Francisco Renato de Souza
28.10.2007
O Diário do Farol: a face do mal
Questão que perpassa conceitos de moralidade,
ética e religião a dicotomia entre bem e mal é
discussão de interesse milenar. Dos relatos bíblicos
da queda de Satã e do livre arbítrio do homem,
fábulas infantis, sabedoria do senso comum, às
inúmeras obras artísticas e narrativas literárias, a
discussão gira em torno da negatividade do mal e
fator positivo do bem. Em uma perspectiva contrária,
a personagem central de O Diário do Farol, de João
Ubaldo Ribeiro, incita o leitor a uma reflexão sobre
a essência humana no mal, motivo central desta
edição.
A obra é narrada por
uma personagem voluntariamente anônima que se
denomina o faroleiro, e que, aos sessenta anos de
idade, vive isolada em uma ilhota deserta, inóspita
e de difícil acesso, se dedicando a registrar, em um
relato em forma de diário, suas memórias de uma vida
calcada na vingança, no ódio e na ambição.
Vítima da dor da perda
da mãe, morta por seu pai, e da incessante violência
paterna, física e psicológica, cresce com a
determinação de vingar-se do pai assassino e de sua
tia materna, irmã de sua mãe, parceira e cúmplice no
crime, que passa a ser sua madrasta. Mostra-se com
uma aptidão prazerosa em toda forma de vilania para
atingir sua meta, desenvolvendo uma personalidade
dissimulada e voltada para a farsa. Conta com o
auxílio da sua mãe morta, que se mostra presente
através de uma voz que acompanha e incentiva os atos
do filho vingador: ´... sou movido a escrever este
relato, mais fortemente que pelos outros motivos,
pela minha Vaidade em me considerar o pior dos seres
humanos, o único, que eu saiba, que encarnou em si
tudo o que lhe conveio, sem permitir que o filtro de
qualquer valor erguesse impedimento. Veja bem, isso
não me retira a solidão, antes a sublinha. Não fiz,
nem de longe, tudo que de mau já se fez, mas teria
feito, se houvesse oportunidade. Sou, portanto, para
o espelho de minha absoluta Vaidade, o pior dos
homens, o que cometeria o que de mais hediondo se
pudesse conceber e chegou a uma quantidade difícil
de igualar, não em número, mas em qualidade. Eu sou
um grande mau, dir-se-ia´ (p. 23).
Batiza o farol em que
vive com o irônico nome de Lúcifer, o príncipe da
luz, criado por Deus, que se revolta contra o
Criador, formando um reino adverso. E intenta com
seu relato (e a vaidade que o leva à escritura)
incutir no leitor um incômodo, levando-o a entender
sua própria solidão e loucura, condição, acredita
ele, perene a todo e qualquer ser humano. Entende o
homem como um ser solitário por nascimento,
natureza, sentimento e vida, que teria uma
curiosidade essencial sobre a confirmação secreta de
sua sanidade. Os atos que aparentemente seriam mais
repugnantes aos seus olhos e aos do mundo são
interiormente praticados, encontrando na especulação
da alma alheia o confronto com sua própria natureza
de ´assassinos, invejosos, devassos, traidores,
egoístas, mentirosos, pusilânimes, canalhas,
mesquinhos, hipócritas, adúlteros, santos
neuróticos, antropófagos, parricidas, matricidas,
infanticidas, estupradores, todos, todos, todos os
que estão dentro dele mesmo.´ (p. 18).
