SOBRE "FORA DE ÓRBITA", de Luiz Otávio Oliani*
Em outras órbitas:
por um encontro amoroso entre Sócrates e Oliani
Igor Fagundes *
A um sábio gato de Helena,
editora da palavra,
perdido e salvo
entre poemas: Sócrates
Se Sócrates estivesse vivo (e, de
fato, está), convidaria Luiz Otávio Oliani para reviver pelo menos
cinco grandes diálogos platônicos: Teeteto, Fedro, Fédon, República
e Íon. Em "Rota", um dos poemas-chave deste livro de estréia, o
jovem poeta revela: "amo o que está fora de mim". Ao embrenhar-se
nesse amor pelo descentrado, ao lançar-se para fora de si,
querendo-se fora de órbita, Oliani faz do pensamento poético um
habitar para além de qualquer noção de "território". No Teeteto de
Platão, a palavra grega traduzida costumeiramente por pensamento é
dianoia, que, na língua original, assume uma dimensão maior,
transitiva, peregrina, trans-orbital e cosmológica, isto é, sem
lugar fixo, periférica, na medida em que, nas palavras de Sócrates,
apenas o corpo se situa exatamente aí dentro da cidade e no meio do
povo, enquanto a dianoia, ela mesma, comandando todas estas
pequenices e coisas de nonada, às quais dá pouca importância, voa
por todos os lados, geômetra, como disse Píndaro, "dos subterrâneos"
e das extensões da superfície da terra, astrônoma do "para além do
céu" e, de todas as maneiras, perscrutando a completude da natureza
em cada um dos entes em sua totalidade, sem que ela, recaindo, se
fixe em nada disso que se lhe mantém próximo.
Nessa passagem, Sócrates discorre
sobre o modo filosófico de habitar a cidade, que, na experiência
unificante dos entornos, aproxima-se do jeito poético de ser: "em
mim / a palavra / se faz morada", lemos em Oliani, num paradoxo
vibrante. Afinal, ao mesmo tempo que a linguagem no homem encontra
uma casa (conforme depreendemos nos versos "em mim / a palavra"),
ele também - e primordialmente - a habita, suscitando uma simbiótica
e mútua referência na qual um (re)cria o outro. Ao vislumbrar a
linguagem como habitação, a poesia concede flexibilidade aos limites
dessa casa nunca estática. Uma casa, a saber, elástica, móvel, capaz
de abrigar tudo o que nela não couber e que, não cabendo,
extrapolará seus muros, tetos, tornando-a um indiscernível das ruas,
rios, mares, céu: "o poeta singra mares / (...) // na anatomia das
águas / navega em palavras / na imensidão", escreve no poema
"Oceanografia". Teríamos também, nesse sentido totalizante, uma
celeste-grafia, uma todo-grafia em que o poetar pensante se faria
medida de um não mensurável e nomear de um indizível: dianoia, em
grego. Em Luiz Otávio, este fora de órbita pulsante, através do qual
o poeta "pássaro / ignora poleiros / bate asas", pois "a arribação
se faz / quando as aves migram". A morada-palavra: uma casa sem
margens.
Por isso, mesmo vivente num país, num século, num tempo e lugar
específicos, o corpo poético desterritorializa-se, visita - mesmo
sem saber - gregos, Sócrates, de modo que, jamais inerte ou fechado
sobre si, torna-se capaz de pensar a partir da perplexidade frente a
tamanha força atópica e vivificadora que o arrasta, governa e nos
une. Estar fora de órbita em Oliani - e em qualquer obra
verdadeiramente poética - não significa negar o espaço físico onde
nos encontramos. Pelo contrário, significa afirmá-lo enquanto
dinâmica intensiva e extensiva, inscrita entre os "subterrâneos" e o
"para além do céu" de que nos fala Píndaro; um espaço-entre no qual
nos instauramos enquanto manifestação particular de uma totalidade.
