Jaumir Valença da Silveira
Escleroblasto
Era o que minha juventude ousou por conceber.
Eu haveria de ser o filho da classe média,
escravo de seus princípios, desejos e padrões.
Turvo pela mácula da sede de seus pecados,
marcado pela sina definitiva da mediocridade
(e apesar disto, achava que as coisa poderiam ter sentido).
Minha primeira infância foi a adolescência,
e minha adolescência foi a solidão
(he said a storm's comin').
Naqueles dias, meu anjo, eu já sabia
que o meu futuro seria escuro como uma mina,
que meus amigos, se eu os tivesse, me abandonariam,
que os anos acumulariam mortos -
e tudo isto era fatal.
Procurei nas cavernas de meu fictício amor-próprio
meu abrigo subterrâneo - e fui viver nas sombras.
Foi quando tua visão veio a mim.
Eu vos digo, agora, senhores:
não será outra
a história de amor de meus dias.
Estranho mundo onde as pessoas são tão diferentes
e as horas as tornam tão iguais.
Estranho o mundo porque sou pequeno,
o sol, a chuva e o tormento são grandes,
e me alimento do alento da Incerteza.
A verdade é que, por algum tempo,
achava que tinha em mãos
o que fazer de minha vida.
Porque queria pouco:
o conforto de um claustro
que algum modesto dinheiro pudesse comprar
e que me desse como viver -
perdão, como passar.
Foi quando tua visão veio a mim.
Com que lembranças mornas me estonteio!...
Vejo teu rosto com a clareza do Novo Testamento,
e o teu sorriso embriaga-me a garganta
como se eu quisesse, lírico desmedido,
entoar um cântico de adeus a Dionísio
enquanto ele me enforca com uma cantiga de ninar.
Há algo de não-determinístico em cada esquina
e chamar a isto de caos é um exagero.
Eu costumava imaginar
o que pensava da vida uma colegial tardia
cujas roupas de adolescente já quase não comportavam uma mulher
emersa das sombras, do umbral, da ignorância,
de um mundo tão obturado quanto a minha expectativa de ser feliz,
e que tinha a beleza de quem não sabia,
um capricho irônico da natureza,
um olhar de uma urgência de viver -
e que me cativou.
Não quero ser cruel a ponto de dizer
que tinha a ilusão de que o que é selvagem é puro.
Nem sei se pode haver algo mais antigo
que mirar um sonho que vem e que vai pela janela.
Mas a estupidez de amar o inatingível não tem limites
porque não tem começo,
porque não tem fim,
e todos os meios são cegos.
Dias e dias e dias
e o acordar já não era um esforço inumano.
Ver-te passar pelos fins de tarde
(onde um sol funcionário público se deitava)
cumulava-me de um veneno de doçura
que lentamente ia amargando em ameaça de lágrima,
envergonhada por um racionalismo patético.
Mas eram tuas as noites consagradas
e o amor coagulado em desespero me desordenava os sentidos.
Que futuro teria? Mas que futuro teria eu?
Por ser-me inaceitável a fragilidade
de sentir-me presa dos deuses, do Deus,
ou do Diabo que fosse,
resguardava-me numa lógica que já não fazia sentido
e o vácuo do não-ser...
nunca eu hei de esquecer.
Sobrava-me o cativeiro de um sentimento
que era estéril, destrutivo e impiedoso.
E destes dias difíceis
restou-me o vício suave de amar a tristeza.
(Quando houve o Big-bang - e isso foi há muito -
algumas partículas existiram por uma fração de segundo,
para nunca mais.
Hoje há os que entregam sua vida para ressuscitá-las,
e de pensar nisto eu me consolo,
eu não me sinto mais sozinho,
pois toda origem encerra uma perda que une.)
Há costumes que matam por fora
e outros que matam por dentro.
Corpo são talvez seja uma herança inata
de uma leva que abandonou o pensamento,
na desilusão de não ter consumado o pecado original.
O nosso tempo se ateve à gordura do corpo.
Eu disse nosso, não disse meu,
ao bom entendedor meia palavra basta,
ao meio entendedor boa palavra inunda,
e nunca um coração foi tão organicamente mortal.
Da esteira de modismos ridiculamente naturistas
ou naturalistas, ou naturebas
(antes eu nunca tinha usado esta palavra),
com suas dietas e ginásticas
e sedentários de corpo, alma, luz e verbo,
o suco das frutas tropicais foi que mudou meu rumo,
quando eu buscava o doce das mangas
e uma trégua neural que só a doçura consegue
(e não me venham aspartar-me que eu não quero)
foi quando, foi quando eu te vi. Aqui do meu lado.
