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			Francisco Renato de Souza 
      28.10.2007 
 
				
					
						 O Diário do Farol: a face do mal 
				
					
						
							  
							Questão que perpassa conceitos de moralidade, 
							ética e religião a dicotomia entre bem e mal é 
							discussão de interesse milenar. Dos relatos bíblicos 
							da queda de Satã e do livre arbítrio do homem, 
							fábulas infantis, sabedoria do senso comum, às 
							inúmeras obras artísticas e narrativas literárias, a 
							discussão gira em torno da negatividade do mal e 
							fator positivo do bem. Em uma perspectiva contrária, 
							a personagem central de O Diário do Farol, de João 
							Ubaldo Ribeiro, incita o leitor a uma reflexão sobre 
							a essência humana no mal, motivo central desta 
							edição.
 
 
							A obra é narrada por 
							uma personagem voluntariamente anônima que se 
							denomina o faroleiro, e que, aos sessenta anos de 
							idade, vive isolada em uma ilhota deserta, inóspita 
							e de difícil acesso, se dedicando a registrar, em um 
							relato em forma de diário, suas memórias de uma vida 
							calcada na vingança, no ódio e na ambição. 
							Vítima da dor da perda 
							da mãe, morta por seu pai, e da incessante violência 
							paterna, física e psicológica, cresce com a 
							determinação de vingar-se do pai assassino e de sua 
							tia materna, irmã de sua mãe, parceira e cúmplice no 
							crime, que passa a ser sua madrasta. Mostra-se com 
							uma aptidão prazerosa em toda forma de vilania para 
							atingir sua meta, desenvolvendo uma personalidade 
							dissimulada e voltada para a farsa. Conta com o 
							auxílio da sua mãe morta, que se mostra presente 
							através de uma voz que acompanha e incentiva os atos 
							do filho vingador: ´... sou movido a escrever este 
							relato, mais fortemente que pelos outros motivos, 
							pela minha Vaidade em me considerar o pior dos seres 
							humanos, o único, que eu saiba, que encarnou em si 
							tudo o que lhe conveio, sem permitir que o filtro de 
							qualquer valor erguesse impedimento. Veja bem, isso 
							não me retira a solidão, antes a sublinha. Não fiz, 
							nem de longe, tudo que de mau já se fez, mas teria 
							feito, se houvesse oportunidade. Sou, portanto, para 
							o espelho de minha absoluta Vaidade, o pior dos 
							homens, o que cometeria o que de mais hediondo se 
							pudesse conceber e chegou a uma quantidade difícil 
							de igualar, não em número, mas em qualidade. Eu sou 
							um grande mau, dir-se-ia´ (p. 23). 
							Batiza o farol em que 
							vive com o irônico nome de Lúcifer, o príncipe da 
							luz, criado por Deus, que se revolta contra o 
							Criador, formando um reino adverso. E intenta com 
							seu relato (e a vaidade que o leva à escritura) 
							incutir no leitor um incômodo, levando-o a entender 
							sua própria solidão e loucura, condição, acredita 
							ele, perene a todo e qualquer ser humano. Entende o 
							homem como um ser solitário por nascimento, 
							natureza, sentimento e vida, que teria uma 
							curiosidade essencial sobre a confirmação secreta de 
							sua sanidade. Os atos que aparentemente seriam mais 
							repugnantes aos seus olhos e aos do mundo são 
							interiormente praticados, encontrando na especulação 
							da alma alheia o confronto com sua própria natureza 
							de ´assassinos, invejosos, devassos, traidores, 
							egoístas, mentirosos, pusilânimes, canalhas, 
							mesquinhos, hipócritas, adúlteros, santos 
							neuróticos, antropófagos, parricidas, matricidas, 
							infanticidas, estupradores, todos, todos, todos os 
							que estão dentro dele mesmo.´ (p. 18). 
							Esse lado mau que cada 
							homem traz dentro de si, e por condições externas 
							impostas pela educação e convívio social, mantém 
							reprimido, ganha um contorno fantástico na história 
							do visconde Medardo di Terralba, em O Visconde 
							Partido ao Meio, de Italo Calvino. Em certa guerra 
							contra os turcos, nas planícies da Boêmia, o 
							visconde é atingido por uma bala de canhão que o 
							corta em dois no sentido longitudinal. A parte 
							direita se mantém intacta, perfeitamente conservada, 
							exceto pela enorme rasgadura que a separara da parte 
