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Fernando Peres


 

3x4


Carrego idade bastante
para ver as rugas, abismos de
espelhos,
que nascem no rosto e mãos.
Reflexo que me interroga
matutinamente;
olhar patético sobre a vida,
este resto de ampulheta que
não sei.
Mãos que me retemperam e
falam,
mesmos envelhecidas
com as coisas do mundo,
obedientes aos desejos do corpo.
Tenho idade bastante
para ver nos cabelos brancos
o pedágio do tempo.
A sabatina especular
sabe a crueza dos desvelamentos:
rugas e cabelos
sem enganos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fernando Peres


 

Musa


A primavera vem, as cores
chegam
nos odores e pétalas, curiosas
as mãos e as estipes nos
canteiros
afagam a terra e brota a flor de
abóbora.

A primavera veio, e ainda as
Graças
de Botticelli em dança etérea,
que este pólen caindo dos
vestidos
faz nascer Vênus e um véu
translúdico.

A primavera vai, e bate o estio
no cabelo e na pele de Urania,
musa da astronomia e de
um poeta
que é sagitário e Oxóssi
duplamente.

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Luciano Maia

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Fernando Peres


 

Caixa nº 4


Uma coisa de dentro,
não uma raiz da terra
ou a gema de um ovo,
um pânico e uma drágea,
uma fenda de que não sei o
quê,
grito que não posso soltar,
levam-me a dizer:
hoje estou péssimo!

Uma coisa de fora,
não a turbina dos aviões,
as porcelanas de um museu,
uma impossibilidade e um
abandono,
escada que não sei subir,
um pão que rejeito comer,
levam-me a dizer:
hoje estou péssimo!

 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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R Roldan-Roldan

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fernando Peres


 

Angst


Caçar a angústia,
como um bicho na neblina.
Ágil e pardacento, aos saltos,
o pequeno animal
esgueira-se no mato interior
de toda inquietação.
Paralisado, este olhar
recai nas mãos imóveis,
trêmulas quase,
do caçador.
Esta sombra besta
tão esguia,
tem as tramas do inferno:
uma fragilidade angelical
de quase lebre,
e dentes agudos
fincados na vida.
O caçador não desiste,
mede a pontaria
e lança o dardo:
dor corredeira no ar
ao ponto solerte,
que confunde-se com a relva.
Manhã de sol!
E o caçador baqueia,
carregando o malefício
de perviver angustiado.


 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Secchin

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fernando Peres


 

Bile


Não há que esperar,
os vitrais da aurora.
Tudo é sideração no crespúsculo
indesejado, desde sempre,
haja inverno ou não.
A chuva rebate:
dó na música solene.
É o tombeau de Sainte-Colombe
anunciando o que virá,
neste final grotesco de milênio.
Barroca a partitura resvala
na mesa crua, esconde
uma melancolia de desacerto,
de expectativas,
de um desejo entranhado,
de uma beleza inatingível.
Um poeta já disse: “Cantar é ser”.
Cantamos e somos:
nesta ópera bufa,
neste mafuá de gentes e fomes,
nos grotões da madrugada.


 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Clotilde Tavares

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

Fernando Peres


 

Pasquim


Perdemos a tolerância
e o gesto da conversa sem reclamos.
Hoje é tempo de poder.
- Eu disse poder! -
De convidar outro
(não o imigo)
para um banquete,
bem diverso das musas;
um vero regabofe,
onde a comida míngua,
o lucro abunda,
e a divisão é nódoa,
no cós da calça.
Já não queremos diferença
entre discursos e alaridos,
saudações e assuadas:
teremos todos submissos
submersos
subhumanos
subpoetas,
vagabundos.
Assim conviveremos em paz,
em absoluta rigidez
de ordem - unida,
em absoluta concordância,
anêmica.
Discursos e saudações
vazios de esperança.
Alaridos e assuadas,
engolfados boca abaixo.


 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Batista de Lima

 

 

17/05/2005