Esse lado mau que cada
homem traz dentro de si, e por condições externas
impostas pela educação e convívio social, mantém
reprimido, ganha um contorno fantástico na história
do visconde Medardo di Terralba, em O Visconde
Partido ao Meio, de Italo Calvino. Em certa guerra
contra os turcos, nas planícies da Boêmia, o
visconde é atingido por uma bala de canhão que o
corta em dois no sentido longitudinal. A parte
direita se mantém intacta, perfeitamente conservada,
exceto pela enorme rasgadura que a separara da parte
esquerda estraçalhada - esta, dada como inválida. É
socorrido, e, após uma incrível intervenção
cirúrgica, resiste, vivo e partido ao meio. Os
habitantes de Terralba -após o retorno de Medardo à
terra natal - logo perceberiam que não era só a
aparência do mestre que havia mudado. De aspecto
sombrio e taciturno, dedica-se a praticar pequenas
maldades e, após a morte do pai, que morre em uma
espécie de entrega desgostosa, Medardo assume o
viscondado e inicia uma série de maldades pela
região. Condenava culpados e inocentes à forca,
incendiava bosques inteiros, vitimando pobres
camponeses, e até mesmo o próprio castelo com sua
ama dentro - ela que outrora lhe substituira a
demanda de afeto causada pela ausência materna.
No entanto, a sua
metade dada por perdida sobrevivera e volta em uma
espécie de antípoda, sendo toda ela boas ações. Em
um comportamento maniqueísta, o Mesquinho e o Bom
seguem vidas de atos divergentes - um destrói e o
outro repara - até o confronto final, no qual, bem e
mal, tentando sobrepujarem-se, terminam por
destruírem-se mutuamente. Após uma elaborada
cirurgia, o visconde tem suas partes restauradas e
reunificadas: ´Assim, meu tio Medardo voltou a ser
um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de
maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao
que era antes de se partir ao meio. Mas tinha a
experiência de uma e de outra metade refundidas, por
isso devia ser bem sábio.´ (p. 11).
Essa caricatura do uno
que concentra em si virtude e vício, em medidas
exatas e conflitantes, ilustra nitidamente o
pensamento maniqueísta. O Maniqueísmo foi fundado na
Pérsia, no século III, por Mani, também conhecido
por Maniqueu, e tem como principal fundamento o
dualismo absoluto. Defende que o universo está,
assim, dividido em dois princípios básicos e
absolutos: Luz e Trevas, ou Bem e Mal, tendo cada
qual um reino próprio, que são distintos e separados
entre si. O reino da luz é a manifestação do bem e
do espírito; o das trevas, morada da matéria e lugar
próprio de todo mal. A doutrina maniqueísta pregava
um perene exercício de purificação que consistia em
uma constante discriminação do bem e do mal,
visando, através de uma conduta de vida reta e
obediente aos preceitos maniqueus, libertar as
partículas de luz aprisionadas na matéria,
permitindo seu retorno ao reino da luz e, dessa
forma, facilitando e apressando a separação
definitiva entre bem e mal. Não podendo ser
definitivamente destruído, já que é um princípio da
realidade, o mal deve ser relegado ao mundo
interior, o reino das trevas. Essa seria, então, a
vitória maior que o bem pode almejar.
O principal nome
ligado ao maniqueísmo foi o de Santo Agostinho, que
durante um tempo foi um adepto de seus preceitos e,
depois, um de seus mais ferrenhos detratores.
Nascido em Tagaste,
província de Numídia, atual Argélia, filho de pai
pagão e mãe cristã, viaja a Cártago para
aprimoramento dos estudos. Lá se desvia moralmente e
leva uma vida licenciosa, repleta de prazeres,
principalmente sexuais. Converte-se ao cristianismo
aos vinte e dois anos, vindo a tornar-se bispo em
Hipona. Agostinho influenciou toda a Idade Média e
fez parte do que os historiadores da Filosofia
denominaram de Patrística, a filosofia dos padres da
igreja. É, na realidade, uma apologia que sintetiza
a filosofia grega clássica com a religião cristã.
Suas experiências no campo dos estudos filosóficas
foram intensas - além de seu contato com a
experiência maniqueísta antes da adentrada ao mundo
cristão. A questão do bem e do mal sempre foi uma
preocupação em suas reflexões. Na obra Confissões,
uma biografia em que contrasta sua vida de pecador
com a graça divina, mas atento às preocupações
filosóficas, a busca do entendimento da origem do
mal é uma constante para o bispo de Hipona.