							esquerda estraçalhada - esta, dada como inválida. É 
							socorrido, e, após uma incrível intervenção 
							cirúrgica, resiste, vivo e partido ao meio. Os 
							habitantes de Terralba -após o retorno de Medardo à 
							terra natal - logo perceberiam que não era só a 
							aparência do mestre que havia mudado. De aspecto 
							sombrio e taciturno, dedica-se a praticar pequenas 
							maldades e, após a morte do pai, que morre em uma 
							espécie de entrega desgostosa, Medardo assume o 
							viscondado e inicia uma série de maldades pela 
							região. Condenava culpados e inocentes à forca, 
							incendiava bosques inteiros, vitimando pobres 
							camponeses, e até mesmo o próprio castelo com sua 
							ama dentro - ela que outrora lhe substituira a 
							demanda de afeto causada pela ausência materna. 
							No entanto, a sua 
							metade dada por perdida sobrevivera e volta em uma 
							espécie de antípoda, sendo toda ela boas ações. Em 
							um comportamento maniqueísta, o Mesquinho e o Bom 
							seguem vidas de atos divergentes - um destrói e o 
							outro repara - até o confronto final, no qual, bem e 
							mal, tentando sobrepujarem-se, terminam por 
							destruírem-se mutuamente. Após uma elaborada 
							cirurgia, o visconde tem suas partes restauradas e 
							reunificadas: ´Assim, meu tio Medardo voltou a ser 
							um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de 
							maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao 
							que era antes de se partir ao meio. Mas tinha a 
							experiência de uma e de outra metade refundidas, por 
							isso devia ser bem sábio.´ (p. 11). 
							Essa caricatura do uno 
							que concentra em si virtude e vício, em medidas 
							exatas e conflitantes, ilustra nitidamente o 
							pensamento maniqueísta. O Maniqueísmo foi fundado na 
							Pérsia, no século III, por Mani, também conhecido 
							por Maniqueu, e tem como principal fundamento o 
							dualismo absoluto. Defende que o universo está, 
							assim, dividido em dois princípios básicos e 
							absolutos: Luz e Trevas, ou Bem e Mal, tendo cada 
							qual um reino próprio, que são distintos e separados 
							entre si. O reino da luz é a manifestação do bem e 
							do espírito; o das trevas, morada da matéria e lugar 
							próprio de todo mal. A doutrina maniqueísta pregava 
							um perene exercício de purificação que consistia em 
							uma constante discriminação do bem e do mal, 
							visando, através de uma conduta de vida reta e 
							obediente aos preceitos maniqueus, libertar as 
							partículas de luz aprisionadas na matéria, 
							permitindo seu retorno ao reino da luz e, dessa 
							forma, facilitando e apressando a separação 
							definitiva entre bem e mal. Não podendo ser 
							definitivamente destruído, já que é um princípio da 
							realidade, o mal deve ser relegado ao mundo 
							interior, o reino das trevas. Essa seria, então, a 
							vitória maior que o bem pode almejar. 
							O principal nome 
							ligado ao maniqueísmo foi o de Santo Agostinho, que 
							durante um tempo foi um adepto de seus preceitos e, 
							depois, um de seus mais ferrenhos detratores. 
							Nascido em Tagaste, 
							província de Numídia, atual Argélia, filho de pai 
							pagão e mãe cristã, viaja a Cártago para 
							aprimoramento dos estudos. Lá se desvia moralmente e 
							leva uma vida licenciosa, repleta de prazeres, 
							principalmente sexuais. Converte-se ao cristianismo 
							aos vinte e dois anos, vindo a tornar-se bispo em 
							Hipona. Agostinho influenciou toda a Idade Média e 
							fez parte do que os historiadores da Filosofia 
							denominaram de Patrística, a filosofia dos padres da 
							igreja. É, na realidade, uma apologia que sintetiza 
							a filosofia grega clássica com a religião cristã. 
							Suas experiências no campo dos estudos filosóficas 
							foram intensas - além de seu contato com a 
							experiência maniqueísta antes da adentrada ao mundo 
							cristão. A questão do bem e do mal sempre foi uma 
							preocupação em suas reflexões. Na obra Confissões, 
							uma biografia em que contrasta sua vida de pecador 
							com a graça divina, mas atento às preocupações 
							filosóficas, a busca do entendimento da origem do 
							mal é uma constante para o bispo de Hipona. 
								
