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Cláudio Aguiar
Sob o Signo da Fragmentação
Por que os livros têm que seguir um único gênero?
Ou, noutras palavras, por que têm que se restringir
a um dado tema ou forma? Por que não podemos
escrever e ler, ao mesmo tempo, vários gêneros e
diversificadas histórias, sugestões poéticas ou
análises rigorosas
(ensaios?) num só volume?
Essa transgressão me parece ter sido, consciente ou
inconscientemente, buscada por Patricia Tenório em
Grãos, seu mais recente livro. Nele aparecem,
sem nenhuma preocupação de ordenação sistemática de
gênero e de tema ou assunto, contos, crônicas,
poemas e, de permeio, ainda, textos inclassificáveis
que vagueiam entre as dimensões significantes das
palavras à espera tão somente da leitura. Afinal, é
o leitor, em última instância, o melhor e mais
coerente crítico de um dado texto que, por suas
qualidades, pertença ao chamado mundo da arte.
Sugere a autora, através de epígrafe do evangelista
e de sua brevíssima nota explicativa, que seus
textos guardam uma certa correlação entre o “grão de
mostarda” e a misteriosa “casca aprisionadora da
essência”. Essa intrigante dimensão do processo
natural de composição e fragmentação das coisas,
como acontece nos reinos mineral, vegetal e animal,
também existe no das palavras, verdadeiros seres
capazes de armazenarem a potência que os escritores,
diuturnamente, usam nas fainas criativas, mas nem
sempre se dão conta de seu poder engendrador. Daí,
de minha parte, intuir que os grãos, metaforicamente
utilizados nos textos de Patricia Tenório, aludem a
um certo estado de transmutação incessante capaz de
afetar todas as coisas e que nós, pobres mortais,
passageiros provisórios desse mundo inconstante e
edificado sob a fragilidade dos grãos de todos os
gêneros, muitas vezes, deixamos escapar de nossas
mãos ou sentidos.
Não sei o que mais me impressiona nesse processo
mutante da natureza: se a trituração de coisas
extremamente rígidas em grãos, poeira, gases, luzes
etc. ou se a reconstrução desses mesmos elementos em
monumentais corpos graníticos, nebulosos e em luz
sob a forma de relâmpagos que fulminam e clareiam
monumentais distâncias só percorridas por galáxias,
estrelas ou planetas. Os grãos, comparáveis aos
invisíveis comprimentos de ondas luminosas, estão
sempre em movimento. Quer os minerais (argilosos,
siltosos ou pedregulhosos, os formados de carbonato
calcítico ou os chamados esferoidais), quer os
vegetais (as sementes de todas as formas e
tamanhos), não parecem, mas, como os seres vivos,
estão preparados para o fenômeno da adição formadora
de outros corpos e da procriação. Talvez sejam esses
ritmos diacrônicos, vivendo os ciclos da composição
e da decomposição, que fazem com que os grãos
ofereçam o espetáculo silencioso da materialização e
da fragmentação das coisas. Será isso que a autora
de Grãos quer, afinal, sugerir em seu
eclético livro? Que responda o leitor ao concluir
sua leitura.
Essa fragmentação temática, ao lado de uma
proposital indiferença pela unidade de gênero
literário, também, a meu modo de ver, ajuda a
entender melhor o sentido amplo e aglutinador dos
diferentes temas abordados em Grãos. Na
fragmentação ou destruição do todo, gerando as
partes ou os grãos, creio, reside a tentativa de
decifração da autora. Tentativa, desde logo, porque
revelar mistérios não é, no fundamental, o ofício do
artista. Quando muito sugere soluções ou caminhos. O
artista não é um demiurgo, embora deva aproximar-se
do mágico, aquele capaz de criar um universo
singular e de nos convencer que de fato existe um
outro reino: o da ilusão.
Entre as diversas facetas misteriosas dos processos
transformativos da natureza, repito, não consigo
dizer qual deles seja o mais espetacular: se a
invisível força que destrói ou tritura de forma
incessante o mais sólido material em grãos de areia
ou poeira; se o enigmático poder germinativo do grão
vegetal, que conserva imaculada a teia de traços
genéticos capaz de dar origem a mais tenra e
diminuta planta, ou a mais dura e gigantesca árvore.
Assim, o que mais se destaca neste estranho livro de
Patricia Tenório é o emprego de uma linguagem
aparentemente simples, transparente como a água que
bebemos, a conviver num contexto de prosa e poesia.
As tramas e os enredos sutilmente tecidos mal
aparecem. No entanto, quando emergem à superfície de
nossa mente, logo se esboroam numa teia de
sugestões, que falam mais pelo silêncio meditativo
que pela força nua do poder da construção verbal.
Grãos não sugere apenas a força misteriosa das
palavras, mas também a possibilidade de germinar em
nosso íntimo novos seres, assim como ocorre com as
sementes que, guardadas sob o signo da
multiplicação, frutificam.
