Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

João Ubaldo Ribeiro

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Crítica, ensaio e comentário:

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Fortuna:


 

Uma notícia do autor: 

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Velazquez, A forja de Vulcano

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

Francisco Renato de Souza

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

28.10.2007


O Diário do Farol: a face do mal

 

Questão que perpassa conceitos de moralidade, ética e religião a dicotomia entre bem e mal é discussão de interesse milenar. Dos relatos bíblicos da queda de Satã e do livre arbítrio do homem, fábulas infantis, sabedoria do senso comum, às inúmeras obras artísticas e narrativas literárias, a discussão gira em torno da negatividade do mal e fator positivo do bem. Em uma perspectiva contrária, a personagem central de O Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro, incita o leitor a uma reflexão sobre a essência humana no mal, motivo central desta edição.

 

A obra é narrada por uma personagem voluntariamente anônima que se denomina o faroleiro, e que, aos sessenta anos de idade, vive isolada em uma ilhota deserta, inóspita e de difícil acesso, se dedicando a registrar, em um relato em forma de diário, suas memórias de uma vida calcada na vingança, no ódio e na ambição.

Vítima da dor da perda da mãe, morta por seu pai, e da incessante violência paterna, física e psicológica, cresce com a determinação de vingar-se do pai assassino e de sua tia materna, irmã de sua mãe, parceira e cúmplice no crime, que passa a ser sua madrasta. Mostra-se com uma aptidão prazerosa em toda forma de vilania para atingir sua meta, desenvolvendo uma personalidade dissimulada e voltada para a farsa. Conta com o auxílio da sua mãe morta, que se mostra presente através de uma voz que acompanha e incentiva os atos do filho vingador: ´... sou movido a escrever este relato, mais fortemente que pelos outros motivos, pela minha Vaidade em me considerar o pior dos seres humanos, o único, que eu saiba, que encarnou em si tudo o que lhe conveio, sem permitir que o filtro de qualquer valor erguesse impedimento. Veja bem, isso não me retira a solidão, antes a sublinha. Não fiz, nem de longe, tudo que de mau já se fez, mas teria feito, se houvesse oportunidade. Sou, portanto, para o espelho de minha absoluta Vaidade, o pior dos homens, o que cometeria o que de mais hediondo se pudesse conceber e chegou a uma quantidade difícil de igualar, não em número, mas em qualidade. Eu sou um grande mau, dir-se-ia´ (p. 23).

Batiza o farol em que vive com o irônico nome de Lúcifer, o príncipe da luz, criado por Deus, que se revolta contra o Criador, formando um reino adverso. E intenta com seu relato (e a vaidade que o leva à escritura) incutir no leitor um incômodo, levando-o a entender sua própria solidão e loucura, condição, acredita ele, perene a todo e qualquer ser humano. Entende o homem como um ser solitário por nascimento, natureza, sentimento e vida, que teria uma curiosidade essencial sobre a confirmação secreta de sua sanidade. Os atos que aparentemente seriam mais repugnantes aos seus olhos e aos do mundo são interiormente praticados, encontrando na especulação da alma alheia o confronto com sua própria natureza de ´assassinos, invejosos, devassos, traidores, egoístas, mentirosos, pusilânimes, canalhas, mesquinhos, hipócritas, adúlteros, santos neuróticos, antropófagos, parricidas, matricidas, infanticidas, estupradores, todos, todos, todos os que estão dentro dele mesmo.´ (p. 18).

Esse lado mau que cada homem traz dentro de si, e por condições externas impostas pela educação e convívio social, mantém reprimido, ganha um contorno fantástico na história do visconde Medardo di Terralba, em O Visconde Partido ao Meio, de Italo Calvino. Em certa guerra contra os turcos, nas planícies da Boêmia, o visconde é atingido por uma bala de canhão que o corta em dois no sentido longitudinal. A parte direita se mantém intacta, perfeitamente conservada, exceto pela enorme rasgadura que a separara da parte esquerda estraçalhada - esta, dada como inválida. É socorrido, e, após uma incrível intervenção cirúrgica, resiste, vivo e partido ao meio. Os habitantes de Terralba -após o retorno de Medardo à terra natal - logo perceberiam que não era só a aparência do mestre que havia mudado. De aspecto sombrio e taciturno, dedica-se a praticar pequenas maldades e, após a morte do pai, que morre em uma espécie de entrega desgostosa, Medardo assume o viscondado e inicia uma série de maldades pela região. Condenava culpados e inocentes à forca, incendiava bosques inteiros, vitimando pobres camponeses, e até mesmo o próprio castelo com sua ama dentro - ela que outrora lhe substituira a demanda de afeto causada pela ausência materna.