									
										
											
											
											Através da hierofania, a 
											manifestação do sagrado: Deus 
											estando em todas as coisas, se nos 
											revela através delas e de nós 
											mesmos, Agostinho internaliza o 
											divino no humano. A alma seria então 
											um receptáculo da luz divina e, ao 
											mesmo tempo, a abertura do ser 
											humano para Deus, já que a 
											experiência da eternidade acontece 
											nela. A essência e o sentido da vida 
											humana, e de tudo que a envolve, 
											assim se caracteriza. À exceção do 
											pecado. Sendo o divino uno, ele não 
											carrega o mal. 
											Ao não 
											entender o mal como outro ser 
											poderoso, Agostinho afasta-se do 
											maniqueísmo, e o classifica (o mal) 
											como uma privação do bem. O mal fica 
											excluído da idéia de ser. E não 
											sendo, não pode competir com o bem- 
											como pregava o pensamento maniqueu. 
											No 
											entanto, fica a questão da 
											responsabilidade do pecado. Se o ser 
											humano recebe a luz divina, como 
											pode ele pecar? Agostinho justifica 
											a questão com a teoria do 
											livre-arbítrio. O homem foi criado 
											por Deus livre e dotado de vontade, 
											e quando caminha para o não-ser, se 
											afastando assim do ser, aproxima-se 
											do mal e comete os pecados. Através 
											do pecado, o homem transgride a lei 
											divina, já que, criado para ater-se 
											mais à alma, prende-se ao corpo e a 
											matéria, invertendo os valores da 
											existência por cair na ignorância: 
											´Indaguei o que era iniqüidade, e 
											não achei substância, mas a 
											perversão de uma vontade que se 
											afasta da suprema substância, de ti, 
											meu Deus - e se inclina para as 
											coisas baixas, e que derrama suas 
											entranhas, e se intumesce 
											exteriormente.´ (p. 158). 
											A 
											questão moral do bem e do mal na 
											retratação de Medardo dividido em 
											duas partes antípodas é, no entanto, 
											um reflexo bem menor do que a 
											meditação sobre a divisão 
											característica do homem 
											contemporâneo, como deixa claro 
											Calvino, no prefácio da obra: ´Não, 
											não quebrava mesmo a cabeça com 
											isso, nem por um instante havia 
											pensado no bem e no mal. (...) eu 
											usara um contraste narrativo notório 
											para evidenciar o que me 
											interessava, isto é, a divisão ao 
											meio.´ (p. 10). Este homem, chamado 
											por Marx de ´alienado´, classificado 
											por Freud de ´reprimido´, é um ser 
											incompleto e mutilado; partido ao 
											meio, aspira a um estado de 
											completude. Inimigo de si próprio, 
											carrega o contraste entre o que é e 
											o que aparenta ser. Inspirou-se em O 
											Médico e o Monstro, clássica obra de 
											R. L. Stevenson em que o tema do 
											dualismo do ser acontece através da 
											excêntrica experiência científica do 
											doutor Henry Jekyll. Consciente e 
											intrigado com o dualismo que todo 
											ser carrega dentro de si, e que o 
											obriga à dissimulação, ´ia-se 
											cavando em mim, mais do que na 
											maioria dos mortais, esse profundo 
											fosso que separa o mal do bem e 
											divide e compõe a dualidade da nossa 
											alma.´ (p. 71), o médico consegue 
											criar uma fórmula, por meio de 
											experiências de laboratório, capaz 
											de libertar o corpo de certas 
											faculdades que compõem o espírito, 
											obtendo uma nova forma corpórea que 
											substituiria a primeira: ´senti-me 
											mais novo, mais leve, mais bem 
											disposto, e experimentava, no meu 
											íntimo, uma impetuosa ousadia; 
											desenrolavam-se, na minha fantasia, 
											desordenadas imagens sensuais, 
											vertiginosamente; desfaziam-se os 
											vínculos morais e se mostrava agora 
											uma liberdade da alma que, 
											entretanto, não era inocente. 
											Considerei-me, desde o primeiro 
