Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo


 

A tarde sobe


Ao rés da Terra o tempo é escuro
Mas a tarde sobe, se ergue no ar tranqüilo e doce
A tarde sobe!
No alto se ilumina, se esclarece.
E paira na região iluminada.

Sobe, desfaz a trama de entrelaços
Superpostos na maneira dos esquadros
Sobre o chão aos poucos escurecendo.
Sobe: No meio da parte densa.

Sobe alva, serena para as estrelas
Que irão em breve aparecer,
Luzindo, no princípio da noite;
No espaço branco em que se completa
Preenchendo o centro e a esquerda
Branco que saiu limpo
De um fundo escuro de hachuras.

A tarde sobe!
Sobe até o zênite dando aos que passam
A paz e a serenidade do entardecer.

A tarde sobe pura e macia!
As linhas de baixo se inclinam
Se afastam e vão deixá-la subir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo


 

A Escultura Folheada


 

Aqui está um livro

Um livro de gravuras coloridas;

Há um ponto-furo. um simples ponto

                                   simples furo

E nada mais.

 

Abro a capa do livro e

Vejo por trás da mesma que o furo continua;

Folheio as páginas, uma a uma.

 - Vou passando as folhas, devagar,

o furo continua

 

Noto que, de repente, o furo vai se alargando

Se abrindo, florindo, emprenhando,

Compondo um volume vazio, irregular, interior e conexo:

Superpostas aberturas recortadas nas folhas do livro,

Têm a forma rara de uma escultura vazia e fechada,

Uma variedade, uma escultura guardada dentro de um livro,

Escultura de nada: ou antes, de um pseudo-não;

Fechada, escondida, para todos os que não quiserem

Folhear o livro.

 

Mas, prossigo desfolhando:

Agora a forma vai de novo se estreitando

Se afunilando, se reduzindo, desaparecendo/surgindo

E na capa do outro lado se tornando

                                   novamente

Um ponto-furo, um simples ponto

                                   simples furo

E nada mais.

 

Os seres que a construíram, simples formigas aladas,

Evoluíam sob o sol de uma lâmpada

Onde perderam as asas. Caíram.

As linhas de vôo, incertas e belas, aluíram;

Mas essas linhas volantes, a princípio, foram

se reproduzindo nas folhas do livro, compondo desenhos

De fazer inveja aos mais “ sábios artistas”.

Circunvagueando, indecisas nas primeiras páginas,

À procura da forma formante e formada.

Seus vôos transcritos, “refletidos” nessas primeiras linhas,

Enfim se aprofundam, se avolumam no vazio

De uma escultura escondida, no escuro do interno;

Somente visível, “de fora”, por dois pontos;

Dois pontos furos: simples pontos

                                   simples furos

E nada mais.


 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Maria Consuelo Cunha Campos

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo


 

Poesia em homenagem a Isidore Ducasse
 

Eu vi Maldoror passar com os seus anjos malignos,
Eu vi Maldoror passar montado no seu cavalo, seguido do seu buldogue,
Eu vi Maldoror passar nas ruas de Paris.
A lâmpada de bico de prata, parada, ficou brilhando,
Por baixo da Ponte Maria.

Depois de um inverno rude de remorsos,
Eu enfim recebi um beijo de primavera,
Vindo na placidez dos rios tranqüilos
Através desta terra idílica e francesa.

Que faz Maldoror terrível nesta cidade de Santa Genoveva
Agora que estão vibrando os sinos de São Germano?
Agora que os sinos estão saudando o dia da Assunção?

Maldoror, Maldoror, vai para o mar.

Passei ao longo dos rios bons, estive entre as árvores eternas
Deste bosque dourado onde o hermafrodita está dormindo
Rodeado de flores!
Ouvi palavras amargas nas vozes do dia,
Caminhei longamente nos tempos futuros,
Vi rostos felizes, sorrindo, debruçados
Nas margens da rua,
Por onde levava a minha alma repleta
De votos de esperança, de atos de poesia.

Maldoror, Maldoror, vai para o mar.


Paris, 1938
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Paulo de Toledo

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo


 

Poema dedicado a Maria Luíza


Eu te quero a ti e somente,
Eu que compreendia a beleza das prostitutas e dos portos,
Que sofri a violência da solidão no meio das multidões das grandes ruas,
Que vi paisagens do céu erguidas sobre a noite do mais alto e puro mar,
Que errei por muito tempo nos jardins deliciosos dos amores incertos e obscuros.