Afirma o poeta: "brota em mim o verbo / com suas pessoas". Se Oliani,
plural, ressalta que "desconjugá-las não posso" é porque, pela
poesia, o nós se condensa no eu, o todo se revela na parte, o
universal exclama no individual e o estrangeiro sobressai no íntimo:
"no silêncio / o poeta pesca / o que nunca pôs no mar". Esses
versos, transcritos do poema de abertura, "Criação", sugerem o
poetar como potência de reunião, não apenas entre o dentro e o fora
do corpo ("a boca rascunha recifes"), mas também entre o silêncio, o
lugar e a palavra-voz. No já citado "Rota", flagramos: "entre o
espaço que me habita / e a voz que sopra no ouvido / há silêncios
intumescidos" (o grifo é nosso).
Logo, não é por acaso que o poeta supervaloriza a palavra "silêncio"
e o silêncio de cada palavra ao longo dos poemas. Ao primar pela
economia verbal, pelo verso enxuto e reticente, Luiz Otávio Oliani
não se faz mero cúmplice de um modismo estético contemporâneo,
marcado por algum minimalismo pós João Cabral de Melo Neto.
Silêncio, nesta órbita, nunca será uma ausência ressentida. A pausa
entre as palavras, versos e estrofes é, sim, uma presença positiva
do silêncio. Este, por sua vez, ao ocupar o branco da página,
permanece grávido de som. Por um lado, tudo o que se fala ou que se
escreve tem como ponto de partida o silêncio; por outro, ao se
tornar fala, deixa de ser imediatamente um silenciar. Acolhê-lo,
portanto, compensa a impossibilidade de falar dele, já que dizê-lo
implica corromper o estado de gravidez do qual somos embrião.
Implica interromper sua permanente possibilidade de jorrar sentidos
e impulsionar criações. Acolhê-lo, então, torna-o, de algum modo,
possível e potente, pois guardá-lo no comedimento é o mesmo que
libertá-lo, permitindo, a partir dele, a escuta do que se é, o
auscultar de algo que jamais será realmente co-medido, ou seja,
medido junto, em conjunto, porque no imensurável culminam as
con-junções. Hóspede do que ascende silencioso, o homem-poeta se
demora num (sem) lugar de liberdade e busca radical, na medida em
que escutar é ser e estar disposto, afinado e afeiçoado com aquilo
para o qual se está aberto e no qual se abandona em entrega atenta e
cuidadosa.
Nesse caminho meditativo, o poeta
reencontra Sócrates em outro diálogo: Fedro. No teatro de Platão, o
dizer socrático compara a escrita ao ofício do lavrador. Com as
melhores sementes, o terreno mais apropriado e imensa paciência,
quem lavra aguarda e alegra-se diante do espetáculo da germinação. O
escritor idealizado por Sócrates não pode ser aquele que se diverte
superficialmente, compondo textos rasteiros e efêmeros. É, decerto,
aquele "que semeia e planta com discernimento discursos tanto
capazes de defenderem a si próprios como a quem o semeou, e que
muito longe de serem infrutuosos contêm um germe que em almas
diferentes fará nascer outros discursos".
"Enquanto o homem // nunca sabe
esperar", Luiz Otávio, drummondianamente, espera que cada poema "se
realize e consuma / com seu poder de palavra / e seu poder de
silêncio". O poeta abre o livro com sugestiva epígrafe de Paulo
Henriques Britto, marcada por este mesmo verbo da maturidade: "mas a
semente espera". Na contramão dessa parcimônia, não seria
surpreendente se o jovem houvesse estreado movido por ansiedades
típicas de sua faixa etária, ou por força de alguma pressa
narcisista de assinar uma obra e tornar-se prontamente público.
Admirável, é, sim, admitir, humildemente e pela voz de Britto, que a
semente "é insistente e acerta / mesmo sem saber que erra".