Através da hierofania, a
manifestação do sagrado: Deus
estando em todas as coisas, se nos
revela através delas e de nós
mesmos, Agostinho internaliza o
divino no humano. A alma seria então
um receptáculo da luz divina e, ao
mesmo tempo, a abertura do ser
humano para Deus, já que a
experiência da eternidade acontece
nela. A essência e o sentido da vida
humana, e de tudo que a envolve,
assim se caracteriza. À exceção do
pecado. Sendo o divino uno, ele não
carrega o mal.
Ao não
entender o mal como outro ser
poderoso, Agostinho afasta-se do
maniqueísmo, e o classifica (o mal)
como uma privação do bem. O mal fica
excluído da idéia de ser. E não
sendo, não pode competir com o bem-
como pregava o pensamento maniqueu.
No
entanto, fica a questão da
responsabilidade do pecado. Se o ser
humano recebe a luz divina, como
pode ele pecar? Agostinho justifica
a questão com a teoria do
livre-arbítrio. O homem foi criado
por Deus livre e dotado de vontade,
e quando caminha para o não-ser, se
afastando assim do ser, aproxima-se
do mal e comete os pecados. Através
do pecado, o homem transgride a lei
divina, já que, criado para ater-se
mais à alma, prende-se ao corpo e a
matéria, invertendo os valores da
existência por cair na ignorância:
´Indaguei o que era iniqüidade, e
não achei substância, mas a
perversão de uma vontade que se
afasta da suprema substância, de ti,
meu Deus - e se inclina para as
coisas baixas, e que derrama suas
entranhas, e se intumesce
exteriormente.´ (p. 158).
A
questão moral do bem e do mal na
retratação de Medardo dividido em
duas partes antípodas é, no entanto,
um reflexo bem menor do que a
meditação sobre a divisão
característica do homem
contemporâneo, como deixa claro
Calvino, no prefácio da obra: ´Não,
não quebrava mesmo a cabeça com
isso, nem por um instante havia
pensado no bem e no mal. (...) eu
usara um contraste narrativo notório
para evidenciar o que me
interessava, isto é, a divisão ao
meio.´ (p. 10). Este homem, chamado
por Marx de ´alienado´, classificado
por Freud de ´reprimido´, é um ser
incompleto e mutilado; partido ao
meio, aspira a um estado de
completude. Inimigo de si próprio,
carrega o contraste entre o que é e
o que aparenta ser. Inspirou-se em O
Médico e o Monstro, clássica obra de
R. L. Stevenson em que o tema do
dualismo do ser acontece através da
excêntrica experiência científica do
doutor Henry Jekyll. Consciente e
intrigado com o dualismo que todo
ser carrega dentro de si, e que o
obriga à dissimulação, ´ia-se
cavando em mim, mais do que na
maioria dos mortais, esse profundo
fosso que separa o mal do bem e
divide e compõe a dualidade da nossa
alma.´ (p. 71), o médico consegue
criar uma fórmula, por meio de
experiências de laboratório, capaz
de libertar o corpo de certas
faculdades que compõem o espírito,
obtendo uma nova forma corpórea que
substituiria a primeira: ´senti-me
mais novo, mais leve, mais bem
disposto, e experimentava, no meu
íntimo, uma impetuosa ousadia;
desenrolavam-se, na minha fantasia,
desordenadas imagens sensuais,
vertiginosamente; desfaziam-se os
vínculos morais e se mostrava agora
uma liberdade da alma que,
entretanto, não era inocente.
Considerei-me, desde o primeiro
sopro da minha nova existência, de
ânimo mais perverso, dez vezes mais
iníquo, reintegrado na maldade
original; e esse pensamento, naquela
hora, prendia-me e deliciava-me como
um vinho.´ (p. 73).
Edward
Hyde personificava o lado selvagem
do Dr. Jekyll, desde a aparência
física até os atos, livre das
correias, entregue à animalidade
pura, capaz até de matar. Dessa
forma, o médico mantinha sua conduta
impoluta, enquanto seu alter-ego
dava vazão às necessidades selvagens
da alma. A experiência, no entanto,
lhe foge ao controle e a besta que
Jekyll mantinha a seu dispor passa a
ser o seu senhor. A necessidade de
transmutação passa a ser a busca de
sua identidade original. Dominando
completamente o corpo de Jekkyl,
Hyde é encontrado morto no
laboratório do doutor, que
desaparecera nas entranhas da
criatura.
