Foi um escândalo quando a CPI do mensalão pago a deputados descobriu a existência da cafetina Jeanny Mary Córner, que animava festas estreladas por companheiros do PT durante o primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Jeanny quebrou e e se mandou para São Paulo. Desde então as noites políticas de Brasília perderam parte do seu brilho.
Outro dia, a salvo de qualquer prejuízo eleitoral, Lula arranhou o tabu que impede os políticos de falaram de sexo de um modo, digamos, menos convencional. Durante solenidade, e sem ter nada a ver, disse ser inimaginável que algumas pessoas não gostem de sexo. Não excluiu sequer os padres. E citou o chamado Ponto G para sustentar uma de suas peculiares comparações.
Nunca na história deste país um ministro de tribunais superiores havia ousado escrever um livro com conteúdo erótico. Até que o primeiro ousou. O gaúcho Eros Grau, 67 anos, ministro do Supremo Tribunal Federal, saiu da toga e lançou na semana passada o romance “Triângulo no ponto” (leia trechos abaixo). O livro virou o escândalo mais recente da República. Só de fala dele.
O livro conta a história de Rogério, Xavier e Costa que atravessam os anos da ditadura de 64 fazendo política, fugindo da polícia e fornicando. “A narrativa política é mais forte do que a sensual”, defende o autor. Mas a sensual está dando mais o que falar. Abrange de sexo anal amanteigado a “válvula de sucção” que liberava “sonoras flatulências vaginais”. Com a palavra, Eros “40” Grau (s).
Noblat: O que é um “peitinho de perdiz”?
Grau: Grau: Um peito pequeno.
Noblat: E “enterrar poemas nos seus
recônditos”?
Grau: Isso aí se deu quando um dos personagens do livro era jovem. Quer dizer que ele despejava libido. Quando o cara é jovem é isso mesmo, não?
Noblat: “Válvula de sucção”, citada no livro, é do bem ou do mal?
Grau: Mas será que isso é tão raro assim?
Noblat: A pergunta é se é do bem ou do
mal?
Grau: É do bem. É lógico que é do bem. E é muito legal.
Noblat: Faz-se o quê com “o pote de mel”
que aparece numa determinada cena do livro?
Grau: Lambe-se.
Noblat: Um candidato ao concurso da
magistratura seria aprovado caso fosse autor
desse livro?
Grau: Por que não? Um candidato à magistratura poderia resumir assim o livro para a banca: “Sou humano”.
Noblat: O senhor teve dificuldade para
sacar determinadas expressões do livro ou elas
fazem parte do seu modo de falar?
Grau: Há trechos que reescrevi quase 100 vezes. O livro foi uma coisa trabalhada como se trabalha argila para poder esculpir algo.
Noblat: A superexposição que o senhor
passou a viver depois do lançamento do livro
pode atrapalhar o magistrado, abrir espaço para
alguma piada durante um julgamento?
Grau: Seria de extremo mau gosto. Porque a superexposição é do escritor, não do magistrado. Nada tem nada a ver com minha posição de juiz.
Noblat: O senhor conta a história de sua
aldeia ou de sua alma?
Grau: Da minha aldeia e da minha alma. O que eu quis, primeiro, foi ter satisfação estética. O que produz satisfação estética é para ser contado.
Noblat: Há quanto tempo o senhor pensava em escrever um livro de ficção?
Grau: Desde a década de 70. Lembro-me de ter começado a escrever algumas vezes. Quando eu namorava minha mulher, falava assim para ela: “Vou escrever um livro”. Fez parte da cantada.
Noblat: Funcionou?
Grau: Ela é filósofa. É difícil se deixar impressionar pela superficialidade. Mas a estrutura deste romance já estava na minha cabeça há muito tempo porque a minha geração tinha a possibilidade de tudo. Refiro-me à classe média com acesso à universidade. Eu tinha a idéia de que o mundo se abria, mas que se fecharia de repente. Imaginava que o livro contaria a história de três personagens, três destinos, três pontos de chegada. O livro é muito mais forte pelo relato político do que pelo relato sensual.
Noblat: Os personagens são reais?
Grau: Não. O livro não é autobiográfico. As histórias que você escreve estão marcadas por uma pré-compreensão heideggeriana (do filósofo Martin Heidegger). Quer dizer: você compreende o mundo a partir das suas referências. Isso é importante em tudo. Na hora que você olha aqueles caras [ministros de tribunais] decidindo... Um, por exemplo, passou pelo Colégio Salesiano e por isso concede ou não concede o habeas corpus pedido (Eros foi aluno salesiano). Outro levou uma vida mais dura quando era criança. É por causa de coisas que se passaram lá atrás que se dá uma decisão com maior ou menor amplitude.