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Carmen Lúcia Dantas
As Joaninhas Não
Mentem
Esta Casa, celeiro
da mais nobre tradição da cultura alagoana, dá provas da amplitude
de seu horizonte literário, da sua acolhida à diversidade estética,
quando, numa noite como esta acende suas luzes ao novo e brinda uma
jovem escritora de entonação contemporânea, bem afastada dos cânones
convencionais da estética acadêmica.
Mas, apesar do
distanciamento entre a linguagem de Patricia e os ecos que esta Casa
preserva, há entre eles, um laço de proximidades; desses laços de
fitas de cores difíceis de serem combinadas. Difíceis, mas
possíveis, através dos vieses que a arte literária propicia na
enorme extensão de seu alcance.
Em
As Joaninhas Não Mentem, a
fantasia possibilita a revelação de um mundo feito de intuições,
gerado pela energia da sensibilidade que se contrapõe à sisudez da
lógica e ao imediatismo das vanguardas. É uma outra frente de
compreensão e de construção de um fazer artístico de abordagem
atual, sem perder de vista as referências de raiz. E por falar em
elo entre o ontem e o hoje, lembro o poeta Ledo Ivo quando declarou:
serei, mergulhado no passado, cada
vez mais moderno e mais antigo.
No texto de
Patricia, passado e presente não se estranham, dialogam, se entendem
na maior camaradagem, atrelados um ao outro por corajoso percurso de
retorno no avanço que prenuncia o despertar das auroras.
Com o título de
As Joaninhas Não Mentem,
que, ao primeiro olhar pode parecer dirigido a um público
infanto-juvenil, Patricia surpreende seus leitores com um livro de
temática atraente, leve e livre, lírica e ousada, recheada de
imagens, de presenças atemporais que dimensionam seus vôos criativos
e a sua capacidade de brincar, responsavelmente, com as palavras.
Em toda a
narrativa, a autora camufla trilhas e oferece encruzilhadas,
desorganiza fatos e ordena sonhos, desconstrói certezas e constrói
enigmas levando o leitor a um exercício provocativo de descobertas.
O livro tem a estrutura formal dos contos de fadas, com direito a
castelos encantados e torres de marfim, cavalos alados e borboletas
amarelas.
Tanto pelos
bosques floridos de insistentes girassóis, como pelos caminhos
tortuosos de espinhos afiados, transitam imperatrizes, Diana
Caçadora, Teresa: a Grande Mãe, Ariana: a deusa do Amor Perfeito,
reis poderosos, Átila: o Príncipe Encantado, pajens, ninfetas e toda
a corte que habita o reino divinizado da fantasia.
Não sei se por
propósito ou por coincidência, o certo é que a escolha do 8 de
março, Dia Internacional da Mulher, para esta noite de autógrafos é
da maior propriedade, uma vez que a temática de
As Joaninhas Não Mentem se
ajustam com precisão aos festejos do dia de hoje. As personagens
femininas, envoltas pela aura da sabedoria e do conhecimento,
dominam a trama do enredo, enobrecidas pelos atributos que lhes são
agregados: coragem afetiva e segredos preservados.
Ariana, personagem
central, é a figura da mulher predestinada a cumprir missão, retendo
na memória secular de sua estirpe feminina, a trajetória da
conquista do Amor, busca incessante, ainda que imaginária.
A esperança do
encontro com o Príncipe do Amor Perfeito, metáfora do
auto-conhecimento e do Amor a si própria, é o núcleo aglutinador
capaz de transformar a partir de um mecanismo sublimatório, as
perdas e os estigmas em luta libertadora. Patricia mostra de forma
tão sedutora esse percurso, com elementos tão simples e líricos, que
o leitor passa a refletir sobre a plenitude do Amor Perfeito com uma
enorme vontade de conquistá-lo.
Embora seja um
livro de apenas 90 e poucas páginas, divididas em 7 capítulos, sua
leitura requer muita atenção por não se tratar de um romance
factual, mas empírico. Pelos fios da narrativa, a autora deixa
aflorar os devaneios em uma doce concepção de mundo, onde a razão
perde a razão e a ilusão brilha intensa com o tocar dos clarins
anunciando as verdades da alma. Tirar partido dessas paisagens
interiores é o forte da autora em todos os seus escritos. No caso de
As Joaninhas, elabora suas
personagens no pilar de sustentação que dá sentido à vida: o Amor,
sob todas as formas de amar, mas, sobretudo, a Ilusão do Amor.
Porque, como disse Virgínia Woolf na lucidez de sua poética:
A Ilusão é a mais necessária das
verdades.
Seu estilo é
marcado por uma literariedade contemporânea que a faz ultrapassar as
fronteiras regionais e aceitar os desafios do novo, articulando
vivências psíquicas a criações estéticas. Seu primeiro trabalho veio
a público no livro Contos de
Oficina, organizado pelo escritor Raimundo Carreiro. Também
escreve crônicas, algumas publicadas no Caderno Cultural da
Gazeta de Alagoas. Em 2005,
recebeu menção honrosa na premiação literária Cidade do Recife, com
o livro O Major – Eterno é o
Espírito,ficção ancorada em dados biográficos do seu avô
paterno, o Major José Tenório.
