Jornal de Poesia

Delmo Montenegro

RimbaudGraphis@aol.com

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

Uma notícia do poeta: 

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Fortuna crítica:

Delmo Montenegro

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sébastien Joachim

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

 

 

 

 

 

 

Jomard Muniz

 

 

 

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sebastião Uchoa Leite

 

 

César Leal


Apresentação

 

Na análise de um texto de alta complexidade, como este de Delmo Montenegro, poeta integrado às vanguardas mundiais, neste início de milênio, impõe-se ao pesquisador literário uma disciplina tão rigorosa para sua leitura, compreensão eCésar Leal interpretação, quanto deve ser exigida daquele que organizou a sua tessitura intelectual e técnica. Sem uma teoria crítica que sirva de base à investigação, o crítico de poesia arrisca-se a ficar desamparado. As atitudes dos melhores leitores, infelizmente, ainda persistem no quadro dos estudos avançados da poesia contemporânea.

As últimas vanguardas mundialmente aceitas foram as que atuaram na transição do século XIX para o século XX. Logo a seguir, as patrulhas conservadoras organizariam a sua reação. Mas os movimentos novos que se seguiram ao trabalho dos pioneiros se colocaram à altura das invenções dos velhos mestres. Não poderíamos imaginar nomes como os de Ezra Pound, T.S.Eliot, Marianne Moore, e.e. cummings, Wallace Stevens, Paul Valéry e Octávio Paz, se por trás desses autores não existissem as criações de Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé e Apollinaire. Esses poetas se colocaram numa posição semelhante a dos cientistas que acabaram por derrubar, entre a segunda metade do século XIX e princípios do século XX, a Física Clássica, em sua maior parte construída por Newton. Com Newton ruiu também a base de seu sistema, fundamentado no universo tridimensional de Euclides. Nietzsche, após proclamar a “Morte de Deus”, abriu caminhos novos para a Estética como teoria da sensibilidade. Assim, não há dúvida de que o criador de Ecce homo é, também, o pai de todas as vanguardas. Com a Quarta Dimensão introduzida pelas teorias de Einstein, os avanços da mecânica ondulatória de Werner Heisenberg e a teoria quântica de Max Planck, no último ano do século XIX, nascia um novo universo, em que o espaço das vanguardas alcançava extraordinária magnitude. Para o filósofo Luc Ferry, atual ministro da Educação da França, jovem que na revolução estudantil de 1968 contava apenas 17 anos, “por mais paradoxal que possa parecer, a estética de Nietzsche – talvez a mais anti-hegeliana de todas as filosofias da arte – sob certos aspectos reata com o projeto kantiano de conceder ao sensível uma autonomia em relação ao inteligível; e, por razões análogas, essa autonomização do sensível conduz a uma legitimidade do ponto de vista do homem contra o do divino. Isso faz com que a “Morte de Deus” signifique a morte do sujeito absoluto, servindo ainda como anúncio do “sujeito cindido”.( Cf. o Homo Aestheticus, Cap. I,  Paris, 1990). A relação de Nietzsche com Kant está justamente no enlace de sua teoria com a idéia do “sensível” que encontramos em “Estética Transcendental”, famosa introdução do filósofo de Königsberg à segunda edição da obra Critica da Razão Pura (1781), que introduz na Estética as formas que denominou de “intuições puras”. Essas formas são o espaço e o tempo. Foram assim chamadas por Kant por tornarem possível o conhecimento através da sensibilidade. A intuição empírica ainda não é o conhecimento, mas é a base da escada que nos leva até a ele. Assim, a teoria da sensibilidade não é o mesmo que a teoria da beleza, também  postulada por Kant em sua Crítica do Juízo (1787). Contudo não avançaremos mais, devemos permanecer nesses primeiros degraus da Estética, já que o tema não pode ser tratado em termos vulgarizados.

Apoiado nessas breves indicações é que o texto de Delmo Montenegro deve ser enfrentado. Seu livro situa-se no âmbito de uma teoria do sensível, indo além da teoria do belo. Delmo Montenegro não deseja ser julgado pelo “gosto” mas pelo “conhecimento”. É claro que iremos precisar da teoria do belo para uma completa elucidação dos problemas da poesia. A reflexão demonstra porque isso deve ser assim. Digo “porque”, em atenção a uma indagação interior a ser oportunamente respondida em termos adequados.

Essas indagações nos permitem discordar do grande crítico inglês I. A. Richards quando diz em seus Princípios de Crítica Literária (1925), que a arte do passado “é em verdade obsoleta, em extensão bem maior do que pretendem certos críticos”. É infeliz essa afirmativa do grande crítico ao tomar como exemplo a Divina Comédia. Diz ele que esse é um livro que já não se lê, ignorando que todas as grandes artes da modernidade se apóiam em Dante. Até Breton reconheceu essa verdade no Manifesto Surrealista de 1924. Tal passagem de Richards se refere especificamente à alusão, que é uma das características mais presentes na poesia da modernidade; também a questão da permanência da poesia. Isso quer dizer que muitas vezes um bom poema tem vida curta, enquanto um poema de duvidoso valor pode ter uma duração sem fim na literatura de um povo. Por exemplo, a permanência de Os Lusíadas, como epopéia heróica, está mais relacionada ao tema (assunto) – descoberta dos caminhos marítimos para o Oriente – do que aos seus valores especificamente literários, tais como criação de um novo ritmo, uma nova estrofe, um revolucionário emprego das imagens e voluntad de estilo, de que falava Ortega y Gasset. Tais valores estão mais presentes em Fernando Pessoa do que no grande Camões. Todavia, Camões permanecerá vivo na história da poesia de língua portuguesa, com o mesmo vigor em que permanecerá o seu mais famoso rei. Sua permanência é assegurada não por valores poéticos puros, mas pela capacidade de despertar, através da retórica e da eloqüência, esses valores históricos que, em determinado momento, fizeram de Portugal uma superpotência mundialmente respeitada pelos seus feitos.