Essa
unificação de instinto selvagem e
razão civilizada, que compõe uma
quase dupla personalidade do homem
contemporâneo, é narrada por Rubem
Fonseca em Feliz Ano Velho. O perfil
da violência e crueldade, em um
mundo que estreita a distância entre
a marginalidade e o aparente
cotidiano pacato da classe média nas
grandes cidades, é o mote das
narrativas da obra. Nos contos
Passeio Noturno I e II, a cisão do
homem moderno é demonstrada através
do excêntrico passatempo de um
executivo que foge do tédio e do
vazio de uma vida sem sentido e de
uma família sem laços afetivos. Com
uma rotina repetitiva, ele extravasa
o estresse em um esporte radical.
Nada de tiro ao alvo ou luta
marcial. Com um Jaguar especialmente
equipado: pára-choques salientes,
com reforço especial duplo de aço
cromado e um motor poderoso que vai
de zero a cem quilômetros em
segundos, saí à noite pelas ruas do
Rio de Janeiro atropelando, com
estilo, transeuntes, em uma espécie
de vídeo game real. Na segunda parte
do conto, é assediado por uma bela
jovem e a convida para jantar;
durante o encontro, tudo o entedia.
Como todo homem, aguarda
ansiosamente pelo que vem depois.
Porém, diferentemente de todo homem,
não será pelo sexo com ela que ele
terá prazer: ´Bati em Ângela com o
lado esquerdo do pára-lama, jogando
o seu corpo um pouco adiante, e
passei, primeiro com a roda da
frente - e senti o som surdo da
frágil estrutura do corpo se
esmigalhando - e logo atropelei com
a roda traseira, um golpe de
misericórdia, pois ela estava
liquidada, apenas talvez ainda
sentisse um distante resto de dor e
perplexidade. Quando cheguei em casa
minha mulher estava vendo televisão,
um filme colorido, dublado. Hoje
você demorou mais. Estava muito
nervoso?, ela disse. Estava. Mas já
passou. Agora vou dormir. Amanhã vou
ter um dia terrível na companhia.´
(p. 71).
A
personagem de Fonseca, ao contrário
de Dr. Jekyll, tem total controle do
monstro que tem dentro de si -
criando inclusive uma perfeita
sintonia, tirando dele o prazer que
precisa para se manter no mundo
racional. Diferente também da
incompatibilidade do médico com sua
fera - e da unificação equilibrada
de ambas as partes do visconde
partido ao meio - o faroleiro
destrói as teorias maniqueístas -
sendo talvez o que Santo Agostinho
chamava de ´aberração´-
apresentando-se como um ser
desprovido de qualquer sentimento
bom.
Conforme as promessas de seu pai, é
mandado a um seminário para as
preparações necessárias à ordenação
de um padre. Cheio de ódio e sonhos
de vingança, encontra no mundo
clerical não um ambiente de
purificação, e sim, um ambiente
propício para a degradação e
proliferação de todo o cinismo,
crueldade e torpeza que carregava em
si.
Consegue facilmente manter uma
condição de liderança sobre os
outros internos e também sobre
alguns padres, utilizando-se da
chantagem de informações facilmente
adquiridas em um local onde a
zoofilia e a sodomização de padres
por internos - ato que também ele
desempenhou como forma de obtenção
de oportunidades - era ato
corriqueiro: ´Hoje sei que o
seminário, como intuí desde o
primeiro dia, era mais ou menos como
uma penitenciária. Há muitos
submundos nas penitenciárias e tudo
se consegue, desde drogas a armas, a
depender dos contatos que se fazem.´
(p. 60).