											sopro da minha nova existência, de 
											ânimo mais perverso, dez vezes mais 
											iníquo, reintegrado na maldade 
											original; e esse pensamento, naquela 
											hora, prendia-me e deliciava-me como 
											um vinho.´ (p. 73). 
											Edward 
											Hyde personificava o lado selvagem 
											do Dr. Jekyll, desde a aparência 
											física até os atos, livre das 
											correias, entregue à animalidade 
											pura, capaz até de matar. Dessa 
											forma, o médico mantinha sua conduta 
											impoluta, enquanto seu alter-ego 
											dava vazão às necessidades selvagens 
											da alma. A experiência, no entanto, 
											lhe foge ao controle e a besta que 
											Jekyll mantinha a seu dispor passa a 
											ser o seu senhor. A necessidade de 
											transmutação passa a ser a busca de 
											sua identidade original. Dominando 
											completamente o corpo de Jekkyl, 
											Hyde é encontrado morto no 
											laboratório do doutor, que 
											desaparecera nas entranhas da 
											criatura. 
											Essa 
											unificação de instinto selvagem e 
											razão civilizada, que compõe uma 
											quase dupla personalidade do homem 
											contemporâneo, é narrada por Rubem 
											Fonseca em Feliz Ano Velho. O perfil 
											da violência e crueldade, em um 
											mundo que estreita a distância entre 
											a marginalidade e o aparente 
											cotidiano pacato da classe média nas 
											grandes cidades, é o mote das 
											narrativas da obra. Nos contos 
											Passeio Noturno I e II, a cisão do 
											homem moderno é demonstrada através 
											do excêntrico passatempo de um 
											executivo que foge do tédio e do 
											vazio de uma vida sem sentido e de 
											uma família sem laços afetivos. Com 
											uma rotina repetitiva, ele extravasa 
											o estresse em um esporte radical. 
											Nada de tiro ao alvo ou luta 
											marcial. Com um Jaguar especialmente 
											equipado: pára-choques salientes, 
											com reforço especial duplo de aço 
											cromado e um motor poderoso que vai 
											de zero a cem quilômetros em 
											segundos, saí à noite pelas ruas do 
											Rio de Janeiro atropelando, com 
											estilo, transeuntes, em uma espécie 
											de vídeo game real. Na segunda parte 
											do conto, é assediado por uma bela 
											jovem e a convida para jantar; 
											durante o encontro, tudo o entedia. 
											Como todo homem, aguarda 
											ansiosamente pelo que vem depois. 
											Porém, diferentemente de todo homem, 
											não será pelo sexo com ela que ele 
											terá prazer: ´Bati em Ângela com o 
											lado esquerdo do pára-lama, jogando 
											o seu corpo um pouco adiante, e 
											passei, primeiro com a roda da 
											frente - e senti o som surdo da 
											frágil estrutura do corpo se 
											esmigalhando - e logo atropelei com 
											a roda traseira, um golpe de 
											misericórdia, pois ela estava 
											liquidada, apenas talvez ainda 
											sentisse um distante resto de dor e 
											perplexidade. Quando cheguei em casa 
											minha mulher estava vendo televisão, 
											um filme colorido, dublado. Hoje 
											você demorou mais. Estava muito 
											nervoso?, ela disse. Estava. Mas já 
											passou. Agora vou dormir. Amanhã vou 
											ter um dia terrível na companhia.´ 
											(p. 71). 
											A 
											personagem de Fonseca, ao contrário 
											de Dr. Jekyll, tem total controle do 
											monstro que tem dentro de si - 
											criando inclusive uma perfeita 
											sintonia, tirando dele o prazer que 
											precisa para se manter no mundo 
											racional. Diferente também da 
											incompatibilidade do médico com sua 
											fera - e da unificação equilibrada 
											de ambas as partes do visconde 
											partido ao meio - o faroleiro 
											destrói as teorias maniqueístas - 
											sendo talvez o que Santo Agostinho 
											chamava de ´aberração´- 
											apresentando-se como um ser 
											desprovido de qualquer sentimento 
											bom. 
											