Noblat: Mas o juiz julga com o
conhecimento, razão ou coração?
Grau: Você nunca ouviu falar em jurisciência. Falamos em jurisprudência. O que se faz no Poder Judiciário é praticar a prudência. E a prudência é a razão prática. O grande problema da ciência é não ter resposta para uma questão. O grande problema da prudência é ter respostas demais para uma mesma questão. Por isso é que vemos juizes tomando decisões distintas.
Noblat: Mas, pelo o que o senhor sugere,
o coração também entra na hora de julgar?
Grau: Não é que entre. Entra é essa dificuldade e ao mesmo tempo riqueza de você tomar decisões fora do âmbito da ciência. As decisões da Justiça não são científicas.
Noblat: Como assim?
Grau: Cada vez que eu julgo, já sou outro. Tudo que vivo se incorpora ao meu patrimônio de modo tal que me influenciará na hora de julgar. Um cara genial, o jornalista Nelsinho Mota, escreveu versos que sempre uso em salas de aula: “Nada do que foi será do jeito que já foi um dia”. Atenção para a dialética: “Tudo passa, tudo sempre passará”. A vida é movimento. Nós estamos sempre em movimento.
Noblat: Voltemos ao enredo do livro...
Grau: São três caras. Um deles, Costa, é para mim o mais simpático e, paradoxalmente, o mais contraditório porque foi de esquerda e virou empresário. Preso e torturado, fez amigos no exílio e, de repente, nos dias atuais, encontra alguns deles em cargos importantes.
Noblat: O senhor gosta tanto assim dele?
Grau: Eu gosto do livro, mas há duas ou três coisas de que eu gosto muito. Uma é a descrição da noite em que a ditadura baixou o Ato Institucional número 5 (13/12/68) quando os amigos de Costa, que eram burgueses, estavam em Búzios socializando a preocupação com as liberdades. Todos pensando no social e Costa, apavorado, pensando nele mesmo. Pensando se seria logo preso ou não. A outra coisa de que gosto é da passagem sobre o comício da Central do Brasil (março de 1964). Foi o estopim para a derrubada do presidente João Goulart.
Noblat: Onde o senhor estava na noite do
AI 5?
Grau: Em Búzios.
Noblat: E na noite do comício?
Grau: No comício. Eu era do Partidão [Partido Comunista Brasileiro].
Noblat: Com quantos anos o senhor entrou
para o Partidão?
Grau: Nunca fui da juventude do partido, mas passei a cumprir tarefas a partir dos 18 anos.
Noblat: Até quando?
Grau: Quem foi nunca deixa de ser. Foi o partido que desapareceu.
Noblat: Quando o senhor começou a
escrever o livro?
Grau: Algumas coisas nos anos 70, 80.
Noblat: Guardava tudo?
Grau: Algumas. Mas eu comecei a escrever para valer no dia 23 de novembro de 2003. (Eros consulta um exemplar do livro e começa a ler.) “Projetei nas pernas cruzadas da Maria Fernanda conversando com o Décio”. Isso aqui é real. E terminei de escrever o livro em agosto do ano passado.
Noblat: Por quê tanto tempo?
Grau: Porque eu escrevia e reescrevia.
Noblat: Mesmo agora, depois de publicado,
se pudesse reescreveria alguma passagem?
Grau: Não sei. É diferente de escrever um livro sobre Direito, que pede uma prosa contida. Ficção tem o sentido lúdico. Tudo que eu não podia escrever fazendo livro jurídico escrevi fazendo ficção.
Noblat: Tem outro na cabeça?
Grau: Tenho idéia de escrever um sobre um jornalista, um cara de 40 e poucos anos. Ele e uma tia um pouco mais velha do que ele são responsáveis por conservar a casa onde viveu a avó. Ele começa a descobrir coisas sobre a avó, a mulher que ela foi.
Noblat: Memórias femininas, tipo "A
Casa dos Budas Ditosos"?
Grau: (Rindo) Não. Eu quero escrever esse livro para dar um tapa na falsa moral e porque quero escrever sobre jornalismo.
Noblat: As mulheres de “Triângulo no
ponto” são inventadas? Ou o senhor cruzou com
algumas em sua vida?
Grau: São inventadas.
Noblat: Mesmo? Nada que tenha ficado na
sua memória?
Grau: Tudo que escrevi foi lido primeiro pela minha mulher. É meu segundo casamento e já completou 35 anos. Tudo que tem aí [no livro] se passou antes. Não me vingo de nenhuma mulher que tenha conhecido. Elas são fictícias.
Noblat: Mas não há mesmo nem uma pequena vingança contra alguém?
Grau: Há uma pequena vingança, mas, obviamente, não direi contra quem.
