A menina que tinha gatos dentro de si
A morte da menina que tinha gatos
dentro de si acabou com as fronteiras entre aquilo que vejo, ouço e
sinto e aquilo que eu julgava que ninguém jamais alcançaria, muito
menos uma menina. De meu apartamento vejo corpo dela no asfalto,
enquanto as luzes tristes da polícia rondam pelo bairro.
Ela nasceu próxima ao meu segundo
filho, me lembro dela ronronando no colo da mãe. A mãe, uma mulher
de perfil sério e de olhos bem claros. Cruzávamo-nos várias vezes no
elevador, mas foi somente quando nossos filhos tinham quatro anos
que a senhora de perfil sério veio falar comigo:
— Não entendi, mas a professora disse
que minha filha tinha gatos dentro de si.
—Não, Eu também não — respondi com
meio sorriso.
Era uma criança normal, de feições,
absolutamente, normais, os olhos bem pretos, os cabelos crespos e
nigérrimos. Foi quando ela percebeu que eu procurava na menina a
“anomalia” que justificasse o comentário e percebeu também que eu me
espantava com os traços díspares entre as duas.
—Puxou ao pai.
Tive meu terceiro filho e nessa época
meu cunhado veio morar conosco. Minha casa se tornou eminentemente
masculina, desengonçada, como meninos que vão crescendo e que,
realmente, cresciam, ali, entre carrinhos, bolas de futebol, jogos
eletrônicos, revistas de automóveis. Mas, mesmo assim, a menina que
tinha gatos dentro de si saía de seu apartamento cor-de-rosa onde só
ela e a mãe moravam, entre sapatilhas de balé e música clássica, e
metia os olhos na minha fechadura.Deixava-a entrar. Parava no colo
de um, grunhia, escapulia, voltava.
Eu ficava na sala corrigindo as provas
da universidade, de repente, ela, parada, diante de mim, mal eu
tornava a olhar e a casa já estava silenciosamente morta. Num desses
dias, tive um pressentimento, bati à porta do quarto de meu filho
mais velho. Ele abriu, riu, olhei, olhei, ele riu.
— Falava com quem?
—Ninguém, ora.
Houve uma outra vez em que tive o
mesmo pressentimento, mas com meu marido. Entrei no quarto: ele, na
cama, corrigindo as avaliações, uma xícara de café sobre a colcha:
— Algum problema?
— Não, nada...Falava com quem?
— Ninguém.
— Acho que estou ficando louca.
Havia algo errado sim, procurei em
todos os cômodos da casa, mas nem um quadro torto, nem uma almofada
fora do lugar, nem um papel fora do cesto, nem uma roupa suja no
sofá ou toalha molhada na cama...
Mas um dia, à mesa, ao vê-la passar a
alface, descobri que aqueles instantes gelidamente silenciosos eram
os gatos que haviam dentro dela, porque quando a gente vive e vai
vivendo uma casa, os filhos, o trabalho, esquece que existe alguém
soltando gatos traiçoeiros e invisíveis dentro da sua família,
entidade também congelada na memória.
— Você tem quantos anos mesmo?
— Vou fazer quatorze.
Claro, meu filho mais velho já tinha
dezoito anos, o segundo, quatorze, o terceiro, dez e eu e meu marido
tínhamos quarenta e dois. Por que eu não pensei nisso antes? Na
mesma noite, depois que ela saiu, chamei meus filhos e um amigo de
curso de meu filho que se hospedara conosco.
— Olhem bem pra mim: EU NÃO QUERO MAIS
VOCÊS NO QUARTO COM ELA, entenderam? ELA, a partir de hoje, entrará
nesta casa e da sala não passará.
Vendo-a pela janela, no asfalto, pela
primeira vez pareceu-me uma “menina”, porque nem mesmo quando nos
encontramos no elevador ela, criança, ao lado da mãe, já não me
parecia mais “menina” e se a chamei assim outras vezes é porque não
tive como classificá-la. Os olhos claros da mãe, os cabelos louros
da mãe e ela, parecida com um pai que talvez nunca tivesse
conhecido, o cabelo preto, os olhos escuros e ao mesmo tempo tão
cheios de reflexo, porém, agora, fechados. Os policiais. A
ambulância. Os helicópteros. Os jornais.
Fui à praça. Sentei-me ao lado da mãe.
Peguei-lhe as mãos, beijei-as. Choramos. Nessas horas faz um frio,
um frio, um frio, um frio.
— Você viu o que aconteceu?—
perguntou-me
— Não, meus filhos me deram a notícia,
não vi nada...
— Para que tantos gatos dentro de si,
não é? |