											Conforme as promessas de seu pai, é 
											mandado a um seminário para as 
											preparações necessárias à ordenação 
											de um padre. Cheio de ódio e sonhos 
											de vingança, encontra no mundo 
											clerical não um ambiente de 
											purificação, e sim, um ambiente 
											propício para a degradação e 
											proliferação de todo o cinismo, 
											crueldade e torpeza que carregava em 
											si. 
											
											Consegue facilmente manter uma 
											condição de liderança sobre os 
											outros internos e também sobre 
											alguns padres, utilizando-se da 
											chantagem de informações facilmente 
											adquiridas em um local onde a 
											zoofilia e a sodomização de padres 
											por internos - ato que também ele 
											desempenhou como forma de obtenção 
											de oportunidades - era ato 
											corriqueiro: ´Hoje sei que o 
											seminário, como intuí desde o 
											primeiro dia, era mais ou menos como 
											uma penitenciária. Há muitos 
											submundos nas penitenciárias e tudo 
											se consegue, desde drogas a armas, a 
											depender dos contatos que se fazem.´ 
											(p. 60). 
											A 
											descrição do internato como forma de 
											denúncia de local de deformidade do 
											ser, contrariando a visão 
											convencional da sociedade, é também 
											mostrada e é o foco da obra O 
											Ateneu, de Raul Pompéia, uma 
											caricatura sarcástica da vida no 
											internato. A obra retrata o doloroso 
											processo de transição da infância à 
											idade adulta, através da personagem 
											Sérgio, que é posta no internato 
											pelo pai para sua lapidação de 
											caráter. Os percalços, maus-tratos e 
											provações a que Sérgio é 
											constantemente submetido no 
											internato, no entanto, fazem-no 
											perceber, a duras penas, que se 
											encontra em um campo hostil. 
											Com 
											relações bem mais delicadas nas 
											ligações de afeto entre os internos, 
											que as descritas pelo faroleiro no 
											seminário, as ligações homossexuais 
											do internato são narradas com mais 
											sutilezas, acontecendo mesmo em 
											forma de amizade. Ainda que por 
											interesse, Sérgio fora desenvolvendo 
											relações ambíguas com alguns 
											companheiros; fazia-se necessário 
											obter a proteção dos mais fortes: 
											´No recreio não andávamos juntos; 
											mas eu via de longe o amigo, atento, 
											seguindo-me com seu olhar como um 
											cão de guarda. Soube depois que 
											ameaçava torcer o pescoço a quem 
											pensasse apenas em me ofender...´ 
											(p. 85), levando-o mesmo a se 
											posicionar nitidamente em uma 
											postura totalmente feminina: 
											´Confusamente ocorria-me a lembrança 
											do meu papelzinho de namorada 
											faz-de-conta, e eu levava a 
											seriedade cênica a ponto de 
											galanteá-lo, ocupando-me com o laço 
											da gravata dele, com a mecha de 
											cabelo que lhe fazia cócegas aos 
											olhos; soprava-lhe ao ouvido 
											segredos indistintos para vê-lo 
											rir...´ (p. 123). Marco inicial do 
											Naturalismo no Brasil, a obra de 
											Pompéia, no entanto, mostra uma 
											protagonista inocente na sua forma 
											de se utilizar dos favores como 
											forma de sobrevivência: ´Por minha 
											parte, entreguei-me de coração ao 
											desespero das damas romanceiras, 
											montando guarda de suspiros à janela 
											gradeada de um cárcere onde se 
											deixava deter o gentil cavalheiro, 
											para o fim único de propor assunto 
											às trovas e aos trovadores 
											medievos.´ (p. 97). 
											O 
											Ateneu é descrito como organização 
											imperfeita, local de aprendizagem de 
											corrupção e incitação da espionagem, 
											intriga e humilhação, onde abundam 
											as seduções perversas. Assim 
											descreve o faroleiro o seminário e 
											seu sistema: ´Hoje sei que o 
											seminário, como intuí desde o 
											primeiro dia, era mais ou menos como 
											uma penitenciária. Há muitos 
											submundos nas penitenciárias e tudo 
											se consegue, desde drogas a armas, a 
											depender dos contatos que se fazem.´ 
											(p. 60). A forma mais corrente de 
											obtenção de favores era a 
											sodomização dos padres pelos 
											internos, o que possibilitava 
											favores extraordinários. Corrompido 
											voluntariamente pelo esquema, o 
											faroleiro, que em matéria de sexo só 
											conhecia a masturbação coletiva dos 
											meninos do interior, se entrega à 
											masturbação, felação, sodomização e 
											sadismo nos padres, em passagens bem 
											menos sutis que as de Sérgio no 
											internato, deixando para trás a 
											inocência. 
											O 
											caminho para a degradação juvenil 
											perpassa, também, a história de 
											Noboru, personagem de O Marinheiro 
											que Perdeu as Graças com o Mar, de 
											Yukio Mishima. Noboru é um 
											adolescente órfão de pai que vive 
											com sua mãe, Fusako, jovem e bela 
											proprietária de uma loja de artigos 
											de luxo importados do ocidente, que 
											leva um modo de vida cosmopolita e 
											contrário às tradições japonesas, na 
											cidade portuária de Yokohama. Quando 
											sua mãe se envolve com o marinheiro 
											Tsukazaki, uma figura idealizada aos 
											olhos do garoto, por ver a vida no 
											mar como uma forma de vida heróica, 
											Noburu, que não se ressente da 
											ausência paterna, por entender a 
											paternidade como representação de 
											acomodação odiosa, porque contrária 
											a qualquer possibilidade de 
											heroísmo, estabelece com ambos um 
											triângulo de relacionamento. No 
											entanto, Tsukazaki, que vivia à 
											deriva entre uma monótona rotina de 
											embarcadiço e a ausência de vínculos 
											em terra firme, envolve-se 
											emocionalmente com Fusaco, 
											decidindo-se por abandonar a vida no 
											mar para se casar com ela. O 
											marinheiro torna-se assim, para o 
											garoto, um ser abjeto por quem passa 
											a alimentar sentimentos de ódio e 
											vingança. 
											Toda 
											essa trajetória sentimental que vai 
											da idolatração ao desprezo, Noboru 
											compartilha com um grupo de amigos 
											com os quais divide uma espécie de 
											sociedade secreta. Marcando seus 
											encontros em diferentes pontos da 
											cidade, os cinco garotos, liderados 
											por um deles, o chefe, discutem seus 
											ideais niilistas com a presunção de 
											intelectuais que têm o ego acima dos 
											demais: ´... eram todos meninos 
											pequenos, delicados, e alunos 
											excelentes. A maior parte dos 
											professores fazia rasgados elogios a 
											esse grupo destacado, e até mesmo o 
											apontava como um exemplo para alunos 
											menos brilhantes.´ (p. 46). Eram 
											todos filhos de ´boas famílias´ e 
											traziam, incitados pelo chefe - que 
											assim como Noboru, tinha apenas 
											treze anos - a convicção de que a 
											vida era um caos da existência em 
											meio a uma sociedade destituída de 
											significado, fazendo-se necessário 
											tirar força da incerteza e do medo 
											que o caos provoca para, assim, 
											recriar a existência. E eram os 
											pais, a escola e a sociedade, todos 
											´cegos´, que fragmentavam sua 
											capacidade ilimitada. Agindo como 
											militantes de uma causa, pensavam e 
											se preparavam para tudo, e, com o 
											pensamento dos extraordinários, não 
											recuariam diante da necessidade de 
											derramamento de sangue: ´O chefe 
											sempre insistiu em que eram 
											necessários atos como esses para 
											encher os grandes vazios do mundo. 
											Embora nada mais pudesse realizar 
											isso, dizia ele, o assassinato 
											encheria esses buracos abertos, da 
											mesma maneira que uma fratura enche 
											toda a face de um espelho. E então 
											eles conseguiriam um poder real 
											sobre a existência.´ (p. 53). 
											 