No entanto, a sua metade dada por perdida sobrevivera e volta em uma espécie de antípoda, sendo toda ela boas ações. Em um comportamento maniqueísta, o Mesquinho e o Bom seguem vidas de atos divergentes - um destrói e o outro repara - até o confronto final, no qual, bem e mal, tentando sobrepujarem-se, terminam por destruírem-se mutuamente. Após uma elaborada cirurgia, o visconde tem suas partes restauradas e reunificadas: ´Assim, meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao que era antes de se partir ao meio. Mas tinha a experiência de uma e de outra metade refundidas, por isso devia ser bem sábio.´ (p. 11).

Essa caricatura do uno que concentra em si virtude e vício, em medidas exatas e conflitantes, ilustra nitidamente o pensamento maniqueísta. O Maniqueísmo foi fundado na Pérsia, no século III, por Mani, também conhecido por Maniqueu, e tem como principal fundamento o dualismo absoluto. Defende que o universo está, assim, dividido em dois princípios básicos e absolutos: Luz e Trevas, ou Bem e Mal, tendo cada qual um reino próprio, que são distintos e separados entre si. O reino da luz é a manifestação do bem e do espírito; o das trevas, morada da matéria e lugar próprio de todo mal. A doutrina maniqueísta pregava um perene exercício de purificação que consistia em uma constante discriminação do bem e do mal, visando, através de uma conduta de vida reta e obediente aos preceitos maniqueus, libertar as partículas de luz aprisionadas na matéria, permitindo seu retorno ao reino da luz e, dessa forma, facilitando e apressando a separação definitiva entre bem e mal. Não podendo ser definitivamente destruído, já que é um princípio da realidade, o mal deve ser relegado ao mundo interior, o reino das trevas. Essa seria, então, a vitória maior que o bem pode almejar.

O principal nome ligado ao maniqueísmo foi o de Santo Agostinho, que durante um tempo foi um adepto de seus preceitos e, depois, um de seus mais ferrenhos detratores.

Nascido em Tagaste, província de Numídia, atual Argélia, filho de pai pagão e mãe cristã, viaja a Cártago para aprimoramento dos estudos. Lá se desvia moralmente e leva uma vida licenciosa, repleta de prazeres, principalmente sexuais. Converte-se ao cristianismo aos vinte e dois anos, vindo a tornar-se bispo em Hipona. Agostinho influenciou toda a Idade Média e fez parte do que os historiadores da Filosofia denominaram de Patrística, a filosofia dos padres da igreja. É, na realidade, uma apologia que sintetiza a filosofia grega clássica com a religião cristã. Suas experiências no campo dos estudos filosóficas foram intensas - além de seu contato com a experiência maniqueísta antes da adentrada ao mundo cristão. A questão do bem e do mal sempre foi uma preocupação em suas reflexões. Na obra Confissões, uma biografia em que contrasta sua vida de pecador com a graça divina, mas atento às preocupações filosóficas, a busca do entendimento da origem do mal é uma constante para o bispo de Hipona.

Através da hierofania, a manifestação do sagrado: Deus estando em todas as coisas, se nos revela através delas e de nós mesmos, Agostinho internaliza o divino no humano. A alma seria então um receptáculo da luz divina e, ao mesmo tempo, a abertura do ser humano para Deus, já que a experiência da eternidade acontece nela. A essência e o sentido da vida humana, e de tudo que a envolve, assim se caracteriza. À exceção do pecado. Sendo o divino uno, ele não carrega o mal.

Ao não entender o mal como outro ser poderoso, Agostinho afasta-se do maniqueísmo, e o classifica (o mal) como uma privação do bem. O mal fica excluído da idéia de ser. E não sendo, não pode competir com o bem- como pregava o pensamento maniqueu.