Da loja de sucos toda lembrança esmorece
diante de um anoitecer de verão no Brasil.
O chão das calçadas de pedra morno sob os chinelos,
o vento morno que morde e assopra,
arauto malandro de uma noite singular
que abdicou da majestade por que quis
mas não abre mão de baixar alardeando exuberância,
esfriando o sol com mil reverências multicolores
trazendo à terra alívio e frescor
- mas aqui não é frescor, e sim frescura -
carregando os astros como jóias por todo o corpo,
e como quem dissesse, toda-poderosa, toda boa,
"Meus amores, meus queridos,
eu cheguei para fazê-los felizes".
E estas coisas, nem parece, empurram a gente pra vida,
especialmente quando se é um tupiniquim
que sonha intimamente uma herança européia
que não sabe de onde vem, ou veio, ou virá (?)
mas escolheu por mimetizá-la num ar de melancolia,
de um perfume gelado como a névoa vespertina
e me perdoem, tão vulgares quanto eu:
assim foi, e assim será, porque assim é mais fácil.
E só por isso. Só por isso!
Há algo de inusitado que espreita o ceticismo
com a leveza das traquinagens de meninos
que se escondem nas inflexões do espaçotempo.
Por fora a distância é pequena,
por dentro é o mundo,
mas eram palmos de um balcão que nos separavam.
Querer eu queria, amar eu amava,
buscar era o precipício,
e eu sentei-me à beira focalizando o infinito,
no fundo não era à toa,
era como quem desdenha, à vista dos outros, um estereograma,
mas deplora em alma viva não alcançar o desenho.
Dá licença, foi o que ela disse,
e passou, e voltou, e perguntou,
Não é o senhor que toda tarde fica na janela
(daquele prédio branco, como se fizesse diferença)
e se agonia e encanto alguma vez vieram juntos
foi naquele dia, naquela hora,
eu bem que quis chamar de ânsia,
mas dizer que eu ansiava por alguma coisa seria mentir.
Ah, minha filha, quem fica toda a tarde na janela é Deus,
contemplando com toda vaidade do mundo a Sua obra.
Sou eu... sou eu... ... sou eu... ... ...
De um lado um alguém conhecido por cada centímetro quadrado;
do outro um estranho.
Fulano, suco de cacau, foi o que ela pediu,
e a metafísica se derramou sobre minha alma
enquanto descia pela sua garganta
com uma sensualidade tão inesperada,
contida, suave, sublime,
que o mais desértico dos cépticos se inclinaria
a dar as costas à aridez do acaso,
e o maior dos poetas arruinaria uma reputação
em troca de se banhar numa fonte de adjetivos
onde pudesse lavar as entranhas
e diluir as impurezas que só ele sabe que existem
e que acumulou em prol do sacrifício.
Sacrifício. Névoa do nada. Mosaico de migalhas.
E toda esta leveza não comporta o que não seja fluido.
Mas as lágrimas são leves,
se atenuadas pelo sorriso.
A lágrima vem do corpo, mas é alma.
O sorriso vem do corpo, mas é alma.
E o sexo vem da alma, mas é corpo.
E o corpo é matéria. Protoplasma e deutoplasma.
Cultura e escultura.
Boa noite, hein... a gente se esbarra por aí.
Boa noite.
(Eu deixo pra você a dor ou alegria
desta frase que a memória verte.
É o meu presente.)
E o bom senso guarda, dentro de si,
a graveza das explosões nucleares,
explosões estas que não têm um sentido
que não seja destruir todo o dualismo identificado como
compreensível,
pois aprisiona, e liberta,
e tudo isto é uma coisa só.
Há quem durma com este barulho.
Não é mais o meu caso,
porque eu não quero que seja.
Enquanto estiver acordado,
quero sentir, a cada dia,
a inconseqüência e a conseqüência
desta enxurrada de humores que eu controlo, deploro e celebro.
Eu vejo um vulto que se aparta de mim,
e nunca a palavra confusão foi tão etimológica,
pois não se sabe se se ganha ou se se perde
em não saber se se ganhou ou se se perdeu.
Vai-te em boa hora, minha filha,
que o amanhã é outro,
que eu rezarei por ti,
e que o amor só faz mal
quando não é amor
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