												
													
														
															
															
															Era preciso um 
															coração duro e frio 
															para executar tal 
															tarefa, caso esta se 
															lhes apresentassem. 
															A prova para Noboru 
															viria na execução de 
															um gato, atirado 
															diversas vezes 
															contra uma acha de 
															lenha: ´O gato bateu 
															na lenha e voou 
															novamente pela 
															última vez. Suas 
															patas traseiras se 
															contorceram, 
															traçando amplos 
															círculos imprecisos 
															no chão sujo, e em 
															seguida pararam. Os 
															garotos ficaram 
															superalegres com o 
															sangue respingando 
															na lenha´ (p. 54). 
															Como forma de 
															mostrar de perto, e 
															sem disfarces, a 
															morte, o chefe, com 
															uma tesoura, 
															´desnuda´ o gato, em 
															uma minuciosa 
															autópsia. À medida 
															que o gato vai sendo 
															escalpelado, tendo o 
															endoderma exposto, 
															com vísceras e 
															órgãos sendo 
															cortados no exame 
															didático, Noboru, 
															inicialmente 
															confuso, se 
															certifica do seu 
															mérito: ´eu o matei 
															sozinho, posso fazer 
															qualquer coisa, por 
															mais terrível que 
															seja.´ (p. 57). 
															Aprovado pelo ritual 
															que o livraria da 
															hesitação infantil, 
															ouve do mestre: 
															´Você fez um bom 
															trabalho. Acho que 
															podemos dizer que 
															isso o transformou 
															realmente num 
															homem.´ (p. 57). 
															
															A desilusão do 
															enteado com o 
															padrasto chega ao 
															extremo quando a mãe 
															descobre que o 
															garoto os espionava 
															através de um 
															pequeno buraco na 
															parede de seu quarto 
															e delega ao marido a 
															punição do garoto. 
															Tsukazaki, apesar de 
															não amar Noboru 
															realmente como 
															filho, acredita nos 
															instintos paternos, 
															emoção só agora 
															descoberta, e age de 
															maneira 
															condescendente, 
															causando nojo a 
															Noboru, que convoca 
															uma reunião de 
															emergência com o 
															grupo, culpando o 
															marinheiro de alta 
															traição. Arquitetam 
															um plano para atrair 
															e sedar o marinheiro 
															e, calculadamente 
															protegidos por uma 
															lei que deixa 
															impunes atos de 
															crianças menores de 
															quatorze anos, 
															executar o traidor, 
															utilizando a prática 
															já experimentada com 
															o gato. O dever do 
															grupo é pôr a 
															engrenagem deslocada 
															em seu devido lugar. 
															E, para manter a 
															ordem no vazio do 
															mundo, a única saída 
															seria pelo desfecho 
															trágico, fazendo do 
															marinheiro, assim, 
															novamente um herói. 
															