No entanto, fica a questão da responsabilidade do pecado. Se o ser humano recebe a luz divina, como pode ele pecar? Agostinho justifica a questão com a teoria do livre-arbítrio. O homem foi criado por Deus livre e dotado de vontade, e quando caminha para o não-ser, se afastando assim do ser, aproxima-se do mal e comete os pecados. Através do pecado, o homem transgride a lei divina, já que, criado para ater-se mais à alma, prende-se ao corpo e a matéria, invertendo os valores da existência por cair na ignorância: ´Indaguei o que era iniqüidade, e não achei substância, mas a perversão de uma vontade que se afasta da suprema substância, de ti, meu Deus - e se inclina para as coisas baixas, e que derrama suas entranhas, e se intumesce exteriormente.´ (p. 158).

A questão moral do bem e do mal na retratação de Medardo dividido em duas partes antípodas é, no entanto, um reflexo bem menor do que a meditação sobre a divisão característica do homem contemporâneo, como deixa claro Calvino, no prefácio da obra: ´Não, não quebrava mesmo a cabeça com isso, nem por um instante havia pensado no bem e no mal. (...) eu usara um contraste narrativo notório para evidenciar o que me interessava, isto é, a divisão ao meio.´ (p. 10). Este homem, chamado por Marx de ´alienado´, classificado por Freud de ´reprimido´, é um ser incompleto e mutilado; partido ao meio, aspira a um estado de completude. Inimigo de si próprio, carrega o contraste entre o que é e o que aparenta ser. Inspirou-se em O Médico e o Monstro, clássica obra de R. L. Stevenson em que o tema do dualismo do ser acontece através da excêntrica experiência científica do doutor Henry Jekyll. Consciente e intrigado com o dualismo que todo ser carrega dentro de si, e que o obriga à dissimulação, ´ia-se cavando em mim, mais do que na maioria dos mortais, esse profundo fosso que separa o mal do bem e divide e compõe a dualidade da nossa alma.´ (p. 71), o médico consegue criar uma fórmula, por meio de experiências de laboratório, capaz de libertar o corpo de certas faculdades que compõem o espírito, obtendo uma nova forma corpórea que substituiria a primeira: ´senti-me mais novo, mais leve, mais bem disposto, e experimentava, no meu íntimo, uma impetuosa ousadia; desenrolavam-se, na minha fantasia, desordenadas imagens sensuais, vertiginosamente; desfaziam-se os vínculos morais e se mostrava agora uma liberdade da alma que, entretanto, não era inocente. Considerei-me, desde o primeiro sopro da minha nova existência, de ânimo mais perverso, dez vezes mais iníquo, reintegrado na maldade original; e esse pensamento, naquela hora, prendia-me e deliciava-me como um vinho.´ (p. 73).

Edward Hyde personificava o lado selvagem do Dr. Jekyll, desde a aparência física até os atos, livre das correias, entregue à animalidade pura, capaz até de matar. Dessa forma, o médico mantinha sua conduta impoluta, enquanto seu alter-ego dava vazão às necessidades selvagens da alma. A experiência, no entanto, lhe foge ao controle e a besta que Jekyll mantinha a seu dispor passa a ser o seu senhor. A necessidade de transmutação passa a ser a busca de sua identidade original. Dominando completamente o corpo de Jekkyl, Hyde é encontrado morto no laboratório do doutor, que desaparecera nas entranhas da criatura.

Essa unificação de instinto selvagem e razão civilizada, que compõe uma quase dupla personalidade do homem contemporâneo, é narrada por Rubem Fonseca em Feliz Ano Velho. O perfil da violência e crueldade, em um mundo que estreita a distância entre a marginalidade e o aparente cotidiano pacato da classe média nas grandes cidades, é o mote das narrativas da obra. Nos contos Passeio Noturno I e II, a cisão do homem moderno é demonstrada através do excêntrico passatempo de um executivo que foge do tédio e do vazio de uma vida sem sentido e de uma família sem laços afetivos. Com uma rotina repetitiva, ele extravasa o estresse em um esporte radical. Nada de tiro ao alvo ou luta marcial. Com um Jaguar especialmente equipado: pára-choques salientes, com reforço especial duplo de aço cromado e um motor poderoso que vai de zero a cem quilômetros em segundos, saí à noite pelas ruas do Rio de Janeiro atropelando, com estilo, transeuntes, em uma espécie de vídeo game real. Na segunda parte do conto, é assediado por uma bela jovem e a convida para jantar; durante o encontro, tudo o entedia. Como todo homem, aguarda ansiosamente pelo que vem depois. Porém, diferentemente de todo homem, não será pelo sexo com ela que ele terá prazer: ´Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente - e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando - e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade. Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um filme colorido, dublado. Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse. Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na companhia.´ (p. 71).