Noblat: O senhor disse que foi do
Partidão. E o Partidão era muito moralista.
Dissentiu dele nesse aspecto?
Grau: Uma coisa não tem muita a ver com a outra pela seguinte razão: embora vivêssemos pautados pela ética, vivíamos também um momento especial, o da liberação sexual, do surgimento da pílula anticoncepcional.
Noblat: O senhor foi preso durante a
ditadura?
Grau: Fui, sim, no início dos anos 70.
Noblat: Mesmo sendo apenas um tarefeiro?
Grau: Pois é... Mas eu escondia gente. Havia um grupo de pessoas [os economistas Carlos Lessa, Maria da Conceição Tavares, João Manuel Cardoso de Melo, Luiz Gonzaga Beluzzo e o jornalista Roberto Muller] que trabalhava com Dílson Funaro quando ele era secretário de Planejamento do governo Abreu Sodré, em São Paulo. Aí o Muller foi ao Funaro e disse: “O Eros está preso e o negócio está feio”. Dílson foi muito macho. Procurou Sodré e ameaçou: “Se não libertarem Eros, eu dou entrevista e peço demissão”.
Noblat: O senhor foi torturado?
Grau: Próxima pergunta.
Noblat: Quando sairá o segundo livro?
Grau: Só quando eu for embora daqui. Em agosto de 2010, faço 70 anos e me aposento como ministro. Irei embora no dia seguinte.
Noblat: Por quê? Não gosta de Brasília?
Grau: Olha o meu nariz... Está em petição de miséria. Aqui o ar é seco. E eu me sinto inseguro.
Noblat: Inseguro? Mas o senhor morava em São Paulo, onde a insegurança é maior...
Grau: Aqui fui assaltado. Quatro bandidos entraram na minha casa e me renderam e à minha mulher. Em São Paulo eu moro na rua Bela Cintra. Caminho por ali e nunca me aconteceu nada. Aqui é uma cidade onde não sou eu mesmo. Se passo na rua em São Paulo, tem gente que me reconhece e diz: “Professor Eros...” Gente que brinca, que conversa. Aqui eu sou ministro. Essa condição de Ministro...
Noblat: Incomoda?
Grau: Sim porque eu sou um homem simples. Eu não gosto de lantejoula. Eu quero é me sentir igual a todo mundo. Aqui as pessoas são diferenciadas. E tem outra coisa horrível aqui: as pessoas se relacionam com você não por gostar de você, mas pelo cargo que você ocupa. Elas me procuram como ministro não como amigo
Noblat:O cargo impõe uma certa
distância...
Grau: Repito uma frase do professor Eduardo Portela, ex-ministro da Educação: “Eu não sou ministro. Eu estou ministro”. Alguns colegas magistrados são magistrados. Eu não. Sou um sujeito aberto às possibilidades que virão ainda. Eu não vou morrer como ministro do Supremo. Vou morrer como escritor. Acho que daqui a 20 anos somente minha família se lembrará de mim. Se mais alguém lembrar, será porque fui professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Essa é a minha glória.
Noblat: Poderá ser lembrado também como o
primeiro ministro do Supremo que escreveu um
livro erótico...
Grau: Ninguém é escritor erótico. A vida é assim. Foi um ministro do Supremo e fundador da Academia Brasileira de Letras, Lúcio de Mendonça, que inventou o romance realista.
Noblat: O senhor gostaria de ser lembrado mais como um escritor de livros de Direito ou de livros de ficção?
Grau: De ficção.
Noblat: Por quê?
Grau: Porque nos livros de ficção eu sou mais eu.
Noblat: Por qual tipo de livro o senhor
poderá obter uma vaga na Academia Brasileira de
Letras?
Grau: Não sei se irei para a Academia...
Noblat: Mas tem vontade?
Grau: Quem não tem? Quem não tem (suspira)?
Noblat: O senhor se arrepende de alguma
sentença que deu?
Grau: Nenhuma especificamente. Mas outro dia, por exemplo, votei a favor da concessão de um hábeas corpus. Depois que terminou o julgamento, o ministro Celso de Melo perguntou: “Então Vossa Excelência está concedendo o hábeas corpus?” Respondi: “Infelizmente”.
Noblat: Por que infelizmente?
Grau: Pela seguinte razão: temos um Direito escrito que é o que garante a nossa convivência harmoniosa. O que o Direito manda não coincide necessariamente com o que a imprensa acha, com o que eu acho, mas tem de ser aplicado. Imagine um sujeito mais velho que mate a namorada pelas costas. Todo mundo quer vê-lo na cadeia, mas não pode.
Noblat: Por que não?
