Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Luiz Paulo Santana


 

Tudo é poesia?


Oh! Sim, eu me preocupo
com o que vou vestir
com o meu cabelo
e se o rosto está modelar
se estou bonito para meus olhos
para os óculos e os ósculos dos outros e outras
voyeur de mim mesmo.


Nem por isto nego o suor nas axilas
(perfumadas)
não nego o flato nem a cólica
não nego a dor nas cadeiras
não nego o amor, ou o tesão
amoroso, como queiram — ah!,
isso não nego nunca mais —
e toda visceralidade sanguínea e mortal
que me constitui.


Sigo
completamente desorientado
com o que se passa a cada momento:
fulgor mágico da Festa do Rosário em São Gonçalo, Serro, MG
(Graças a Deus, ó meu Deus, dou Graças a Deus, ó meu Deus)
ao transporte dos tambores, rumo ao nirvana místico.
 

 

Ou

Multidão de jovens teletransportados sob música
eletrônica (bate estacas in concert, refere meu fígado),
rumo ao céu tecnológico.


No primeiro movimento o povo inteiro
canta o mesmo fundamento em séculos;
no segundo a maioria jovem canta e dança
os fragmentos descartáveis do presente
sem fundamentos.


Mas, fundamentalmente,
o transe, a celebração.


Eis o mundo
em que mata-se países, freiras e mendigos
descarta-se milhões em máquinas suicidas
e outros tantos zilhoes em pesquisas pela vida
e vagalhões em clones, genes e sucedâneos
enquanto a biomassa é uma reserva pronta
num certo país solar da América Latina
para quando o petróleo acabar.
Antes, o Iraque, ainda há.


Pois tudo isso a mídia trouxe num estalo
o mundo mídia amamentando a arte
(que ainda existe? Ou já mudou
de nome?) de transições e quebras.
O mundo mídia proporciona a extensão
dos vários caos ao caos domesticado
(em aparência) de minha casa.
O mundo mídia é a parte final
— e fatal —
do que se convencionou chamar
                                   ― globalização.


Porque:
quando tiro os olhos das palavras
e da TV
e os ponho no concreto das casas
e árvores da cidade ao sol da tarde
toda essa febre — quase —
              desaparece.


Há um lirismo no ar (antigo)
quando se pára para espiar.
Até a morte fica suave
no velório a que compareci.
Não vi nenhum acidente de trânsito,
mas se ligar a TV....


Mesmo os homens e mulheres sob a tarde,
dessemelhantes nos trajes
nos semblantes variados
nas bolsas sob os sovacos
sacolas a tira-colo
descalços ou desfocados
calçados ou embarcados
nos carros de vidro escuro
não elidem o lirismo que ainda sobra
dos tempos de minha infância.


O que há dentro das cabeças que
retornam para as casas?
O que faz com que exerçam
sua faina alucinada
cada qual sua jornada
mesmo antagônica e contrária
aos humanismos preclaros
dos pastores, dos doutores,
dos sábios e professores
(apesar de tanto dogma
e da pobreza das escolas)?


Os governos dos governados
não sabem filosofia.
Cada qual é seu castelo
cada qual sua porfia.
Cada qual sua cultura
sua lenda e sua história
seu emaranhado torto
de selvageria e glória.


São histórias parecidas
do mesmo tecido e fonte
do mesmo sangue e procela
das mesmas encruzilhadas
dos mesmos crimes de guerra
histórias acontecidas
no mesmo palco de vida
escritos de mesma cela.


Quem sabe se nesse transe acontece
o caldeamento ideal
e ponho todos os nomes
nas máquinas eletrônicas
e ponho todos os santos, os demônios, os pronomes
nesse versículo final
e acabo com essa fome de querer domar o mundo
— quem sabe — para montá-lo
como um cavalo
                      — global?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

Luiz Paulo Santana


 

A noite das coisas


Não há como não perceber
que as panelas
à noite
refletem
a cozinha em movimento.

Que a cozinha
projeta
a circulação das panelas.

Que as lojas
congelam
seu fluxo
de coisas.

Que as fábricas
as máquinas
e os insumos
silenciam
limítrofes
a meta
morfose das coisas
em coisas.

Que os edifícios
os escritórios
as mesas
as gavetas
os papéis
adormecem
sem sentido.

Que as casas
por um momento
se coisificam.

Que as oficinas
lampejam frias
os metais.
Que os livros
lado a lado
perseveram
mudos.

Que os alqueires
os currais
os arados
as enxadas
as colhedeiras
os alambiques
fermentam
solidão.

Que mesmo os ônibus
os caminhões
e as direções
que à noite rondam
rodam sonâmbulos
sob
sacrifícios.

Em cada coisa sonha
à noite
a inércia
das vontades.

O movimento quem o dá são as pessoas.
Coisas apenas são, quando elas são.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

Luiz Paulo Santana


 

O peixe


Sou quem pega na enxada
e cato minhocas
empunho o caniço
e um punhado delas
atravesso a tarde

(grilos salteiam
folhas me roçam)

à caça
de um peixe que nada
no poço.

Meu tato na veia
do caniço
desce no fio
penetra
o imponderável que
já me perpassa.

Do outro lado o peixe
aleatório
(o pescador aleatório?)
se conecta:
o peixe e o pescador
conectados.

Nem ele é manso
nem eu sou fresco
mas o meu senso
é mais anzol e aço
conquanto a minha fome
é peixe mesmo.

Todo cuidado é pouco.
O peixe é belo
eu o respeito
tanto
que já vou comê-lo
e o faço.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

Luiz Paulo Santana


 

Para sempre


Inexplicável o que
permanece
atravessando
a eternidade.


Atravessando
como um rio
perene
um rio como
saudade.


Eternidade do instante
aberto vivo e constante
enquanto largo e distante
o ser que não tem limite.


Qualquer momento
foi agora é sempre
esta manhã de folhas
luz e cores.


Cintilações translúcidas
do rio
sob um segundo a mais
de vento e sol.


De onde vem o vento
este silêncio
esta arapuca?


O cosmo in totum
preenchendo
estas lacunas:


Um pássaro, os pássaros
a fuga.


O amigo, a manhã
a viagem.


A flor, os cabelos
a dúvida.


O segredo, a escolha
o caminho.


O Luar, a visão
as serranias.


A reza, o rumor
a risada.


O rio, a enchente
a coivara.


Os olhos, as estrelas
a noitada.


Olhos alongados
na penumbra
vêem mais do que
podem saber:

Tudo está aqui.
Tudo está lá fora.
Apenas não é mais
poesia agora.


Não mais meus significados
mas aquilo em que
me signifiquei.


Agora sou
insignificante
e tudo o mais
insignificâncias.


Inominadas por mim
que me exonero
e assim me quedo:
as coisas à si mesmas.


E silencio.


Mas como os signos
(o do silêncio,
por exemplo)
persistem atravessando
a eternidade
eu digo:
até que a morte
nos separe.


Para sempre.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

Luiz Paulo Santana


 

Conjecturas


Apenas sei que estou aqui
e esse estar é um trânsito inenarrável
e aqui é um lugar em pleno trânsito


pensando esse momento em que
me vejo a mim pensando


no solo em que pisando não me basto
no solo que flutua enquanto penso


em tudo que transmuta e permanece sendo


que se não vai o homem outra vez
ao mesmo rio
pela segunda vez não vai ao rio
o mesmo homem


ao tempo em que é o mesmo homem
e o mesmo rio
ao tempo em que é o mesmo mundo
e o mesmo cosmos
ao tempo em que é o mesmo fim
e o mesmo infinito.

 

 

 

 

 

19.05.2006