Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Emílio Burlamaqui


 

De Nietzsche a Dante, com amor


Se vais à mulher, não esqueças o chicote
Para fustigares o perigo do amor.
Carrega a lança, pois és sempre um D. Quixote,
Mas leva o lenço para a inexorável dor.


O amor não é mais forte que a espuma
(espuma do mar: Venus, amor... tormento)
E muito menos que a neblina, que a bruma
Que se desfazem com o sol ou com o vento.


O amor é instável, sutil, evanescente.
Não há prazo para tempo tão fugaz,
Sua essência é ser assim inconsistente,
Não há norma, não há tino, não há paz.


Porta o chicote, leva o corpo, deixa a alma,
Guarda receio se a mulher tua mão alcança,
Conduz teu lenço, teu escudo, tua calma,
Se vais ao amor, deixa atrás toda esperança.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

Emílio Burlamaqui


 

De uma notícia de jornal


Disseram à menininha de quatro anos,
Sobrevivente única de um desastre de avião
Em Detroit,
Que ela iria rever seus pais
Nunca mais.


E a menininha perguntava:
O que quer dizer "nunca mais"?


Infortunadamente, meu anjo,
É nunca jamais para todo o sempre,
É o nunca mais de corvo
Que Drumond, triste, lembrou,
Que Allan, trágico, criou.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

Emílio Burlamaqui


 

Ninguém


Saio à rua, ninguém fala comigo.
Entretanto, descuidado, não falo com ninguém.
Volto à casa, ninguém deixou recado.
Porém já é tarde, durmo, esqueço,
E não telefono para ninguém.


No cais, o lenço de ninguém se agita
Enquanto entre nós a distância se faz.
E eu, estranhamente, fico olhando o mar,
Sem atinar, sem acenar,
Sem adeus.


O trem chega, a distância se desfaz.
E, no meio de uma multidão indistinta
Que não me diz mais nada,
Distingo ninguém tentando me dizer alguma coisa.
Apesar disso, passo apressado sem escutar
Aquilo que ninguém queria me contar.


Por que será então que,
Mesmo eu não correspondendo a tanta fidelidade
E a tão exato desvelo,
A presença de ninguém persiste assim
Tão intensa e tão densa
Junto a mim?


Será que, qual ave preta
E tal como noutra história,
Ninguém se afastará de mim
Nunca mais?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

Emílio Burlamaqui


 

Angico


Fogão de lenha, carvão de angico.
Bastava abanar e logo saía um café quente
Servido em bule de ágata, em chícara de ágata.


O cigarro era forte, o pigarro também.


Minha meninice na casa do meu avô
Durou uma eternidade.


Naquele tempo eu não tomava café,
Não fumava e não tinha pigarro.
Não sabia sequer que mulher
Rimava com sofrer. Rima?
Mulher rima com quê?


Mas já então eu pressentia:
Naquelas menininhas que me compulsavam
Ao Jogo do Anel havia algo diferente.
Eu era muito pequeno mas já sentia
Que aquelas mãozinhas quentes e fugidias
Tinham um toque muito diferente.


E se uma delas, ela, demorava um pouquinho mais
Suas mãos entre as minhas e me passava o anel,
Para mim era o sinal certo de que entre nós havia
Aquilo que um dia chamar-se-ia
Uma grande paixão.


Porém se nada disso sucedia,
Naquela noite eu acho que ia dormir triste,
Como hoje.


Depois, a mulher deixou de ser inatingível
Para ser apenas inalcançável.


E eu vim a conhecer a mulher
E a saber que nesses seres movediços,
Sedosos, sediços,
Havia um sumidouro.


Afinal, há rima para mulher?
Para homem tem. Serve lobisomem?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

Emílio Burlamaqui


 

Um tema


[Lá vai o grande rio
[Solene como uma procissão.


[Roçando florestas e rochas,
[Seu manto se alastra, se alonga
[E, qual pálio de rei antigo,
[Passa em lento e grave desfile.


[Sua essência: a água.
[Seu estado: o movimento.


[Mas, chegará um ponto de sua caminhada
[Em que o movimento lhe será retirado.


[Esse termo estará no seu encontro com o mar.


[O caráter essencial de água persistirá.
[No entanto — imóvel — como rio se findará.


[Deixou de existir o rio? Sim.
[Passou a inexistir a água? Não.


[A água se integrou no seu mar.


[Vamos ao homem, ser de índole tão andante,
[Esse rio humano que afronta a natureza,
[E rege, com maestria idêntica,
[Violinos e canhões, salmos e prantos.


[Pêndulo oscilante entre o nefando e o sublime.


[E lá vai o homem, inquieto, aflito,
[Em marcha desordenada
[Buscando o que não alcançará.


[Sua essência: a alma.
[Seu estado: o movimento.


[Sobreviverá o ansejo inelutável
[Em que o movimento que lhe era inerente
[Se converterá em estagnação.


[Sua essência, a alma, esta remanescerá.
[Não obstante — inerte — o homem já não será.


[Deixou de existir o homem? Sim.
[Passou a inexistir a alma? Não.


[A alma terá encontrado seu mar.

 

 

 

 

 

 

 

05.08.2005