Grau: Porque a Constituição diz que ninguém será considerado culpado se não quando definitivamente julgado. E há que se respeitar a Constituição. O Direito que aplicamos tem a ver com a Ordem. Vocês lembram o que Creonte disse para Antígona? “Prefiro a Ordem à Justiça”. Ou se mantém a ordem ou cada um sairá para a rua com seu tacape.
Noblat: Então o Direito serve mais à
Ordem do que à Justiça?
Grau: Eu não diria exatamente isso. Diria que o Direito que está aí é mais comprometido com a preservação da Ordem. Mais com ela do que com a própria Justiça, porque é necessário que essa ordem burguesa seja mantida. (A palavra “burguesa” remete Eros ao seu livro de ficção. Ele lê: “Eu digo: nós transportávamos a utopia nos nossos ombros”).
Noblat: Essa utopia se perdeu?
Grau: Para mim, não. Tento preservá-la nos votos que dou. É quando a minha mulher diz: “Mas você é terrível, você deixa sempre a sua marca”.
Noblat: Qual é essa marca?
Grau: O Poder Judiciário é uma arena onde se joga a luta de classes. Por exemplo: a greve no setor privado é uma disputa de mais valia. A greve no setor público é uma disputa de classe. Sempre faço algumas coisas mostrando a minha preocupação com o social.
Noblat: O senhor acha que o país tem
avançado no trato da questão social?
Grau: Acho que sim. Tem uma frase que, apesar de ser minha, absolutamente não parece minha. É assim: “A História passa todos os dias pelo Supremo Tribunal”. Temos evoluído, não só na concepção de Estado. Quer dizer, o Estado como espaço da liberdade. Isso é muito difícil de ser compreendido por muita gente.
Noblat: O senhor, então, tem uma visão
otimista do país?
Grau: Sim. Do país e do mundo.
Noblat: Da Justiça também? Temos Justiça
no Brasil?
Grau: Isso tem a ver com o que é possível dentro dos quadros vigentes, do modo de produção social hegemônico. Quando nós evoluirmos para um outro modo de produção, se for efetivamente evolução, seremos capazes de produzir uma Justiça mais efetiva.
Noblat: Tem algum lugar do mundo onde o
senhor enxergue uma Justiça mais justa?
Grau: É muito complicado de dizer. Tem a
ver com a resposta anterior, com o modo de
produção social. Temos uma ordem jurídica
comprometida com as relações mercantis -
sobretudo com as relações de intercâmbio.
Noblat: Os personagens do seu romance de
estréia apreciam muito um intercâmbio...
Grau: Mas não dispensam as preliminares...
Noblat: A melhor preliminar é...
Grau: A primeira.
Noblat: O senhor já se declarou
incompetente?
Grau: (Rindo) Inúmeras vezes. Eu estou falando no Tribunal, né?
Noblat: Como lidar com uma reclamação?
Grau: Com prudência.
Noblat: Quem não entraria na sua turma?
Grau: Quem matasse passarinho.
Noblat: Um tipo de corte infalível?
Grau: A que dá a última palavra.
Noblat: O juízo ajuda ou atrapalha?
Grau: Juízo com maiúscula?
Noblat: Sim.
Grau: O Juízo tem que ser, né?
Noblat: E juízo com minúscula?
Grau: É fundamental.
Noblat: Com culpa ou sem culpa?
Grau: Melhor sem culpa.
Noblat: Com ou sem testemunha?
Grau: Melhor sem.
Noblat: Ação direta ou cautelar?
Grau: Quando a cautelar for necessária...
Noblat: Confessar ou negar sempre?
Grau: Esconder.
Noblat: O amor é cego e a Justiça é...
Grau: A Justiça deveria ser cega.
Noblat: Uma cláusula pétrea?
Grau: O amor.
Noblat: No amor há cláusula vinculante?
Grau: Acho que não.
Noblat: Seu conceito de pleno?
Grau: É o que enche o coração.
Noblat: Recurso extraordinário?
Grau: É a última tentativa.
Noblat: Sua preferência é pelo domínio pleno, o domínio útil ou o direito de ocupação?
Grau: Depende da situação... Depende.
Noblat: Prevaricação é crime ou pecado?
Grau: Depende de qual. Algumas são crime.
E outras, sequer, são pecados.
Noblat: Eros é Deus ou Diabo?
Grau: É Deus.
Noblat: E o erotismo é trash ou libertário?
Grau: É libertário. É a expressão de uma
experiência estética. Existe uma linha muito
tênue entre erotismo e pornografia.
Evidentemente, pornografia é detestável. Uma
vez, em meados dos anos 80, proibiram um filme
chamado “Eu vos saúdo, Maria”. Perguntaram-me se
era pornografia. Eu disse que não. Pornografia é
ver criança passando fome.