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Lilian Maial


 

Ser mulher...


Nasci mulher, é fato
Gameta indiscutível,
Cometa irremediável,
Soneto jamais escrito.

Cresci menina, concordo,
De pernas cruzadas,
Cabelos alinhados,
Pelos depilados.

Vivi madura, é certo.
Aprendi a traçar os olhos,
A disfarçar as lágrimas,
A não borrar a maquiagem.

Sonhei criança, feliz.
Escrevi meus passos,
Acreditei nos planos,
Colhi meus frutos.

Provoquei emoções, faz parte.
Ensinei meus truques,
Repiquei batuques,
Batalhei com arte.

Briguei na vida, gritei.
Enfoquei os problemas,
Resolvi os teoremas,
Me entreguei a poemas.

Quebrei espelhos, de raiva.
Escondi a dor,
Distribuí amor,
Superei o tempo.

Amei demais, está em mim.
Mulher sem amor não existe.
Atraí desejos, por capricho,
Ou não, por pura paixão.

Caminhei e caí, me ergui.
E não pretendo mudar.
Arregacei as mangas tantas vezes,
Que já nem sei desenrolar.

Mas...quer saber?
É uma delícia ser mulher!
Não troco por nada, por ninguém.
Volto assim mil vezes, se puder.

E quando o véu da noite,
De inveja e despeito me levar,
Que o amor que distribuí,
Os frutos que plantei, venham, enfim, me regar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Lilian Maial


 

Reconsiderando


De alguma tocaia de versos,
A vaga lembrança de vida.
Sinais de sobreviventes,
Pistas nos caminhos dispersos
E um cantar de pássaros e borboletas
(não que borboletas cantem, mas...).

Era tarde e quieto antes
Que esse teu sol me raiasse.
Era outono e folhas flutuavam
sem querer cair,
em sua sabedoria vegetal,
como adivinhando a inversão
nas minhas estações.

Bem-vinda dor!
Que tu me morras,
Se nesses braços tenho algum alento!
Que me mates, se é teu contentamento!
Gosto de pensar que me velarias,
Que me enfeitarias e cobririas de flores e beijos
E que me irias dizer cânticos e salmos,
Como a embalar-me no berço.

Agora que despertei de teus sonhos,
Amamenta-me de teu sorriso,
Que cheguei faminta de rimas.
Quero um gole de teus dias,
A paz de tua irrequieta alegria
E a falta desses teus tão poucos dias.

Enquanto subtraio-te as dúvidas,
Calcule meu passado, noves fora, hoje,
Que aqui e agora sou recém-nato,
Completamente dependente,
E livre do teu recato.

Ortodoxa incrédula,
Sou a cédula que te mal paga,
A célula que te mal vinga,
A santa que te maldiz,
E a cria da tua agonia.

 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Carlos Herculano Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Lilian Maial


 

Das marés


Teus olhos de sonda
fitando e brincando
me sabem os pontos,
os recantos e recatos.
Me tocam de longe,
me estocam e encharcam
de lágrimas
de rios
de mar.

Sou toda sal
sou toda sol
seixos de rio meus seios
pedras no caminho
de tua correnteza-língua
derrubando tabus
aflorando taras
deflorando trevas.

Sou toda mel
sou toda céu
estrelas brilhando entregas
cometas atropelando espaços
no ventre contraído de anelos
por tuas mãos
de curiosidade cúmplice.

Sou toda leite
acre-doce deleite
fera enjaulada em cólicas
rugido ecoando nas veias
parto eruptivo de Vênus
feito por Thánatos em glória.

Ah, desejo de noite e ventos!
Deixar-me tanchar por teu verbo
até brotar-me aljôfar
seca por teus olhos de gaze.

Sem forças,
entrego-me ao dono
em permanente orvalho
aromas de pecado
riso e segredo
açude de águas vivas
queimando entranhas.

Perscruta-me com teu olhar,
disseca-me,
isola-me,
torna-me deus
nesse átimo
entre a vida e a morte.

Toma-me inteira
palpa-me
espreme-me
roça-me
deixa-me encurralada
entre teus braços
sem saída na tua boca
rendida entre tuas pernas.

Mas aproveita,
que meus instintos e gênios
não te permitirão revanche.
Dou-te a vantagem da vez
o domínio
o comando
enquanto me refaço
lunissolar.
 

 

 

José Saramago, Nobel

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Clotilde Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Lilian Maial


 

Vontade


Hoje é um daqueles dias
de macho e fêmea:
tua boca
minha língua
tua mão
meu seio
tua pele
meu cheiro
tua coxa
meus pêlos
teu sêmen
meu ventre
tua falta
meus dedos...
 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Secchin

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Lilian Maial


 

Brasil 501


Enganas bem a idade
[Melhor que qualquer atriz]
Sem ginástica ou bisturis,
Mas com mágicas de vitalidade.

Tuas rugas embutidas
Tuas lágrimas sentidas
Escondem-se sem muito pano
Ou trapos incandescentes
Nas peles dos indigentes.

Teus nativos [outrora guerreiros]
Hoje simples muambeiros,
Tramitam pestes e cicatrizes,
Incomodam com dias felizes.

Tuas matas, teus rios, açudes,
Poluídos de inquietude,
Armados de sol de verão,
Aviltam a inércia da mesmice
Dos que sangram pelo chão.

E quem vai fazer brotar da terra
A paz, a dignidade, a paga
Da escravidão, da realeza,
Da dívida externa...

Quem vai lavar teus pés
E ungir teu rosto contraído,
Se por menos, bem menos
Que trinta dinheiros
Viste teus ideais
[com beijos]
Traídos?

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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R Roldan-Roldan

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Lilian Maial


 

Abstrata


Na mente
é onde escolho a loucura
do dia,
do verbo,
da vez.
Traço apagado na tela,
natureza adormecida,
água-viva,
medusa,
menina.
Escrevo poema para poucos
(números abstratos)
e sonho
com a rua,
a roupa,
a rede.
Peixe que sou
alada,
calada,
encapada
(pálida escama),
meu destino é mar,
poema de areia,
pó de pedra,
alga e capim.

Mundana,
meu sentimento urbano
é imundo.
Eu sou assim:
abstrata, vazia, mal escrita,
como um rascunho
de mim.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Cláudio Feldman