A
descrição do internato como forma de
denúncia de local de deformidade do
ser, contrariando a visão
convencional da sociedade, é também
mostrada e é o foco da obra O
Ateneu, de Raul Pompéia, uma
caricatura sarcástica da vida no
internato. A obra retrata o doloroso
processo de transição da infância à
idade adulta, através da personagem
Sérgio, que é posta no internato
pelo pai para sua lapidação de
caráter. Os percalços, maus-tratos e
provações a que Sérgio é
constantemente submetido no
internato, no entanto, fazem-no
perceber, a duras penas, que se
encontra em um campo hostil.
Com
relações bem mais delicadas nas
ligações de afeto entre os internos,
que as descritas pelo faroleiro no
seminário, as ligações homossexuais
do internato são narradas com mais
sutilezas, acontecendo mesmo em
forma de amizade. Ainda que por
interesse, Sérgio fora desenvolvendo
relações ambíguas com alguns
companheiros; fazia-se necessário
obter a proteção dos mais fortes:
´No recreio não andávamos juntos;
mas eu via de longe o amigo, atento,
seguindo-me com seu olhar como um
cão de guarda. Soube depois que
ameaçava torcer o pescoço a quem
pensasse apenas em me ofender...´
(p. 85), levando-o mesmo a se
posicionar nitidamente em uma
postura totalmente feminina:
´Confusamente ocorria-me a lembrança
do meu papelzinho de namorada
faz-de-conta, e eu levava a
seriedade cênica a ponto de
galanteá-lo, ocupando-me com o laço
da gravata dele, com a mecha de
cabelo que lhe fazia cócegas aos
olhos; soprava-lhe ao ouvido
segredos indistintos para vê-lo
rir...´ (p. 123). Marco inicial do
Naturalismo no Brasil, a obra de
Pompéia, no entanto, mostra uma
protagonista inocente na sua forma
de se utilizar dos favores como
forma de sobrevivência: ´Por minha
parte, entreguei-me de coração ao
desespero das damas romanceiras,
montando guarda de suspiros à janela
gradeada de um cárcere onde se
deixava deter o gentil cavalheiro,
para o fim único de propor assunto
às trovas e aos trovadores
medievos.´ (p. 97).
O
Ateneu é descrito como organização
imperfeita, local de aprendizagem de
corrupção e incitação da espionagem,
intriga e humilhação, onde abundam
as seduções perversas. Assim
descreve o faroleiro o seminário e
seu sistema: ´Hoje sei que o
seminário, como intuí desde o
primeiro dia, era mais ou menos como
uma penitenciária. Há muitos
submundos nas penitenciárias e tudo
se consegue, desde drogas a armas, a
depender dos contatos que se fazem.´
(p. 60). A forma mais corrente de
obtenção de favores era a
sodomização dos padres pelos
internos, o que possibilitava
favores extraordinários. Corrompido
voluntariamente pelo esquema, o
faroleiro, que em matéria de sexo só
conhecia a masturbação coletiva dos
meninos do interior, se entrega à
masturbação, felação, sodomização e
sadismo nos padres, em passagens bem
menos sutis que as de Sérgio no
internato, deixando para trás a
inocência.
O
caminho para a degradação juvenil
perpassa, também, a história de
Noboru, personagem de O Marinheiro
que Perdeu as Graças com o Mar, de
Yukio Mishima. Noboru é um
adolescente órfão de pai que vive
com sua mãe, Fusako, jovem e bela
proprietária de uma loja de artigos
de luxo importados do ocidente, que
leva um modo de vida cosmopolita e
contrário às tradições japonesas, na
cidade portuária de Yokohama. Quando
sua mãe se envolve com o marinheiro
Tsukazaki, uma figura idealizada aos
olhos do garoto, por ver a vida no
mar como uma forma de vida heróica,
Noburu, que não se ressente da
ausência paterna, por entender a
paternidade como representação de
acomodação odiosa, porque contrária
a qualquer possibilidade de
heroísmo, estabelece com ambos um
triângulo de relacionamento. No
entanto, Tsukazaki, que vivia à
deriva entre uma monótona rotina de
embarcadiço e a ausência de vínculos
em terra firme, envolve-se
emocionalmente com Fusaco,
decidindo-se por abandonar a vida no
mar para se casar com ela. O
marinheiro torna-se assim, para o
garoto, um ser abjeto por quem passa
a alimentar sentimentos de ódio e
vingança.