O livro de Delmo Montenegro situa-se no âmbito das obras de vanguarda, tais como o Finnegan’s Wake de Joyce, surgido, em sua versão final, precisamente em 1939, ano em que se iniciava a Segunda Grande Guerra. Desde o seu aparecimento, nenhum crítico no mundo conseguiu penetrar nessa obra e fazer um resumo do seu conteúdo. Isso seria impossível, tantas são as singularidades e os mistérios desse livro de Joyce, cujos arquétipos não permitem senão revivermos a imagem do mundo e da aventura do homem no planeta. Esforço igual fora feito antes pela Ciência Nova de Giambattista Vico, sem dúvida, a maior epopéia do gênero humano, obra que tem influenciado, graças ao grande poder da fantasia de Vico, todas as epopéias do Ocidente, a partir do século XVII, e que criara para Joyce os saberes de sua arte. O sonho é a sua imagem mais pura, como em muitas passagens deste livro do poeta do Recife, que compõe aqui a sua Dublin tropical. De Joyce, disse J. W. Beach: “quando se chega ao Work  in Progres, a Quarta Dimensão está em todas as partes, já que o estado de sonho da mente que aqui se apresenta é compatível com a mais aloucada união de tempos e espaços. No simbolismo desta épica fantástica, há uma espécie de equivalência ideal entre diversos períodos e ambientes, entre muitos e diferentes personagens do mito e da história que se reúnem na forma de um só”. Não é isso também o que vemos nos Jogadores de Cartas, apenas uma parte de uma obra in progress, tal como o livro do irlandês?. Nessa primeira parte, intitulada Les Joueurs de Cartes (em referência a um famoso quadro de Cézanne), a narração é tratada num plano mítico, onde ocorre a fusão dos tempos e dos espaços. Exemplos disso são a hibridização de gêneros, a união das formas épicas da Eneida com o as estruturas narrativas do romance de formação Wilhelm Meister, os jogos tipográficos que perfazem toda a evolução da Poesia Visual, passando dos caligramas de Símias de Rodes do séc. III a.C até as intervenções dadaístas do século XX, a multiplicidade de personagens e culturas transpostas para um mesmo plano narrativo, do semi-deus troiano Enéias ao humaníssimo Karl Marx, do monstro vocabular Odradek extraído de um conto metalingüístico de Franz Kafka ao coro de vozes dos fantasmas insepultos de nossa literatura (Joaquim Cardozo, Pedro Xisto, Vicente do Rego Monteiro, Martins Júnior, Deolindo Tavares, Medeiros e Albuquerque, condenados ao esquecimento no Hades pela crítica). Convém lembrar que na Divina Comédia, no Castelo do IV Canto do Inferno, Virgílio apresenta Dante a Homero, Ovídio, Horácio e Lucano, o que levou Dante a considerar-se o sexto nesta famosa corporação a que ele deu o nome de Bella Scola, uma escola definida por Ernst Robert Curtius como de autoridade permanente, um cânon de seis poetas máximos, bem diferente do Canôn Ocidental do famoso Harold Bloom. Com esse texto, Delmo Montenegro rompe com o conservadorismo artístico do Recife, o que não significa que, por ser um conservador nas artes, um homem bem dotado não venha a ser um poeta de reconhecida grandeza. Apesar de falarmos em ruptura e conservadorismo, Delmo Montenegro está apoiado, assim como Joaquim Cardozo, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Carlos Pena Filho e tantos outros, na melhor tradição clássica da poesia do Ocidente. Seu livro demonstra uma profunda consciência dos conceitos de historicidade e modernidade, atingindo em suas proposições filosóficas o cerne das questões em torno do épico, fazendo reconhecer que a epopéia propriamente dita está presente hoje mais nas formas experimentais do Ulisses de Joyce e do Wilhelm Meister de Goethe, do que na expressão retórica d’Os Lusíadas de Camões ou da Henríada de Voltaire. A modernidade preferiu as epopéias em miniaturas, digamos assim, como os poemas longos de T.S. Eliot ou o Coup de Dès de Mallarmé. À maneira de Ezra Pound, Delmo Montenegro dramatizou e liricizou o epos, construindo uma forma em que a epopéia heróica desaparece para dar lugar ao épico presente na modernidade.

carne de marujos novos / pássaros roucos/ carnes de romãs e azeviches / ilhas de escândalos / sirgador de almas cíprias / arrastão pelos subterfúgios da carne / esquadras de Dionísio / Evoé Zagreus / Evoé Bacchus / travessia de vapores na noite dos medos / devassidão abjeta / ilhas transitórias de Circe / ilhas de masculinidade viril / verbos de Elpenor / cantos póstumos..... e assim continua o canto, logo a seguir modificado e transformado em milhares de formas como verá o leitor ao ler este livro fantástico.

 

* César Leal. poeta e crítico de poesia, é professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco

 

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