
fantasia de Vico, todas as epopéias do Ocidente, a partir do século
XVII, e que criara para Joyce os saberes de sua arte. O sonho é a
sua imagem mais pura, como em muitas passagens deste livro do poeta
do Recife, que compõe aqui a sua Dublin tropical. De Joyce, disse
J. W. Beach: “quando se chega ao Work in Progres,
a Quarta Dimensão está em todas as partes, já que o estado
de sonho da mente que aqui se apresenta é compatível com a mais
aloucada união de tempos e espaços. No simbolismo desta épica
fantástica, há uma espécie de equivalência ideal entre diversos
períodos e ambientes, entre muitos e diferentes personagens do mito
e da história que se reúnem na forma de um só”. Não é isso
também o que vemos nos Jogadores de Cartas, apenas uma parte de uma obra in
progress, tal como o livro do irlandês?. Nessa primeira parte,
intitulada Les Joueurs de Cartes (em referência a um famoso
quadro de Cézanne), a narração é tratada num plano mítico, onde
ocorre a fusão dos tempos e dos espaços. Exemplos disso são a
hibridização de gêneros, a união das formas épicas da Eneida com o as estruturas narrativas do romance de formação Wilhelm
Meister, os jogos tipográficos que perfazem toda a evolução
da Poesia Visual, passando dos caligramas de Símias de Rodes do séc.
III a.C até as intervenções dadaístas do século XX, a
multiplicidade de personagens e culturas transpostas para um mesmo
plano narrativo, do semi-deus troiano Enéias ao humaníssimo Karl
Marx, do monstro vocabular Odradek extraído de um conto
metalingüístico de Franz Kafka ao coro de vozes dos fantasmas
insepultos de nossa literatura (Joaquim Cardozo, Pedro Xisto,
Vicente do Rego Monteiro, Martins Júnior, Deolindo Tavares,
Medeiros e Albuquerque, condenados ao esquecimento no Hades
pela crítica). Convém lembrar que na Divina
Comédia, no Castelo do IV Canto do Inferno,
Virgílio apresenta Dante a Homero, Ovídio, Horácio e Lucano, o
que levou Dante a considerar-se o sexto nesta famosa corporação a
que ele deu o nome de Bella
Scola, uma escola definida por Ernst Robert Curtius como de
autoridade permanente, um cânon de seis poetas máximos, bem
diferente do Canôn Ocidental do famoso Harold Bloom. Com esse
texto, Delmo Montenegro rompe com o conservadorismo artístico do
Recife, o que não significa que, por ser um conservador nas artes,
um homem bem dotado não venha a ser um poeta de reconhecida
grandeza. Apesar de falarmos em ruptura e conservadorismo, Delmo
Montenegro está apoiado, assim como Joaquim Cardozo, João Cabral
de Melo Neto, Manuel Bandeira, Carlos Pena Filho e tantos outros, na
melhor tradição clássica da poesia do Ocidente. Seu livro
demonstra uma profunda consciência dos conceitos de historicidade e
modernidade, atingindo em suas proposições filosóficas o cerne
das questões em torno do épico,
fazendo reconhecer que a epopéia propriamente dita está presente
hoje mais nas formas experimentais do Ulisses
de Joyce e do Wilhelm
Meister de Goethe, do que na expressão retórica d’Os
Lusíadas de Camões ou da Henríada
de Voltaire. A modernidade preferiu as epopéias em miniaturas,
digamos assim, como os poemas longos de T.S. Eliot ou o Coup
de Dès de Mallarmé. À maneira de Ezra Pound, Delmo Montenegro
dramatizou e liricizou o epos,
construindo uma forma em que a epopéia heróica desaparece para dar
lugar ao épico presente na modernidade.
carne
de marujos novos
/ pássaros roucos/ carnes de romãs e azeviches / ilhas
de escândalos / sirgador de almas cíprias / arrastão
pelos subterfúgios da carne / esquadras de Dionísio / Evoé
Zagreus / Evoé Bacchus / travessia de vapores na
noite dos medos / devassidão abjeta / ilhas transitórias
de Circe / ilhas de masculinidade viril / verbos de
Elpenor / cantos póstumos..... e assim continua o canto,
logo a seguir modificado e transformado em milhares de formas como
verá o leitor ao ler este livro fantástico.
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César Leal. poeta e crítico de poesia, é professor emérito da
Universidade Federal de Pernambuco
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