A personagem de Fonseca, ao contrário de Dr. Jekyll, tem total controle do monstro que tem dentro de si - criando inclusive uma perfeita sintonia, tirando dele o prazer que precisa para se manter no mundo racional. Diferente também da incompatibilidade do médico com sua fera - e da unificação equilibrada de ambas as partes do visconde partido ao meio - o faroleiro destrói as teorias maniqueístas - sendo talvez o que Santo Agostinho chamava de ´aberração´- apresentando-se como um ser desprovido de qualquer sentimento bom.

Conforme as promessas de seu pai, é mandado a um seminário para as preparações necessárias à ordenação de um padre. Cheio de ódio e sonhos de vingança, encontra no mundo clerical não um ambiente de purificação, e sim, um ambiente propício para a degradação e proliferação de todo o cinismo, crueldade e torpeza que carregava em si.

Consegue facilmente manter uma condição de liderança sobre os outros internos e também sobre alguns padres, utilizando-se da chantagem de informações facilmente adquiridas em um local onde a zoofilia e a sodomização de padres por internos - ato que também ele desempenhou como forma de obtenção de oportunidades - era ato corriqueiro: ´Hoje sei que o seminário, como intuí desde o primeiro dia, era mais ou menos como uma penitenciária. Há muitos submundos nas penitenciárias e tudo se consegue, desde drogas a armas, a depender dos contatos que se fazem.´ (p. 60).

A descrição do internato como forma de denúncia de local de deformidade do ser, contrariando a visão convencional da sociedade, é também mostrada e é o foco da obra O Ateneu, de Raul Pompéia, uma caricatura sarcástica da vida no internato. A obra retrata o doloroso processo de transição da infância à idade adulta, através da personagem Sérgio, que é posta no internato pelo pai para sua lapidação de caráter. Os percalços, maus-tratos e provações a que Sérgio é constantemente submetido no internato, no entanto, fazem-no perceber, a duras penas, que se encontra em um campo hostil.

Com relações bem mais delicadas nas ligações de afeto entre os internos, que as descritas pelo faroleiro no seminário, as ligações homossexuais do internato são narradas com mais sutilezas, acontecendo mesmo em forma de amizade. Ainda que por interesse, Sérgio fora desenvolvendo relações ambíguas com alguns companheiros; fazia-se necessário obter a proteção dos mais fortes: ´No recreio não andávamos juntos; mas eu via de longe o amigo, atento, seguindo-me com seu olhar como um cão de guarda. Soube depois que ameaçava torcer o pescoço a quem pensasse apenas em me ofender...´ (p. 85), levando-o mesmo a se posicionar nitidamente em uma postura totalmente feminina: ´Confusamente ocorria-me a lembrança do meu papelzinho de namorada faz-de-conta, e eu levava a seriedade cênica a ponto de galanteá-lo, ocupando-me com o laço da gravata dele, com a mecha de cabelo que lhe fazia cócegas aos olhos; soprava-lhe ao ouvido segredos indistintos para vê-lo rir...´ (p. 123). Marco inicial do Naturalismo no Brasil, a obra de Pompéia, no entanto, mostra uma protagonista inocente na sua forma de se utilizar dos favores como forma de sobrevivência: ´Por minha parte, entreguei-me de coração ao desespero das damas romanceiras, montando guarda de suspiros à janela gradeada de um cárcere onde se deixava deter o gentil cavalheiro, para o fim único de propor assunto às trovas e aos trovadores medievos.´ (p. 97).