															Assim como Noboru, o 
															faroleiro teve sua 
															tarefa de 
															treinamento. Sendo 
															seu pai o alvo de 
															sua vingança, 
															calcular e executar 
															a morte de seus 
															irmãos paternos foi 
															para ele como uma 
															simulação do que 
															viria a ser o seu 
															ato máximo. Desde o 
															momento em que fora 
															apresentado, em uma 
															das férias do 
															seminário, à sua 
															irmãzinha, 
															desenvolveu por esta 
															um repúdio que só 
															arrefeceu com a 
															idéia de eliminar a 
															criança. De volta ao 
															seminário, pesquisa 
															em um livro de 
															agricultura venenos 
															que adicionaria, em 
															um plano 
															milimetricamente 
															calculado, aos 
															pacotes importados 
															de vitaminas com os 
															quais os bebês eram 
															alimentados. Tendo 
															ganhado mais um 
															irmão, executou sem 
															hesitar o duplo 
															fratricídio, 
															deixando cair a 
															culpa em Ana, antigo 
															desafeto seu e 
															amásia do pai - e 
															também em Rosalva, 
															única pessoa que lhe 
															demonstrou afeto 
															além da mãe, mas que 
															nem por isso lhe fez 
															recuar. Saiu impune. 
															Ao menos legalmente, 
															já que para o pai 
															era ele o autor dos 
															assassinatos, 
															redobrando sobre o 
															filho o ódio que 
															sempre lhe nutriu. 
															Mortos os irmãos e a 
															madrasta (que 
															falecera de parto), 
															faltava a execução 
															principal: o 
															parricídio. No 
															entanto, um novo 
															objeto de ódio cruza 
															o seu caminho. 
															
															Após as mortes dos 
															irmãos, seu pai, por 
															não suportar mais 
															sua presença, 
															designa que, nas 
															férias do seminário, 
															ele se hospede na 
															paróquia da cidade. 
															Com toda sua 
															dissimulação, é logo 
															bem aceito pela 
															maioria, que já o 
															designava padre, se 
															destacando na 
															condição de 
															conselheiro 
															espiritual das moças 
															locais. Cria um 
															esquema de sedução e 
															libidinagem com 
															todas, 
															principalmente as 
															noivas, fazendo da 
															sacristia sua 
															alcova. Uma dessas 
															moças, no entanto, 
															trouxe à vida do 
															seminarista um novo 
															desejo de vingança. 
															Inicialmente mais 
															uma noiva em busca 
															de conselhos 
															espirituais, Maria 
															Helena fora também 
															seduzida por ele, 
															mas redimira-se e 
															rompera os encontros 
															de alcova na 
															sacristia. Diante da 
															atitude de recusa da 
															moça, contra todos 
															os seus hábitos e 
															fria objetividade de 
															encarar os fatos, 
															cogitou abandonar o 
															seminário, 
															propondo-lhe 
															casamento, num 
															acesso de paixão com 
															surtos de angústia e 
															crises de choro. 
															Recusada sua 
															proposta, mergulha 
															em um profundo 
															sentimento de 
															humilhação e 
															derrota, em uma 
															confusão de 
															sentimentos e 
															insegurança que cria 
															ele já estar 
															imunizado. Retoma 
															sua racionalidade, 
															mas passa a 
															alimentar pela amada 
															o mesmo ódio 
															cultuado pelo pai, 
															arquitetando 
															inclusive sua 
															indicação para a 
															arquidiocese de 
															Praia Grande, logo 
															depois de sua 
															ordenação, como 
															forma de propiciar 
															melhor as 
															circunstâncias que 
															cruzariam novamente 
															seus destinos. 
															
															Contornando as 
															dificuldades que seu 
															excelente currículo 
															e o nome de seu pai 
															lhe traziam, por lhe 
															dar condições de um 
															futuro bem mais 
															promissor, consegue, 
															depois de uma 
															encenação grotesca e 
															patética perante os 
															bispos sobre sua 
															intenção de servidão 
															humilde aos pobres 
															da paróquia 
															escolhida, ser 
															aceito como o 
															vigário de Praia 
															Grande. Com o 
															objetivo primeiro de 
															estar próximo da 
															Maria Helena, toma 
															parte ativa em 
															projetos em que ela 
															colaborava, 
															investindo dinheiro 
															e promovendo 
															iniciativas de 
															caridade, aumentando 
															mais sua 
															popularidade. Sem 
															nenhuma posição 
															ideológica, 
															inscreve-se 
															oficialmente no 
															grupo de 
															conscientização 
															política da qual ela 
															era militante, que 
															sofria seguidas 
															denúncias de 
															subversão, trazendo 
															assim para sua vida 
															dois elementos que 
															seriam fundamentais 
															para a conquista de 
															seu objetivo: a 
															política e a 
															tortura. 
															
