Mário
Cabral
A ÁRVORE EM QUATRO TÊMPORAS
CABRAL, Horta , dia de nossa Senhora da Conceição de 1992
(rescrito em 1999 e 2000)
I. Outono
Uma árvore no Inverno assemelha-se a um texto sem vogais
Embora o nome Dezembro seja aqui confirmado
Por estes troncos descarnados à luz toda seca e gélida
Dir-se-ia Agosto se não.
Ainda Outono, outras árvores estudaram as declinações, não a minha
Pelo menos a do pronome definido –a; -o, de sícómoro, não se
incendeia, não
Não sobe para além do amarelo estaladiço, não incendeia, não
Mas faz lembrar os plátanos de Sintra e longe de casa todas as
lembranças são benvindas.
Varro as folhas caídas enquanto eu próprio repito o rosa rosae
Pequenas hastes embolotadas, umas vogam na superfície do lago
Cor de chá pelas no fundo, poetas aos quais esquecemos o nome.
À medida que a sombra se desfia a casa cresce.
Quando me abaixo para descolar as presas ao chão húmido é meu Pai
que se baixa
E assim a Primavera se anuncia metaforicamente pelo meu corpo —
Verão, promessa de ver.
Vai fechar-se, melhor dito, está a virar-se para dentro, deixa de
falar.
Por causa de Perséfone? De Job? Não, não vais cometer o vício de
pensar, por favor.
Varre, continua a varrer, pois o Outono é um verbo de acção.
II. Inverno
m rv r n nv rn ss m lh –s m t xt s m v g s
mb r n m D z mbr s j q c nf rm d
P r st s tr nc s d sc rn d s l z t d s c g l d
D r-s - g st s n .
n d t n , tr s rv r s st d r m s d cl n ç s, n m nh
P l m n s d pr n m d f n d ; , d s c m r , n s nc nd , n
N s b p r l m d m r l st l d ç , n nc nd , n
M s f z l mbr r s pl t n s d S ntr l ng d c s t d s s l mbr nç s s b
nv nd s.
V rr s f lh s c d s nq nt pr pr r p t r s r s
P q n s h st s mb l t d s, m s v g m n s p rf c d l g
C r d ch p l s n f nd , p t s s q s sq c m s n m .
m d d q s mbr s d sf c s cr sc .
Q nd m b x p r d sc l r s pr s s ch h m d m P q s b x
ss m Pr m v r s n nc m t f r c m nt p l m c rp — V r , pr m ss d v
r.
V f ch r-s , m lh r d t , st v r r-s p r d ntr , d x d f l r.
P r c s d P rs f n ? D J b? N , n v s c m t r v c d p ns r, p r f v
r.
V rr , c nt n v rr r, p s t n m v rb d cç .
III. Primavera
Possível acreditar no milagre da leitura
Não se visse a árvore rebentar por grumos verdes?
É daí que vem a luz, a leveza e a calma dos sábios.
Foi a árvore quem me ensinou a ambivalência dos grumos nos
dicionários, por exemplo.
Daqui retiro outros sentidos a beirar a teoria da Literatura
Talvez Nietzsche em O Livro do Filósofo , como deixei escrito
Em poema da mesma época deste, é dizer Primavera em seu terço.
O tronco ressuscita, é tal e qual Lázaro, impossível não comparar:
Dia após dia a violência do leve sobre o pesado é maior, do
espiritual sobre o inanimado
Despudoradamente rebentar congrega os opostos semânticos.
Abre as mãos, as mãos esticam os dedos e enfeitam as unhas
A voz estridente recomeça a confiança infantina de Deus
Destemido de nós, que fomos crescendo para o escuro.
Ainda recordo mais para trás, quando numa fenda entronei
Nossa Senhora de Fátima em falso jade
Mumificada nesta haste que jamais madeira, se for ouvido o meu
desejo profundo
Ouvi-a eu segredar-me hoje e à distância ultramarina, hoje que é seu
dia, as vogais.
Rebentar, iluminar até que nasçam asas na matéria, asinhas infinitas
registam a aragem suavíssima.
Tudo é, de facto, o nariz o sabe, ferido pela pureza do Éden.
IV. Verão
Cadeira branca. Vimes. A carne está mais cheia e redonda.
O calor destrói as frases mais compridas. Balões de vaidade rebentam
sem ruído.
A sombra das folhas recortada pela luz estremece e canta sem ruído.
Verão. Silenciosamente no Verão. Verão. Verão. Verão. Verão. Verão
mudo.
Com certeza a minha pele e a pele dela se colaram no suor.
Debaixo do véu diáfano da árvore do pronome definido é mais fácil de
aceitar
Que a criança sentada no meu colo seja Mariana, minha sobrinha e
afilhada.
O nome de minha irmã mais nova é o mesmo, mas não a estação do
corpo.
Filha de minha irmã do meio, a amada. Trepava pelo tronco com
destreza e rebeldia.
Também líamos os livros da condessa de Ségur. Infância mitológica.
Atrás da máquina fotográfica está a mais velha, de seu nome Amália.
O pequeno chapéu de palha escorregou para o rosto — ou a mãozita faz
o movimento inverso?
Fecha os olhos para se proteger do sol ou está a dormir?
Noutros álbuns de outras estações, Excalibur numa ocupa o mesmíssimo
lugar que eu criança
Sendo o mesmíssimo lugar o mesmíssimo lugar e as personagens
alucinações
Um menino que se banha de mangueira depois do mar, incrível que
tenha usado o meu nome
Um cão que este menino vai ter no futuro e que não sendo ainda já é
adulto
Noutra Mariana mais à frente, vestida com a mesma brancura da mãe,
para a comunhão solene —
Mas é Verão, a estação das carpas mudas, à sombra dos nenúfares, a
estação. A estação. Verão.
Tornei a pintá-la. À cadeira. Muito antiga. Quase se parte. Há
registo da avó nela.
Quando tiver a minha idade, acreditará que tínhamos a mesma idade
debaixo daquele bordado vivo?
Ou deixaremos de ser compreendidos, nós, os poetas?
Seja como for, aprendi a ver as horas pelas mãos da mãe dela
Num outro mesmo dia de nossa Senhora da Conceição.
FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFprapapa P U M! pepá P U M!
P U M!
Vai a entrar a procissão, aqui, na minha distância e ausência.
Infernal Inverno ilegível sem vogais.
Estará algum indígena aproveitando esta fenda celeste, imprópria
para estrangeiros?
Fora da casa dos ponteiros fora de mim sou mais nos retratos da
árvore que meu Pai plantou
No dia do casamento de meu Pai começaram a rebentar as vogais dos
meus versos.
Uma árvore no Inverno assemelha-se a um texto sem vogais
Assim um poeta longe da terra natal, mesmo que seja mesma a Língua.
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