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Maria de Lourdes Hortas


 

Miragem


Do passado, heras, folhagens
me espreito da aldeia
moura, vagando, encantada
por eiras de lua cheia.
Que as clepsidras noturnas
vertendo águas e ânsias
não diluíram nas pedras
os passos da minha infância.
Toda luz, encantação
de claves, pautas, colcheias
à flor das águas, cantigas
em canto de solidão
como se infanta chorasse
na voz de fontes antigas
por serras do coração.
Por trás do muro, barragem
túnel de rosas, cadeia,
anda a menina, visagem,
lenda que mora na aldeia.

(in Relógio d´Água,1985)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria de Lourdes Hortas


 

Equilíbrio


Abri os braços
para equilibrar-me
na linha imaginária

- Equador.

E tive um braço em cada hemisfério.
E minhas mãos foram cataventos
que retiveram do mundo
o mistério:

náufragos risos
inascíveis rosas
canções sem pauta
queimadas estrelas.
E minhas mãos
foram cataventos
que retiveram, do mundo
o mistério:

entre as ruínas
caminhavam pombas.

(in Aromas da Infância, 1965)

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Miguel Carneiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria de Lourdes Hortas


 

Os autos do processo


Acossada em abismos sem beiras
esfolhada mil ventos errantes
torturada na espera de instantes
invadida por todas as fronteiras.

Demolida desde os campanários
à margem das torrentes
e em câmaras flutuantes
além dos calendários.

Enganada e em jogos malabares
violada nos túneis mais silentes
saqueada de pátrias e ocidentes
estilhaçada pó de cristal nos ares.

por um tropel sem freio
cravada por sabres bivalentes
diluída em passados presentes
alma cortada ao meio.

(in Relógio d'Água, 1985)

 

 

 

Um cronômetro para piscinas

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Rodrigo de Souza Leão

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Maria de Lourdes Hortas


 

Legado


Para amanhã e depois, mais tarde
àqueles que ainda gostem de chuva

para habitar enigmas
labirintos e prodígios

para não deixar fugir o espanto
diante das coisas essenciais

para ouvir
o silêncio de Deus

para não me perder de mim:
escrevo.

(in Fonte de Pássaros, 1999)

 

 

 

Hélio Rola

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Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Maria de Lourdes Hortas


 

Bailia


Bateste-me à porta
Tresloucada amiga:
De onde vens velida?

Bailemos, amiga,
A tua cantiga,
Pelo monte afora.

Bailemos agora
Por vales floridos
Ó chuva perdida.

Brunindo os cajus
E as mangas, bailemos
Lavando as faianças
Das folhas
Dancemos.

Ó chuva benvinda,
Bailemos agora
Por vales, por serras,
Pelo mundo afora.

(in Fonte de Pássaros, 1999)

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Maria de Lourdes Hortas


 

Poema de despedida ao que parte para o mundo


Neste átrio para o mundo viste passar nove luas.
Agora estás pronto e eu te digo adeus porque não poderás voltar.
Aqui tens o teu farnel para viagem.
Nele eu pus tudo, sem nada esquecer:
teus olhos, tuas mãos, teu cérebro,
teus nervos, teu sangue, tua vocação, teus sentimentos,
tuas palavras, teu nome, tua vida inteira,
com atitudes a vestir em cada ocasião.

Aqui tens tua bagagem.
Vai devagar, sozinho, ao leme da tua nave.

De ti eu me despeço:
para este átrio onde nove luas passam silenciosamente
não há caminho de regresso.

(in Fio de Lã, 1979)

**
Não haveria a rosa
se entre as rosas
não existisse a rosa
mais antiga:
essa rosa-raiz
rosa-semente
inevitável rosa
sempre ardente
há milênios se abrindo
e se esfolhando
entre a rosa da aurora
e a do poente.

(s/t, in Dança das Heras,1995)

 

 

 

José Saramago, Nobel

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William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Maria de Lourdes Hortas


 

Canção para reinventar um tempo antigo


Faz–de-conta que o tempo é uma varanda
voltado para um pátio circular:
faz-de-conta que em canto de ciranda
regressamos ao cais de regressar.

Faz-de-conta, nas águas do destino,
um aquário de luas nos espera:
faz-de-conta que um canto repentino
traz de volta uma antiga primavera.

Faz-de-conta que esta contradança
nas varandas do nosso coração
reacende os sóis de antigamente:

Faz-de-conta que os rios da lembrança
reacendem a flama da canção
neste pátio-passado – tão presente.

(in Dança das Heras, 1995)

 

 

 

Ticiano, Salomé

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31/01/2005