Toda
essa trajetória sentimental que vai
da idolatração ao desprezo, Noboru
compartilha com um grupo de amigos
com os quais divide uma espécie de
sociedade secreta. Marcando seus
encontros em diferentes pontos da
cidade, os cinco garotos, liderados
por um deles, o chefe, discutem seus
ideais niilistas com a presunção de
intelectuais que têm o ego acima dos
demais: ´... eram todos meninos
pequenos, delicados, e alunos
excelentes. A maior parte dos
professores fazia rasgados elogios a
esse grupo destacado, e até mesmo o
apontava como um exemplo para alunos
menos brilhantes.´ (p. 46). Eram
todos filhos de ´boas famílias´ e
traziam, incitados pelo chefe - que
assim como Noboru, tinha apenas
treze anos - a convicção de que a
vida era um caos da existência em
meio a uma sociedade destituída de
significado, fazendo-se necessário
tirar força da incerteza e do medo
que o caos provoca para, assim,
recriar a existência. E eram os
pais, a escola e a sociedade, todos
´cegos´, que fragmentavam sua
capacidade ilimitada. Agindo como
militantes de uma causa, pensavam e
se preparavam para tudo, e, com o
pensamento dos extraordinários, não
recuariam diante da necessidade de
derramamento de sangue: ´O chefe
sempre insistiu em que eram
necessários atos como esses para
encher os grandes vazios do mundo.
Embora nada mais pudesse realizar
isso, dizia ele, o assassinato
encheria esses buracos abertos, da
mesma maneira que uma fratura enche
toda a face de um espelho. E então
eles conseguiriam um poder real
sobre a existência.´ (p. 53).
Era preciso um
coração duro e frio
para executar tal
tarefa, caso esta se
lhes apresentassem.
A prova para Noboru
viria na execução de
um gato, atirado
diversas vezes
contra uma acha de
lenha: ´O gato bateu
na lenha e voou
novamente pela
última vez. Suas
patas traseiras se
contorceram,
traçando amplos
círculos imprecisos
no chão sujo, e em
seguida pararam. Os
garotos ficaram
superalegres com o
sangue respingando
na lenha´ (p. 54).
Como forma de
mostrar de perto, e
sem disfarces, a
morte, o chefe, com
uma tesoura,
´desnuda´ o gato, em
uma minuciosa
autópsia. À medida
que o gato vai sendo
escalpelado, tendo o
endoderma exposto,
com vísceras e
órgãos sendo
cortados no exame
didático, Noboru,
inicialmente
confuso, se
certifica do seu
mérito: ´eu o matei
sozinho, posso fazer
qualquer coisa, por
mais terrível que
seja.´ (p. 57).
Aprovado pelo ritual
que o livraria da
hesitação infantil,
ouve do mestre:
´Você fez um bom
trabalho. Acho que
podemos dizer que
isso o transformou
realmente num
homem.´ (p. 57).
A desilusão do
enteado com o
padrasto chega ao
extremo quando a mãe
descobre que o
garoto os espionava
através de um
pequeno buraco na
parede de seu quarto
e delega ao marido a
punição do garoto.
Tsukazaki, apesar de
não amar Noboru
realmente como
filho, acredita nos
instintos paternos,
emoção só agora
descoberta, e age de
maneira
condescendente,
causando nojo a
Noboru, que convoca
uma reunião de
emergência com o
grupo, culpando o
marinheiro de alta
traição. Arquitetam
um plano para atrair
e sedar o marinheiro
e, calculadamente
protegidos por uma
lei que deixa
impunes atos de
crianças menores de
quatorze anos,
executar o traidor,
utilizando a prática
já experimentada com
o gato. O dever do
grupo é pôr a
engrenagem deslocada
em seu devido lugar.
E, para manter a
ordem no vazio do
mundo, a única saída
seria pelo desfecho
trágico, fazendo do
marinheiro, assim,
novamente um herói.