O Ateneu é descrito como organização imperfeita, local de aprendizagem de corrupção e incitação da espionagem, intriga e humilhação, onde abundam as seduções perversas. Assim descreve o faroleiro o seminário e seu sistema: ´Hoje sei que o seminário, como intuí desde o primeiro dia, era mais ou menos como uma penitenciária. Há muitos submundos nas penitenciárias e tudo se consegue, desde drogas a armas, a depender dos contatos que se fazem.´ (p. 60). A forma mais corrente de obtenção de favores era a sodomização dos padres pelos internos, o que possibilitava favores extraordinários. Corrompido voluntariamente pelo esquema, o faroleiro, que em matéria de sexo só conhecia a masturbação coletiva dos meninos do interior, se entrega à masturbação, felação, sodomização e sadismo nos padres, em passagens bem menos sutis que as de Sérgio no internato, deixando para trás a inocência.

O caminho para a degradação juvenil perpassa, também, a história de Noboru, personagem de O Marinheiro que Perdeu as Graças com o Mar, de Yukio Mishima. Noboru é um adolescente órfão de pai que vive com sua mãe, Fusako, jovem e bela proprietária de uma loja de artigos de luxo importados do ocidente, que leva um modo de vida cosmopolita e contrário às tradições japonesas, na cidade portuária de Yokohama. Quando sua mãe se envolve com o marinheiro Tsukazaki, uma figura idealizada aos olhos do garoto, por ver a vida no mar como uma forma de vida heróica, Noburu, que não se ressente da ausência paterna, por entender a paternidade como representação de acomodação odiosa, porque contrária a qualquer possibilidade de heroísmo, estabelece com ambos um triângulo de relacionamento. No entanto, Tsukazaki, que vivia à deriva entre uma monótona rotina de embarcadiço e a ausência de vínculos em terra firme, envolve-se emocionalmente com Fusaco, decidindo-se por abandonar a vida no mar para se casar com ela. O marinheiro torna-se assim, para o garoto, um ser abjeto por quem passa a alimentar sentimentos de ódio e vingança.

Toda essa trajetória sentimental que vai da idolatração ao desprezo, Noboru compartilha com um grupo de amigos com os quais divide uma espécie de sociedade secreta. Marcando seus encontros em diferentes pontos da cidade, os cinco garotos, liderados por um deles, o chefe, discutem seus ideais niilistas com a presunção de intelectuais que têm o ego acima dos demais: ´... eram todos meninos pequenos, delicados, e alunos excelentes. A maior parte dos professores fazia rasgados elogios a esse grupo destacado, e até mesmo o apontava como um exemplo para alunos menos brilhantes.´ (p. 46). Eram todos filhos de ´boas famílias´ e traziam, incitados pelo chefe - que assim como Noboru, tinha apenas treze anos - a convicção de que a vida era um caos da existência em meio a uma sociedade destituída de significado, fazendo-se necessário tirar força da incerteza e do medo que o caos provoca para, assim, recriar a existência. E eram os pais, a escola e a sociedade, todos ´cegos´, que fragmentavam sua capacidade ilimitada. Agindo como militantes de uma causa, pensavam e se preparavam para tudo, e, com o pensamento dos extraordinários, não recuariam diante da necessidade de derramamento de sangue: ´O chefe sempre insistiu em que eram necessários atos como esses para encher os grandes vazios do mundo. Embora nada mais pudesse realizar isso, dizia ele, o assassinato encheria esses buracos abertos, da mesma maneira que uma fratura enche toda a face de um espelho. E então eles conseguiriam um poder real sobre a existência.´ (p. 53).

Era preciso um coração duro e frio para executar tal tarefa, caso esta se lhes apresentassem. A prova para Noboru viria na execução de um gato, atirado diversas vezes contra uma acha de lenha: ´O gato bateu na lenha e voou novamente pela última vez. Suas patas traseiras se contorceram, traçando amplos círculos imprecisos no chão sujo, e em seguida pararam. Os garotos ficaram superalegres com o sangue respingando na lenha´ (p. 54). Como forma de mostrar de perto, e sem disfarces, a morte, o chefe, com uma tesoura, ´desnuda´ o gato, em uma minuciosa autópsia. À medida que o gato vai sendo escalpelado, tendo o endoderma exposto, com vísceras e órgãos sendo cortados no exame didático, Noboru, inicialmente confuso, se certifica do seu mérito: ´eu o matei sozinho, posso fazer qualquer coisa, por mais terrível que seja.´ (p. 57). Aprovado pelo ritual que o livraria da hesitação infantil, ouve do mestre: ´Você fez um bom trabalho. Acho que podemos dizer que isso o transformou realmente num homem.´ (p. 57).