															Após o golpe 
															militar, iniciou-se 
															no país uma série de 
															investigações, 
															rumores de prisões e 
															´viagens´ 
															inesperadas rumo ao 
															incerto para alguns. 
															Neste clima de 
															opressão, o jovem 
															padre não hesita em 
															ficar do lado do 
															sistema, passando a 
															ser um infiltrado no 
															grupo. Em uma prisão 
															simulada, é detido e 
															torturado junto com 
															o grupo subversivo 
															de Maria Helena, que 
															o acolhe como um 
															membro oficial. 
															Jejum, extração 
															dentária, hematomas 
															pelo corpo - feita a 
															fantasia, é posto em 
															uma cela fétida 
															junto com os demais 
															presos políticos e 
															inicia sua tarefa de 
															delação. Tendo 
															acesso às sessões de 
															tortura, descobre um 
															prazer indelével: 
															´Ah, que 
															descobertas, que 
															transes, que prazer 
															misterioso me 
															arrepiando desde as 
															entranhas, em ver 
															aquelas relações de 
															amor entre os 
															torturadores e os 
															torturados, em ver 
															como alguns cediam 
															logo e outros 
															resistiam até quase 
															à morte ou ela 
															própria. Havia uma 
															ternura enviesada 
															nas torturas, havia 
															ouso dizer, quase 
															orgasmos, pelo menos 
															em mim, que agora 
															ansiava por também 
															participar das 
															sessões.´ (p. 260). 
															
															Ganhando a confiança 
															dos companheiros de 
															cela, delata-os, e 
															tem, por merecimento 
															de causa, seu pedido 
															atendido, passando, 
															assim, de mero 
															expectador a algoz. 
															Sua primeira vítima 
															é o companheiro de 
															cela, Peçanha, e 
															como marco inicial, 
															elabora um ritual 
															para aquele que 
															seria seu primeiro 
															assassinato in loco. 
															Fazendo o amigo 
															acreditar que seu 
															fim está próximo, 
															consegue uma broa de 
															pão para ouvir-lhe a 
															confissão e dar-lhe 
															a comunhão. No 
															entanto, o corpo de 
															Cristo que lhe é 
															dado vem em forma da 
															morte por cianureto. 
															Mata-o. Mas mata em 
															Seu Santo Nome. E dá 
															vazão a sua real 
															natureza: ´Meu 
															desejo era o prazer 
															novo, o prazer de 
															matar que não tive 
															com meus irmãos, mas 
															agora estava à minha 
															disposição, antes 
															ocultado sob o 
															tapete de uma 
															consciência falsa e 
															agora se abrindo 
															apoteoticamente. 
															Matar, matar, não 
															pode existir maior 
															exercício de 
															potência na 
															existência humana. 
															Matar, ver morrer, 
															extinguir uma vida, 
															matar, torturar, 
															matar!´. (p. 268). 
															
															Liberto, pelo 
															exercício de 
															crueldade e também 
															da falsa prisão, 
															mantém por mais de 
															dois anos contato 
															com Maria Helena, 
															nas reuniões 
															clandestinas do 
															grupo, alimentando 
															seu desejo de 
															vingança, só 
															atenuado quando 
															dividido pelo 
															pensamento na 
															execução de seu pai. 
															O destino se 
															interpõe na ordem 
															desejada para suas 
															execuções: vítima de 
															um derrame, seu pai 
															estava sem fala e 
															movimento e era 
															imprescindível a 
															ação. Viaja para a 
															fazenda e tem uma 
															visita a sós com o 
															doente. Este, sem 
															condições de defesa, 
															só pode assistir à 
															declaração de ódio e 
															confissão do 
															fratricídio, assim 
															como a anunciação de 
															sua iminente 
															execução: 
															sentando-se sobre o 
															rosto da vítima com 
															um travesseiro, 
															asfixia-o 
															impiedosamente. E, 
															iluminado pelo 
															prazer da vingança 
															cumprida, avisa aos 
															enfermeiros que não 
															incomodem o sono do 
															doente e se vai. 
															
															Beneficiado pela 
															herança e pela 
															vingança feita, 
															ocupa o vazio 
															deixado pela 
															execução do pai e a 
															espera pela 
															realização do desejo 
															de eliminar a mulher 
															que o desprezou, com 
															o prazer da tortura. 
															Levando uma vida 
															dupla, se divide 
															entre ser o padre 
															vítima da repressão, 
															muitas vezes preso, 
															torturado, e o 
															encapuzado, 
															autodenominado 
															Eusébio, o mais 
															terrível torturador 
															daquele complexo. 
															Dividido entre o 
															prazer da dor que 
															infligia e aquela 
															que lhe era, de bom 
															grado, imposta, o 
															ambivalente padre 
															chega ao tão 
															esperado momento do 
															acerto de contas. 
															Maria Helena e o 
															marido foram 
															torturados, 
															psicológica e 
															fisicamente, durante 
															doze horas, até a 
															morte. Amarrados de 
															barriga para baixo, 
															foram, perante a 
															surpresa de 
															descobrir no padre 
															companheiro de 
															subversão um traidor 
															e algoz, espancados 
															e estuprados. Um 
															companheiro cuidava 
															do marido, enquanto 
															o padre se dedicava 
															ao momento que tanto 
															esperara: com 
															requintes de 
															crueldade e 
															humilhação sexuais, 
															finda por 
															estrangular Maria 
															Helena. 
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