Assim como Noboru, o
faroleiro teve sua
tarefa de
treinamento. Sendo
seu pai o alvo de
sua vingança,
calcular e executar
a morte de seus
irmãos paternos foi
para ele como uma
simulação do que
viria a ser o seu
ato máximo. Desde o
momento em que fora
apresentado, em uma
das férias do
seminário, à sua
irmãzinha,
desenvolveu por esta
um repúdio que só
arrefeceu com a
idéia de eliminar a
criança. De volta ao
seminário, pesquisa
em um livro de
agricultura venenos
que adicionaria, em
um plano
milimetricamente
calculado, aos
pacotes importados
de vitaminas com os
quais os bebês eram
alimentados. Tendo
ganhado mais um
irmão, executou sem
hesitar o duplo
fratricídio,
deixando cair a
culpa em Ana, antigo
desafeto seu e
amásia do pai - e
também em Rosalva,
única pessoa que lhe
demonstrou afeto
além da mãe, mas que
nem por isso lhe fez
recuar. Saiu impune.
Ao menos legalmente,
já que para o pai
era ele o autor dos
assassinatos,
redobrando sobre o
filho o ódio que
sempre lhe nutriu.
Mortos os irmãos e a
madrasta (que
falecera de parto),
faltava a execução
principal: o
parricídio. No
entanto, um novo
objeto de ódio cruza
o seu caminho.
Após as mortes dos
irmãos, seu pai, por
não suportar mais
sua presença,
designa que, nas
férias do seminário,
ele se hospede na
paróquia da cidade.
Com toda sua
dissimulação, é logo
bem aceito pela
maioria, que já o
designava padre, se
destacando na
condição de
conselheiro
espiritual das moças
locais. Cria um
esquema de sedução e
libidinagem com
todas,
principalmente as
noivas, fazendo da
sacristia sua
alcova. Uma dessas
moças, no entanto,
trouxe à vida do
seminarista um novo
desejo de vingança.
Inicialmente mais
uma noiva em busca
de conselhos
espirituais, Maria
Helena fora também
seduzida por ele,
mas redimira-se e
rompera os encontros
de alcova na
sacristia. Diante da
atitude de recusa da
moça, contra todos
os seus hábitos e
fria objetividade de
encarar os fatos,
cogitou abandonar o
seminário,
propondo-lhe
casamento, num
acesso de paixão com
surtos de angústia e
crises de choro.
Recusada sua
proposta, mergulha
em um profundo
sentimento de
humilhação e
derrota, em uma
confusão de
sentimentos e
insegurança que cria
ele já estar
imunizado. Retoma
sua racionalidade,
mas passa a
alimentar pela amada
o mesmo ódio
cultuado pelo pai,
arquitetando
inclusive sua
indicação para a
arquidiocese de
Praia Grande, logo
depois de sua
ordenação, como
forma de propiciar
melhor as
circunstâncias que
cruzariam novamente
seus destinos.
Contornando as
dificuldades que seu
excelente currículo
e o nome de seu pai
lhe traziam, por lhe
dar condições de um
futuro bem mais
promissor, consegue,
depois de uma
encenação grotesca e
patética perante os
bispos sobre sua
intenção de servidão
humilde aos pobres
da paróquia
escolhida, ser
aceito como o
vigário de Praia
Grande. Com o
objetivo primeiro de
estar próximo da
Maria Helena, toma
parte ativa em
projetos em que ela
colaborava,
investindo dinheiro
e promovendo
iniciativas de
caridade, aumentando
mais sua
popularidade. Sem
nenhuma posição
ideológica,
inscreve-se
oficialmente no
grupo de
conscientização
política da qual ela
era militante, que
sofria seguidas
denúncias de
subversão, trazendo
assim para sua vida
dois elementos que
seriam fundamentais
para a conquista de
seu objetivo: a
política e a
tortura.
Após o golpe
militar, iniciou-se
no país uma série de
investigações,
rumores de prisões e
´viagens´
inesperadas rumo ao
incerto para alguns.