A desilusão do enteado com o padrasto chega ao extremo quando a mãe descobre que o garoto os espionava através de um pequeno buraco na parede de seu quarto e delega ao marido a punição do garoto. Tsukazaki, apesar de não amar Noboru realmente como filho, acredita nos instintos paternos, emoção só agora descoberta, e age de maneira condescendente, causando nojo a Noboru, que convoca uma reunião de emergência com o grupo, culpando o marinheiro de alta traição. Arquitetam um plano para atrair e sedar o marinheiro e, calculadamente protegidos por uma lei que deixa impunes atos de crianças menores de quatorze anos, executar o traidor, utilizando a prática já experimentada com o gato. O dever do grupo é pôr a engrenagem deslocada em seu devido lugar. E, para manter a ordem no vazio do mundo, a única saída seria pelo desfecho trágico, fazendo do marinheiro, assim, novamente um herói.

Assim como Noboru, o faroleiro teve sua tarefa de treinamento. Sendo seu pai o alvo de sua vingança, calcular e executar a morte de seus irmãos paternos foi para ele como uma simulação do que viria a ser o seu ato máximo. Desde o momento em que fora apresentado, em uma das férias do seminário, à sua irmãzinha, desenvolveu por esta um repúdio que só arrefeceu com a idéia de eliminar a criança. De volta ao seminário, pesquisa em um livro de agricultura venenos que adicionaria, em um plano milimetricamente calculado, aos pacotes importados de vitaminas com os quais os bebês eram alimentados. Tendo ganhado mais um irmão, executou sem hesitar o duplo fratricídio, deixando cair a culpa em Ana, antigo desafeto seu e amásia do pai - e também em Rosalva, única pessoa que lhe demonstrou afeto além da mãe, mas que nem por isso lhe fez recuar. Saiu impune. Ao menos legalmente, já que para o pai era ele o autor dos assassinatos, redobrando sobre o filho o ódio que sempre lhe nutriu. Mortos os irmãos e a madrasta (que falecera de parto), faltava a execução principal: o parricídio. No entanto, um novo objeto de ódio cruza o seu caminho.

Após as mortes dos irmãos, seu pai, por não suportar mais sua presença, designa que, nas férias do seminário, ele se hospede na paróquia da cidade. Com toda sua dissimulação, é logo bem aceito pela maioria, que já o designava padre, se destacando na condição de conselheiro espiritual das moças locais. Cria um esquema de sedução e libidinagem com todas, principalmente as noivas, fazendo da sacristia sua alcova. Uma dessas moças, no entanto, trouxe à vida do seminarista um novo desejo de vingança. Inicialmente mais uma noiva em busca de conselhos espirituais, Maria Helena fora também seduzida por ele, mas redimira-se e rompera os encontros de alcova na sacristia. Diante da atitude de recusa da moça, contra todos os seus hábitos e fria objetividade de encarar os fatos, cogitou abandonar o seminário, propondo-lhe casamento, num acesso de paixão com surtos de angústia e crises de choro. Recusada sua proposta, mergulha em um profundo sentimento de humilhação e derrota, em uma confusão de sentimentos e insegurança que cria ele já estar imunizado. Retoma sua racionalidade, mas passa a alimentar pela amada o mesmo ódio cultuado pelo pai, arquitetando inclusive sua indicação para a arquidiocese de Praia Grande, logo depois de sua ordenação, como forma de propiciar melhor as circunstâncias que cruzariam novamente seus destinos.

Contornando as dificuldades que seu excelente currículo e o nome de seu pai lhe traziam, por lhe dar condições de um futuro bem mais promissor, consegue, depois de uma encenação grotesca e patética perante os bispos sobre sua intenção de servidão humilde aos pobres da paróquia escolhida, ser aceito como o vigário de Praia Grande. Com o objetivo primeiro de estar próximo da Maria Helena, toma parte ativa em projetos em que ela colaborava, investindo dinheiro e promovendo iniciativas de caridade, aumentando mais sua popularidade. Sem nenhuma posição ideológica, inscreve-se oficialmente no grupo de conscientização política da qual ela era militante, que sofria seguidas denúncias de subversão, trazendo assim para sua vida dois elementos que seriam fundamentais para a conquista de seu objetivo: a política e a tortura.