Neste volume de poemas, espera e sabedoria traduzem-se na contenção,
na cautela de um poeta que entende o silêncio como um agir lavrador
e criativo. Porque a vida pulsa em hiatos, o poeta dá voz a esses
interstícios ("no silêncio dos nós"), fazendo com que a existência
humana vigore num entre-ser, na iminência do limite, pois somos
seres-no-mundo e seres-para-a-morte simultaneamente. Ao valorizar a
entre-linha, o sub-reptício, Luiz Otávio assinala nossa convivência
irrevogável com o desconhecido, com o insondável da finitude: "no
silêncio futuro a morte". No silêncio presente, também. Assim como
no silêncio passado, que perdura sonoro na memória, como "infância
roubada" e resgatada pela palavra. "De mim / permaneço seiva",
concebe-se Oliani, mais uma vez, como gene, possibilidade de um a
mais, de um desencadear de troncos, galhos, folhas, frutos, de um
expandir corporal, dinâmica espácio-temporal ou, como na fala
socrática, dianoética. Esta, a ética de Oliani: dar sentido à vida
através de reinvenção de ambos, do "verso / a burilar os homens".
Quando o poeta sublinha a arte como contraponto a um "mundo avesso à
fantasia", não está a alienar-se de nossas conjunturas, dramas e
impasses. Em diversos momentos, encontramos um Oliani observador da
barbárie humana ("há vísceras / em todos os lugares // quem se
indigna / diante de quem sangra?), da tensão racial (como no poema
"Rosa d'África"), da exclusão social ("vagarosos passos / descalços
/ à caça de ancoradouro"), entre outros espantos contemporâneos.
Exatamente porque sobrevivemos num mundo sofrível, o poeta pode e
sabe que deve criar um outro. Não como quem foge à "luta exangue / a
qual / nunca se finda", mas como quem re-age pela inventividade
po-ética: "ao beijar a solidão / eu me dispo por inteiro / da
escória que é o homem / na inútil tentativa / de ser Deus por um
minuto".
Em "Resgate", estar sozinho parece condição para um
movimento de despovoamento e repovoamento de um corpo sequioso de
transformação, tendo em vista que se despir e se vestir de Deus
desencadeia, no distanciamento, um aproximar-se ainda mais, um
fundir-se, um comungar com tudo e todos. Uma divinização.
Na poética de Oliani, o sagrado é a experiência extraordinária deste
miscigenar do que é o dito com o que se cala, do comungado com o
sozinho, da vida com a morte, desenhando-se abismo insolúvel de
mistério. Na aliança das palavras, o silêncio é também eco desse
enigma, de um finito que se desvela velando-se e vigorando-nos no
imperativo de viver.
"Como escapar / ao confinamento?". Se compreendemos a certeza da
morte como cerceamento intransponível, primeira e última prisão,
responder à pergunta implica projetar-nos ao título do livro.
Constatada a efemeridade dos dias ("à espera do homem / o inexorável
fim"; "o tempo agride os homens"; "o tempo é bisturi"; "esvai-se o
tempo"; "as horas voam"; "tudo flui / num átimo"; "o tempo não se
rende / a nada que o prenda"; "abocanha os homens"; "o tempo sorve
ruínas"; "o tempo sangra"; "o tempo não tem tempo"), é preciso dizer
sim à vida. A morte perpassa todo o poemário, mas é a alegria e
vontade de viver que engendra o discurso da "fatalidade": "camaleão
fora do ventre / transmudo a cor à revelia // mas a morte não é
daltônica". Admitir e aceitar poeticamente o fim seria,
paradoxalmente, não admiti-lo nem aceitá-lo. Seria "transmudar a cor
à revelia", burlá-lo na "mágica" da linguagem, tornando-nos
infinitos graças ao ínfimo de nossa temporalidade, a esta brevidade
que nos incita a experimentar cada segundo como duradoura travessia:
"na turbulência a descoberta: a vida / tem sete faces" e "ante o
silêncio final / - vida" são versos exemplares desse pensamento
vital e vitalista.