Neste clima de
opressão, o jovem
padre não hesita em
ficar do lado do
sistema, passando a
ser um infiltrado no
grupo. Em uma prisão
simulada, é detido e
torturado junto com
o grupo subversivo
de Maria Helena, que
o acolhe como um
membro oficial.
Jejum, extração
dentária, hematomas
pelo corpo - feita a
fantasia, é posto em
uma cela fétida
junto com os demais
presos políticos e
inicia sua tarefa de
delação. Tendo
acesso às sessões de
tortura, descobre um
prazer indelével:
´Ah, que
descobertas, que
transes, que prazer
misterioso me
arrepiando desde as
entranhas, em ver
aquelas relações de
amor entre os
torturadores e os
torturados, em ver
como alguns cediam
logo e outros
resistiam até quase
à morte ou ela
própria. Havia uma
ternura enviesada
nas torturas, havia
ouso dizer, quase
orgasmos, pelo menos
em mim, que agora
ansiava por também
participar das
sessões.´ (p. 260).
Ganhando a confiança
dos companheiros de
cela, delata-os, e
tem, por merecimento
de causa, seu pedido
atendido, passando,
assim, de mero
expectador a algoz.
Sua primeira vítima
é o companheiro de
cela, Peçanha, e
como marco inicial,
elabora um ritual
para aquele que
seria seu primeiro
assassinato in loco.
Fazendo o amigo
acreditar que seu
fim está próximo,
consegue uma broa de
pão para ouvir-lhe a
confissão e dar-lhe
a comunhão. No
entanto, o corpo de
Cristo que lhe é
dado vem em forma da
morte por cianureto.
Mata-o. Mas mata em
Seu Santo Nome. E dá
vazão a sua real
natureza: ´Meu
desejo era o prazer
novo, o prazer de
matar que não tive
com meus irmãos, mas
agora estava à minha
disposição, antes
ocultado sob o
tapete de uma
consciência falsa e
agora se abrindo
apoteoticamente.
Matar, matar, não
pode existir maior
exercício de
potência na
existência humana.
Matar, ver morrer,
extinguir uma vida,
matar, torturar,
matar!´. (p. 268).
Liberto, pelo
exercício de
crueldade e também
da falsa prisão,
mantém por mais de
dois anos contato
com Maria Helena,
nas reuniões
clandestinas do
grupo, alimentando
seu desejo de
vingança, só
atenuado quando
dividido pelo
pensamento na
execução de seu pai.
O destino se
interpõe na ordem
desejada para suas
execuções: vítima de
um derrame, seu pai
estava sem fala e
movimento e era
imprescindível a
ação. Viaja para a
fazenda e tem uma
visita a sós com o
doente. Este, sem
condições de defesa,
só pode assistir à
declaração de ódio e
confissão do
fratricídio, assim
como a anunciação de
sua iminente
execução:
sentando-se sobre o
rosto da vítima com
um travesseiro,
asfixia-o
impiedosamente. E,
iluminado pelo
prazer da vingança
cumprida, avisa aos
enfermeiros que não
incomodem o sono do
doente e se vai.
Beneficiado pela
herança e pela
vingança feita,
ocupa o vazio
deixado pela
execução do pai e a
espera pela
realização do desejo
de eliminar a mulher
que o desprezou, com
o prazer da tortura.
Levando uma vida
dupla, se divide
entre ser o padre
vítima da repressão,
muitas vezes preso,
torturado, e o
encapuzado,
autodenominado
Eusébio, o mais
terrível torturador
daquele complexo.
Dividido entre o
prazer da dor que
infligia e aquela
que lhe era, de bom
grado, imposta, o
ambivalente padre
chega ao tão
esperado momento do
acerto de contas.
Maria Helena e o
marido foram
torturados,
psicológica e
fisicamente, durante
doze horas, até a
morte. Amarrados de
barriga para baixo,
foram, perante a
surpresa de
descobrir no padre
companheiro de
subversão um traidor
e algoz, espancados
e estuprados. Um
companheiro cuidava
do marido, enquanto
o padre se dedicava
ao momento que tanto
esperara: com
requintes de
crueldade e
humilhação sexuais,
finda por
estrangular Maria
Helena.
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