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José Nêumanne Pinto


 

Longe da Borborema


Longe da Borborema,
o pássaro preso,
fora da gaiola,
canta a mesma dor
do escritor
perseguido pelos touros
nas ruas de Pamplona.
Quem a gaiola não prende
não sabe que é livre,
senão dentro das grades
de desconhecer o além dali.
O pássaro se desespera
na solidão da liberdade
e se atira à grade,
sangue pingando
de cada pena.
 


De que valem asas,
se a cidade pesa
mais que o ar,
no lado interno do peito?
A vida, fora,
é presa da amplidão
dos horizontes,
que não abrigam
os abismos insondáveis
da gaiola.
De que serve o bico,
senão para cantar
a dor da traição
da cidade adúltera,
que por se ancha,
até no nome,
jamais pertencerá
a um homem só?
 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

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Aníbal Beça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Agora


Agora, que volto já de tantas coisas,
preciso aprender
que desta cidade ninguém parte,
pois a Campina só se chega,
sempre.

 


Quando você navega no vapor Natchez,
embarca na Jackson Square
e desembarca no Açude Novo,
que nem água tem mais.
Se você cruzou o Muro de Berlim,
em plena Guerra Fria,
na estação de Alexanderplatz,
acabou tomando sorvete de graviola
na Praça da Bandeira
cagada de pombos.
O bondinho do Pão de Açúcar
tem um ramal que desemboca
no bairro de José Pinheiro.
Todas as viagens do mundo
terminam no Alto do Serrotão.
 


O Expresso do Oriente
pára na estação ferroviária,
hoje Museu do São João.
Dela não partem trens,
pois para cá só se volta
de todas as coisas,
do pão que o diabo amassou
ou do maná caído do céu.
 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Izacyl Guimarães Ferreira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Madeiro


Meu pai está no céu
e me mandou o dom da vida
pousar do beijo de um colibri.
Quando a semente caiu,
o ventre virgem de minha mãe a estreitou.
Debaixo do regaço da terra,
me nutri da lava dos vulcões,
bebi a água limpa dos lençóis
e suguei a força fétida
da matéria apodrecida.
Cresci no seio da relva,
vesti as cascas do tempo.
Soprei ventos primevos,
trazidos dos campos,
onde o trigo fenece.
Destilei o perfume das flores
e o sabor dos frutos da estação.
Refresquei com o orvalho de meu pranto
o asfalto que me queimava os pés.
À sombra de minha presença,
abriguei carícias alheias
e em meus membros
espalhei ninhos e espinhos.
Cantei canções ancestrais
nas línguas mortas das aves,
que não me deixam calar.
Fixaram com cravos minhas pernas
neste bosque de piche e aço.
Agora, eis-me aqui, de novo,
disposto ao perdão,
pois para isso fui pregado.
Abro bem os braços
e deixo o peito à vista:
meu velho coração vegetal
só carece de um olhar caridoso
para pulsar sua compaixão.
Olha bem pra mim,
transeunte urbano
de minha agonia!
Enquanto me encontrares,
teu pulmão de cristal
não vai se estilhaçar.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Poeira das estrelas


Do norte do norte
as águias decolam
para vôos sem volta.
Lá, tudo começa:
a voz do mudo,
a vez do mundo.
No norte do norte
as águas brotam do solo
e o fogo se consome,
queimando a cera do tempo.
No norte do norte,
mora Deus,
o dono da sorte,
pelo menos à noite.
Lá se consuma o pecado
de cada um,
surgido do zero.
No norte do norte,
da terra é soprado
o barro humano,
bafo de vida.
 


Ao sul do sul
as águias sempre voltam
de vôos sem ida.
Lá se chega sempre ao nada,
ao nenhum talvez,
decerto a ninguém.
No sul do sul,
as águas se lavam
em si mesmas.
E o fogo se extingue
em cinza morna.
No sul do sul,
Deus vive de dia,
na casa de sempre,
erguida sobre ocos do vazio.
Lá, se colhe
a semente da morte
na seara das virtudes
de todos,
abrigados no sem fim
do infinito.
No sul do sul,
o último sopro,
matéria divina,
solfeja adeuses
em lábios selados.
 

 

Entre o sul do sul
e o norte do norte
a leste e oeste, o medo
traça o destino parco
de quem se sente imenso.
Entre o começo do fim
e o fim do começo,
o compasso do verso.
Lá Deus repousa
a sesta do guerreiro da paz
à sombra da luz das estrelas.
O sono divino
vela a angústia do homem
de não se saber
apenas um sonho,
nem sempre um pesadelo,
mas inevitavelmente
uma miragem de fumaça,
uma nuvem opaca
de pó seco
e denso mistério.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Weydson Barros Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto


 

Será uma vez


No dia em que chegar o dia,
nem é preciso que eu esteja pronto,
enfatiotado para a viagem de rumo incerto
e com bagagem feita, além de minha nudez.
Na hora em que chegar a hora,
a hora incerta, a que não tem seguinte,
pretendo apenas estar sóbrio e lúcido,
para me servir de boa companhia,
pois longa será a travessia
e não haverá a chance de chamar alguém.
 

 

Quando chegar a visita que não se espera,
não lhe servirei café na xícara
nem terei palavras para lhe saudar a entrada.
Quero estar mudo como a matéria, que serei de novo,
pois quanto mais houver silêncio num adeus,
mais comovido será o momento.
Não importa quanto o tempo vivido,
pois será sempre escasso.
Nem a saudade que fica conta,
pois sempre haverá o vazio imenso...
 


Quando o dia chegar, sem aviso,
não haverá testamentos a assinar
nem encontros combinados a confirmar,
muito menos o testemunho de minha ausência.
Será, como sempre, numa hora precária,
pois, afinal, precárias são todas as horas
e, pelo menos para quem fica, ela terá
a vaga importância que têm todas as horas.
Reservo-me apenas o direito de sonhar sozinho
o sonho definitivo do último sono,
o delírio final da razão partindo
e o último alento da visão, que escapa.
 


Não é lícito escrever tanto sobre estas coisas
nem cabe aqui descrever o não sabido,
que, no entanto, é só o que se sabe.
Sei apenas que sou pó
e, quando voltar ao pó, de onde venho,
gostarei de ter passado como um cometa,
não apenas um meteorito tonto
a esmagar as pedras que rolam no caminho.
Quando eu passar, definitivamente,
mesmo tendo sido em vão o meu desfile,
quero que meu amor guarde de mim os doces instantes
e os inimigos eventuais tenham cebolas a cortar.
 


Quando hoje houver, mas amanhã nem talvez,
quem tiver cruz a transportar nas costas
que a fixe sobre o chão que me abrigar
e meus filhos me possam lembrar
como a semente que teimou em germinar.
Quando mergulhar no mar vazio,
de onde vim, também sem o saber,
estarei, como nunca, melado
da placenta pastosa das palavras,
berrando o urro primevo e primal
de todo inexistente que alguma vez tenha existido.


São Paulo, madrugada de 7 de março de 1998
 

 

 

Inocência, foto de Marcus Prado

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Maurício Matos