Ano passado,
lançou As Joaninhas Não Mentem
na Livraria Cultura do Recife e fez, na PUC do Rio Grande do
Sul o Curso Assis Brasil. Voou para a França e, na conceituada
Universidade Sorbonne, em Paris, aprimorou seus estudos nas áreas de
Literatura e Artes. Tem no prelo uma coletânea de textos produzidos
de janeiro de 2006 a janeiro de 2007, que recebeu o nome de
Grãos. Ainda em processo
criativo tem o livro O Véu de Ísis
que reúne textos intimistas a que Patricia, com muita propriedade,
chama de pulsações, por serem criados no impulso emocional das
vibrações interiores, dos estados d´alma.
Como podemos ver,
Patricia está em plena efervescência de sua produção e levando a
literatura cada vez mais a sério, estudando, escrevendo e lendo.
Lendo muito e lendo o melhor: os clássicos, atuais em todos os
tempos, e os contemporâneos que passam pelo seu crivo já seletivo.
Mas, o que admiro
particularmente em Patricia, como literata e como ser humano, é a
sua sã teimosia em acreditar em um mundo ladrilhado de estrelas,
cujo desenvolvimento consiste no poder que germina da palavra
poética. (Eu também teimo, Patricia, em acreditar e em ouvir
estrelas).
Caminhando por
este chão poetizado, a nossa querida Patricia, em meio a dicotomia
Vida/Arte, dissipa as arestas da realidade fibrosa e caminha para
dentro da sua própria História, buscando a Paz dos Bem-Aventurados.
[Março 2007]
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Raimundo Carrero
Biografia,
Literatura e História
Será mesmo a
biografia uma manifestação rigorosamente literária? Há divergências
incríveis em torno do assunto, até porque quando se trata de criação
– mesmo fiel aos fatos o autor precisa criar silêncios e abismos
estratégicos, por exemplo -, os problemas tendem a se tornar ainda
mais polêmicos. No terreno da classificação rigorosa, pode-se dizer
que a biografia pertence ao campo da Historiografia.
Mesmo assim
admite-se que o escritor pode interferir muito nas ações e na
psicologia do biografado, o que o levaria a escrever uma biografia
romanceada. Em geral, toda biografia interessa à literatura porque o
autor inevitavelmente participa da montagem do texto: ora dando
maior ou menor interesse a um acontecimento, ora distribuindo-o de
maneira pessoal, ora escolhendo situações e, mais do que situações,
palavras.
Isto é montagem -
e montagem pertence ao campo da criação literária.
É como acontece
aqui com Patricia Tenório que, ao mesmo tempo em que é fiel ao
Major, recria-o, reinventa-o. E não só aos olhos de neta, mas
sobretudo aos olhos de uma escritora que conhece os segredos da
ficção. Não resta dúvida que muitas vezes deixa-se levar pelo
documento – atributo do Movimento Regionalista, criado por Gilberto
Freyre, em 1926. No entanto, é na maioria das vezes uma criadora.
Inventora.
Não se deve
esquecer a solução literária – eminentemente literária – que Thomas
Mann encontrou para escrever o “Doutor Fausto”. Inventou um
personagem que é o biógrafo de Adrian Leverkühn e se sentiu pleno de
forças para escrever a sua obra. “Sua” no sentido mais ambíguo
possível – “sua” para Thomas Mann, e “sua” para o biógrafo Zeitblom.
Um verdadeiro achado literário porque o foco narrativo é a distante
terceira pessoa e o ponto de vista circula entre Thomas Mann e
Zeitblom.
Assim, Patricia
Tenório exercita, também, suas qualidades de inventora e de
biógrafa, no sentido que lhe dá a História. Ou seja, pratica a
história e a História. Há quem chame ficção de estória – o que não
tem o menor sentido, História com H ou não tem a mesma força, até
porque a História também tem seus inventores. O ponto de vista, mais
uma vez, é que vai decidir.
Portanto, a
história do Major não é só romanceada, feito se diz, mas inventada
sem que aconteça nenhuma traição ao real. Os fatos são
historicamente reais, verdadeiros, sérios. A montagem, no entanto,
pertence ao campo da criação, onde a autora circula com facilidade -
é preciso não esquecer. Assim, os personagens surgem cercados de
vida documental e inventiva, que se registre nenhum tipo de traição.
Assim encontraremos um Major esperto, lutador, valente, que podemos
chamar também de um Dom Quixote nordestino e alagoano.
Um Major ainda
mais vivo porque nascido da admiração que se derrama num texto que
foi sendo elaborado ao longo de meses de trabalho, com as naturais
decepções e, ainda mais, com as naturais alegrias. No diálogo, por
exemplo, procurou-se retirar, o mais possível, as intervenções do
autor, para que a fala transcorresse sem atropelos. Personagem fala
e autor se ausenta. Assim como acontece no melhor teatro e, é claro,
no melhor cinema.
Patricia Tenório
procurou usar o melhor da técnica romanesca, que é o melhor atributo
do narrador contemporâneo. E uniu, assim, fatos reais à invenção,
recorrendo ao conhecimento da montagem literária. Ou seja,
ressaltando a importância da literatura sem desconhecer a força da
História. [Novembro/2005]
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