Eu te quero a ti sempre e somente.
Eu te quero a ti pura e tranqüila
Preciosa entre todas as mulheres
Que como rosas, como lírios, sobre mim se debruçaram,
Entre aquelas que de mim se aperceberam
Ao doce esmaecer das tardes luminosas.
Eu te quero a ti pura e tranqüila.
Nos espelhos da memória refletida
Pelas horas do meu tempo transpareces
E o Sol do meu deserto te ilumina
E a noite do meu sono te adormece.
Eu te pressinto no silêncio das verdades que ignoro,
No silêncio e no delírio dos desejos impossíveis:
através de um céu sem nuvens, do céu que é um prisma azul
Eu te revelarei a cor da tempestade
E a refração serena do meu mais íntimo segredo...

Em horizontes de ouro e de basalto
Indicarei o teu caminho
Entre flores de luar...
Farei uma lenda sobre teus cabelos...
Soneto Somente
Nasci na várzea do Capibaribe
De terra escura, de macio turvo,
De luz dourada no horizonte curvo
E onde a água doce, o massapê proíbe.

Sua presença para mim se exibe
No seu ar sereno que inda hoje absorvo,
E nas noites, com negridão de corvo.
Antes que ao porto do seu céu arribe

A lua. Assim só tenho essa planície...
Pois tudo quanto fiz foi superfície
De inúteis coisas vãs, humanamente.

De glórias e de alturas e universos
Não tenho o que dizer nestes meus versos:
– Nessa várzea nasci, nasci somente.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Astrid Cabral

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo



As Alvarengas

"Tous les chemins vont vers la ville”
Verhaeren


As alvarengas!
Ei-las que vão e vem; outras paradas,
Imóveis. O ar silêncio. Azul céu, suavemente.
Na tarde sombra o velho cais do Apolo.
O sol das cinco ascende um farol no zimbório
Da Assembléia.
As alvarengas!
Madalena. Deus te guie, flor de Zongue.
Negros curvando os dorsos nus
Impelem-nas ligeiras.
Vem de longe, dos campos saqueados.
Onde é tenaz a luta entre o Homem e a Terra.
Trazendo, nos bojos negros.
Para a cidade.
A ignota riqueza que o solo vencido abandona.
O latente rumor das florestas despedaçadas.

A cidade voragem.
É o Moloch, é o abismo, é a caldeira...
Além, pelo ar distante e sobre as casas.
As chaminés fumegam e o vento alonga.
O passo de parafuso.
E lentas.
Vão seguindo, negras, jogando, cansadas;
E seguindo-as também, em curvas n’água propagadas.
A dor da terra, o clamor das raízes.

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Beatriz Alcântara

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo


 

Tarde no Recife


Tarde no Recife.
Da ponta Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Máxime.
Cais do Abacaxi. Gameleiras.
Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita.
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um carreto gritando — alerta!
Algazarra, Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem
[dos fidalgos holandeses.
Que assistem agora ao mar, inerte das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem de aviões para as costas
[do Pacífico.
Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
E da beleza católica do rio.

 

 

 

Hélio Rola

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Majela Colares

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo


 

Recordações de Tramataia


Eu vi nascer as luas fictícias
Que fazem surgir no espaço a curva das marés.
Garças brancas voavam sobre os altos mangues de
[Tramataia.
Bandos de Jandaias passavam sobre os coqueiros doidos
de Tramataia.
E havia um desejo de gente na casa de farinha e nos
[mucambos vazios de Tramataia
Todavia! Todavia!
Eu gostava de olhar as nuvens grandes, brancas e sólidas.
Eu tinha o encanto esportivo de nadar e de dormir.
Se eu morresse agora,
Se eu morresse precisamente.
Neste momento,
Duas boas lembranças levaria:
A visão do mar do alto da Misericórdia de Olinda ao
[nascer do verão.
E a saudade de Josefa.
A pequena namorada do meu amigo de Tramataia.

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Airton Monte

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Joaquim Cardozo


 

1930


Na estranha madrugada
O homem alto, transpondo o portão da velha casa, depõe no
[chão frio.
O corpo inanimado do seu irmão.
Da sombra das velhas mangueiras, por um momento,
Surgiram, curiosas, as sombras dos melhores heróis de
[Pernambuco antigo.
Sobre o corpo caiam gotas de orvalho e flores de cajueiro.

 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Juscelino Vieira Mendes