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Marco Aqueiva


 

Retorno do mito


Aceitou a lavagem do contraforte
o implante de mármore e granito em suas encostas
a rede de holofotes desvelando seu olhar espesso
a ampliação dos acessos junto às dores de seu corpo

Teria menos espaço para contorcer-se
mas sabia que a dor há séculos rolava na memória
a suportaria com a impassibilidade da pedra
o que daria aos seus nervos e músculos
o equilíbrio sísmico, e seu orgulho se reagigantaria

Microrrecortes fizeram-se em seu corpo
sua pele oferecia-se como papel de paredes do windows-95
internautas conheciam-se em macroexcursões
– tornou-se um grande site em 3D

Seu fígado foi revirado
porém não se foi além do próprio umbigo

Não poderia continuar aceitando
entre a cerração e a glória esperada
a indiferença

entre o que se ignora e a crescente ignorância
os ossos da indiferença

entre os fios de alta tensão e as parabólicas
o sangue derramado com tanta indiferença

e assim reapareceu a sombra de Prometeu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Marco Aqueiva


 

Cromatografia
 

 

(primeiro)                      via de cores esgarçadas:

                                   sabão e escova

                                   olhos esticados

                                   no varal quarando

 

(depois)                        trânsito entre as fibras das cores :

                                   pensando tanger a luz

                                   olhos regendo

                                   as dobradiças do arco-íris

 

(por fim)                        para acessar o azul do céu

                                   ferrugem soldando luz amarela

 

      : captar o sol estirado

       no    a l a r g a m e n t o    do corpo junto ao trigo

 

                            dourando em viço

 

                                           verde a toda a vista

 

                                            (alma solta

                                               soltos olhos para o viço)


 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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Carlos Herculano Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Marco Aqueiva


 

Uma palavra possível

 

Um copo de prosa

Uma câmara ardente, a viva voz

A cintilação dos olhos

Temperados pela transparência da luz

A abertura dos poros

Aparelhados pelas aerovias do momento

 

Ainda no segundo copo           falar das novas

                                                      para o lado do azul

                                                      ainda que estanque e sem defesa

                                                      contra membrana cinza túrgida desses dias férreos

                                                      e desse continente não se veja

                                                      uma tampa removível

                                                      um istmo, que fosse mesmo algum trilho

 

 No terceiro                      das contemplações e inquietações crescentes

                                           algum velho projeto tão aquém, incompleto carcomido

                                           novo tornando-se atraso mas por princípio resistindo

                                           das gorduras excessivas em relação a um tempo pretérito

                                           dos anos decorridos com valor demonstrativo

                                           indicador de posse presente ou futura

 

 Depois                             sensíveis ouvidos oscilando entre a gravidade e o  riso

                                            mansos e serenos, receptores de um jato das águas
                                                                                                                             
passadas

                                            mesmo quando a língua cheia de demônios

 

 Nesse caso                     pode dar-se o recontágio do espírito

                                            uma reaproximação coronária ao que ambos fomos

                                            um precipitar-se para dentro do subsolo dos afetos

                                             e então toparemos com a fonte verdadeiramente viva


 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Clotilde Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Marco Aqueiva


 

Luz crescente


34 página em branco
33 pontas de luz a leste
32 princípio
31 teu corpo

30 meu escrito
29 teus campos
28 meu fogo

27 manchas de hoje
26 luz desde ontem escrevendo-se
25 páginas e páginas de campinas
24 garatujas, crinas arrelvadas

23 arranque do fogo cavalgando ouro verde
22 crina ao vento, meus músculos involuntariamente
21 seguindo por onde teus olhos fixam
20 estrelas horizonte campos abertos

19 pára-não-pára-pára-não-pára-pára-não-pára
18 isso, não ! aquilo ? não. não ?! não isso. isso ? isso !!!

17 tua luz emergente umedece até meus cascos
16 desengano encilhado, galope que se abre em sonhos
15 visão do paraíso lentamente cavalgada
14 para isso cavalgo-te no meu próprio laço
13 tua luz meu movimento
12 luz sobre meu corpo

11 antes encerrado no vaivém sem pouso
10 que tomando por pasto o horizonte
9 o comprido mundo como pasto
8 azonzado no discurso da rês perdida
7 meus olhos encilhados em teu dorso
6 ronceiro no cercado de teus olhos
5 por onde os teus fixam
4 estrelas horizonte campos abertos

3 atrás deles meus não bem se fixam
2 : preso ao brilho dos teus
1 ao que está sempre um pouco além

... ao último verso, longo: hipnótico ao ser repetido; aberto de infinito
 
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Secchin

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Marco Aqueiva


 

 

Bola

 

i

Presença estranhamente dilatável,

bola, sua natureza

a das formas idealmente aéreas

   a da presença terreamente excêntrica

 

Quando em repouso, sua abrangência

é a do objeto fechado em si mesmo fogo contido

 

                                   nos areiões terra-batida asfalto

                                   à beira de mangues praias gramados

                                   ex-campos de várzea quadras de escolas

                                   pátio das prisões entre-duas-valas

                                   sob viadutos canteiros de obra

                                   margem das margens tão grande é fora

                                   becos favelas qualquer canto é campo

 

Em movimento, seu âmbito

o do espaço em prolongamento chamas em derramamento

líquido

 

ii

 

Em suas constantes aparições

no luminoso e irrepetível traçado

no vôo liso e imponderável

no tranco duro que ora se dá a intervalos

 

Qualquer que seja o campo

um jogo é um discurso irrepetível

 

: mesmo nos estádios inda vacilam

silêncio e explosão diante do imprevisível


 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Raquel Naveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Marco Aqueiva


 

De onde, outra sorte?
 

 

                        Apascentar meu espírito ?

                        Obstáculos logo à frente :

                        Em terra batida, estéril,

                        Pedras duras de engolir.

 

                        Gota a gota cinza em flor :

                        Fruto em cachos por instinto.

                        Nutrir-me com combinados

                        Enriquecidos de ferro ?

 

                        – Faça sua escolha : extratos

                        De êxtase a um real !

                        Vícios nos cantos da boca.

 

                        Ao partir atrás de lírios,

                        Mãos revirando ferrugem

                        Nas ferragens dos sintéticos.


 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Laeticia Jensen Eble

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Marco Aqueiva


 

Auto-retrato aos 36


Olhos de órbita líquida, isolados.
Fios d’água ocultos, riso de onde aflito.
Poça! quer vero o espelho, quer um palco
ao homem mal dotado de heroísmo.

D’alma sem outro vau que este escoadouro,
que praia lhe restaura o chão seguro?
Pés inseguros tal o sumidouro
de corpos mãos, aceno ao mar escuro.

Seres ânsias, opacas onda a onda.
Vazante dos desejos: dom patético.
Voz prolongando-se em seu punho fero.

Homem só, de heroísmo tão em sombra.
Grandeza abdominal, lasso reflexo.
Um autor só, sem praça, penso e séssil!

 

 

 

Culpa

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Ana Peluso