Luiz Otávio Oliani "alerta" que "a morte não é convidada / para
celebração alguma" e "os coveiros nem se importam / em repetir o seu
ofício". Manter-se indiferente, banalizando o destino comum a todo
homem, significaria esquivar-se de seu (e nosso) enigma-raiz,
esvaziando-se de força criadora. Por ser o homem o único animal que
sabe por antecipação da própria morte, está disponível para o
questionar. Diferentemente dos outros seres vivos, sofre nas
dimensões do passado, presente e futuro e pergunta-se pelo sentido
de sua existência. Como nos lembra outro diálogo platônico: "...
aqueles que filosofam, no reto sentido da palavra, se exercitam em
morrer", escreve Cícero na segunda parte do Fédon. O mesmo
poderíamos dizer do poetar, haja vista que "onde o sol inclemente
reverdece / mesmo o poeta // não passa impune frente / à Indesejada
das gentes". Perguntar pela Indesejada, gritá-la, sofrê-la e
vencê-la na procura e conquista de um hoje feliz ("mil desejos / de
beber somente o agora") é deixar-se levar por este - filosófico e
poético - habitar sob e sobre a terra e o céu: "inútil fugir da
hecatombe: / urge viver com ela". Filosofia e poesia - um exercício
de morte. Sócrates e Oliani em ginástica amistosa. Outro nome para
isso: viver. Escrever a vida - o maior exercício. Perpetuá-la -
desafio de um poeta para quem o verso é "o passaporte / para um
amanhã na eternidade". Sua "herança". Vida a ser transmitida a
outrem a cada leitura, época, geração.
Considerando a aproximação amorosa
entre o grego de Atenas e o brasileiro Oliani, alguém ainda
insistiria na falácia de que Platão é contra os poetas? Apesar de
comparecer à República, por exemplo, a poesia está submetida a
outras forças que não à sua. Na pedagogia platônica, o poeta estaria
excluído porque não abarcaria conhecimento sobre o que faz e,
"ilusionista de palavras" a encantar "o picadeiro", apenas imitaria
a realidade, em detrimento dela. Todavia, imitar não é fazer cópia.
O artista não copia a natureza, não a replica. Imitá-la, ouvimos em
Aristóteles, é deixar que novos processos de realização natural se
apossem de nós. A obra-de-arte deve ter as características e a
autonomia, a surpresa e a originalidade de um ser vivo. Imitar a
natureza é, enfim, criar, um modo original de levar à plenitude o
que ela não é capaz de pôr em obra. Toda criação é criação de
realidade. É natureza.
O único diálogo platônico em que a
poesia é o tema regente chama-se Íon. Nele, a despeito das traduções
e interpretações tendenciosas e desgastadas, podemos encontrar um
Sócrates admirado frente à inspiração poética. Se a ironia socrática
leva o rapsodo Íon à aporia e o desqualifica como exegeta e técnico
de seu fazer, o filósofo também é capaz de render-se à poesia ao
falar sobre ela. Ao tentar entendê-la, Sócrates descobre uma maneira
de dizer, por si mesma, poética, que chega a emocionar Íon e
evidenciar, entre ambos, a força epidêmica e impessoal desse agir
entusiasmado. O mestre conclui que poetas são seres bacantes, vates,
abduzidos por algum deus que neles canta uma verdade, ainda que
delas não tenham qualquer conhecimento. Daí a metáfora de "Boemia"
em Oliani, "o prazer bêbado", ébrio, da palavra, da "lua" que "é
verso / de loucos, de putas / e de poetas". Lua que é eroticidade,
desvario e cosmos. Silêncio pulsante - órbita.
Em um dos momentos de apelo social e
existencial, freqüentes no livro, o poeta declara: "... a vida só
faz sentido / quando se reparte o pão". Luiz Otávio Oliani está
certo de que poesia também é alimento. Escrever e publicar
configuram sua forma de "Partilha". De nossa parte, resta-nos
festejar este banquete no qual "a mão estendida / abençoa o trigo"
de uma promissora estréia.
Igor Fagundes: Poeta, jornalista,
ensaísta, mestrando em Poética pela UFRJ e autor dos livros por uma
gênese do horizonte, Sete mil tijolos e uma parede inacabada e
Transversais.
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