| 
                  
                  
                  José Nêumanne Pinto 
   Será uma vez
 
 No dia em que chegar o dia,
 nem é preciso que eu esteja pronto,
 enfatiotado para a viagem de rumo incerto
 e com bagagem feita, além de minha nudez.
 Na hora em que chegar a hora,
 a hora incerta, a que não tem seguinte,
 pretendo apenas estar sóbrio e lúcido,
 para me servir de boa companhia,
 pois longa será a travessia
 e não haverá a chance de chamar alguém.
 
   Quando chegar a 
            visita que não se espera, não lhe servirei café na xícara
 nem terei palavras para lhe saudar a entrada.
 Quero estar mudo como a matéria, que serei de novo,
 pois quanto mais houver silêncio num adeus,
 mais comovido será o momento.
 Não importa quanto o tempo vivido,
 pois será sempre escasso.
 Nem a saudade que fica conta,
 pois sempre haverá o vazio imenso...
 
 Quando o dia chegar, sem aviso,
 não haverá testamentos a assinar
 nem encontros combinados a confirmar,
 muito menos o testemunho de minha ausência.
 Será, como sempre, numa hora precária,
 pois, afinal, precárias são todas as horas
 e, pelo menos para quem fica, ela terá
 a vaga importância que têm todas as horas.
 Reservo-me apenas o direito de sonhar sozinho
 o sonho definitivo do último sono,
 o delírio final da razão partindo
 e o último alento da visão, que escapa.
 
 Não é lícito escrever tanto sobre estas coisas
 nem cabe aqui descrever o não sabido,
 que, no entanto, é só o que se sabe.
 Sei apenas que sou pó
 e, quando voltar ao pó, de onde venho,
 gostarei de ter passado como um cometa,
 não apenas um meteorito tonto
 a esmagar as pedras que rolam no caminho.
 Quando eu passar, definitivamente,
 mesmo tendo sido em vão o meu desfile,
 quero que meu amor guarde de mim os doces instantes
 e os inimigos eventuais tenham cebolas a cortar.
 
 Quando hoje houver, mas amanhã nem talvez,
 quem tiver cruz a transportar nas costas
 que a fixe sobre o chão que me abrigar
 e meus filhos me possam lembrar
 como a semente que teimou em germinar.
 Quando mergulhar no mar vazio,
 de onde vim, também sem o saber,
 estarei, como nunca, melado
 da placenta pastosa das palavras,
 berrando o urro primevo e primal
 de todo inexistente que alguma vez tenha existido.
 
 
 São Paulo, madrugada de 7 de março de 1998
 
 |