Após o golpe militar, iniciou-se no país uma série de investigações, rumores de prisões e ´viagens´ inesperadas rumo ao incerto para alguns. Neste clima de opressão, o jovem padre não hesita em ficar do lado do sistema, passando a ser um infiltrado no grupo. Em uma prisão simulada, é detido e torturado junto com o grupo subversivo de Maria Helena, que o acolhe como um membro oficial. Jejum, extração dentária, hematomas pelo corpo - feita a fantasia, é posto em uma cela fétida junto com os demais presos políticos e inicia sua tarefa de delação. Tendo acesso às sessões de tortura, descobre um prazer indelével: ´Ah, que descobertas, que transes, que prazer misterioso me arrepiando desde as entranhas, em ver aquelas relações de amor entre os torturadores e os torturados, em ver como alguns cediam logo e outros resistiam até quase à morte ou ela própria. Havia uma ternura enviesada nas torturas, havia ouso dizer, quase orgasmos, pelo menos em mim, que agora ansiava por também participar das sessões.´ (p. 260).

Ganhando a confiança dos companheiros de cela, delata-os, e tem, por merecimento de causa, seu pedido atendido, passando, assim, de mero expectador a algoz. Sua primeira vítima é o companheiro de cela, Peçanha, e como marco inicial, elabora um ritual para aquele que seria seu primeiro assassinato in loco. Fazendo o amigo acreditar que seu fim está próximo, consegue uma broa de pão para ouvir-lhe a confissão e dar-lhe a comunhão. No entanto, o corpo de Cristo que lhe é dado vem em forma da morte por cianureto. Mata-o. Mas mata em Seu Santo Nome. E dá vazão a sua real natureza: ´Meu desejo era o prazer novo, o prazer de matar que não tive com meus irmãos, mas agora estava à minha disposição, antes ocultado sob o tapete de uma consciência falsa e agora se abrindo apoteoticamente. Matar, matar, não pode existir maior exercício de potência na existência humana. Matar, ver morrer, extinguir uma vida, matar, torturar, matar!´. (p. 268).

Liberto, pelo exercício de crueldade e também da falsa prisão, mantém por mais de dois anos contato com Maria Helena, nas reuniões clandestinas do grupo, alimentando seu desejo de vingança, só atenuado quando dividido pelo pensamento na execução de seu pai. O destino se interpõe na ordem desejada para suas execuções: vítima de um derrame, seu pai estava sem fala e movimento e era imprescindível a ação. Viaja para a fazenda e tem uma visita a sós com o doente. Este, sem condições de defesa, só pode assistir à declaração de ódio e confissão do fratricídio, assim como a anunciação de sua iminente execução: sentando-se sobre o rosto da vítima com um travesseiro, asfixia-o impiedosamente. E, iluminado pelo prazer da vingança cumprida, avisa aos enfermeiros que não incomodem o sono do doente e se vai.

Beneficiado pela herança e pela vingança feita, ocupa o vazio deixado pela execução do pai e a espera pela realização do desejo de eliminar a mulher que o desprezou, com o prazer da tortura. Levando uma vida dupla, se divide entre ser o padre vítima da repressão, muitas vezes preso, torturado, e o encapuzado, autodenominado Eusébio, o mais terrível torturador daquele complexo. Dividido entre o prazer da dor que infligia e aquela que lhe era, de bom grado, imposta, o ambivalente padre chega ao tão esperado momento do acerto de contas. Maria Helena e o marido foram torturados, psicológica e fisicamente, durante doze horas, até a morte. Amarrados de barriga para baixo, foram, perante a surpresa de descobrir no padre companheiro de subversão um traidor e algoz, espancados e estuprados. Um companheiro cuidava do marido, enquanto o padre se dedicava ao momento que tanto esperara: com requintes de crueldade e humilhação sexuais, finda por estrangular Maria Helena.