Sérgio Rebouças
II - INTIMIDADE
Não sei como contar. Eu voltava da
escola, um pássaro ensaiava um canto feio de cima da figueira do
jardim, a vizinha estendia roupas num varal murmurando para si mesma
os afazeres e os aborrecimentos do dia. De repente, eu estava diante
de uma porta, e atrás dessa porta havia o meu pai, pronto para mais
uma indecência. Depois disso, minhas unhas sarapintadas de um
vermelho muito vivo. Meu irmão espreitava de longe, embotado. Pensei
que ele fosse avançar sobre mim feito um cão raivoso, cravando-me
dentes afiados na pele lívida, e recuei dois passos. Minha mãe só à
noite deu conta, porque dali a poucos instantes papai estava
novamente sentado – não sei como isso foi feito –, e assim
permaneceu até o fim de todos os noticiários, quando então a TV foi
desligada, o chamado de mamãe, o silêncio de papai, o olhar
assustado do meu irmão, um dedo fino apontado para mim, o grito que
mamãe não fez porque estava sem voz.
Eu vinha da escola. Havia feito um
amor extenuante, ele pesava sobre mim, um corpo suado sobre o meu,
que também transpirava muito, meus cabelos longos despejados nas
bordas da mesa da sala de aula que encontramos vazia, meus seios
arfantes, lembro que gemi bastante. Ele suspirava muito, e acho que
me disse duas ou três palavras atropeladas, porque não conteve o
impulso de ficar me mordendo as orelhas, transido de volúpia,
passando-me sua língua quente pelos ouvidos. Eu o puxava para mim,
batendo-lhe nas costas, para que viesse com maior intensidade a cada
vez. Ele era intenso. Prendi-o entre as pernas, e veio com ainda
maior facilidade. Estávamos deliciosamente entorpecidos pelo calor.
A claridade que se expandia na sala expunha meu corpo nu para ele, o
dele para mim, meus pêlos abundantes, os dele ainda mais, ao final
restávamos exaustos, uma nudez dourada e brilhante, as roupas
atiradas pelos cantos, minha calcinha molhada desde as preliminares,
que ele gostava de cheirar antes e depois do amor. Suas mãos
acalentavam-me o corpo extenuado, até que, advertidos por passos e
vozes que se aproximavam, pusemos rapidamente as vestes, ele ainda
se disse excitado ao me ver em rendas íntimas – as rendas com que
mamãe me mimava desde sempre –, que me salientavam os seios firmes,
bem ajustados, e a graciosidade do ventre e das curvas. Sorri em
resposta, retribuí o elogio espremendo-lhe um beijo nos lábios ainda
úmidos apesar do calor, e ele me trouxe para si instalando-me suas
mãos cálidas nas nádegas, com dedos ansiosos fustigando minhas
sinuosidades, desfilando por dentro, levantando a calcinha sem
arrancá-la, arrepiei-me toda ao sentir aqueles dedos sedosos. Quando
bateram à porta estávamos devidamente vestidos. Uma turma entrou sem
se dar conta do amor depositado na mesa da sala; uma ou outra menina
olhava-nos com desconfiança.
Eu vinha da escola, e de lá saí muito
satisfeita. Acendi um cigarro ao deixar a sala e o apaguei a cem
metros de casa, antes de deparar com o pássaro que cantava
horrivelmente e com a vizinha infeliz falando sozinha. Parei na
entrada do jardim e fiquei contemplando o passar de carros e
motocicletas.
Tomei emprestada uma caneta a Luciana,
que também me passou alguns exercícios de uma aula perdida. Lu tinha
pais maravilhosos. Acredito até que o pai dela não tinha o hábito de
tocá-la. Percebi por seu rosto alinhado de insinuações de
ingenuidade, e pelo ar de certa irreverência que Lu mantinha diante
dele, que no entanto chegou a espiar-me algumas vezes, notoriamente
quando eu deixava os lábios semi-cerrados e o olhar levemente caído
sobre um decote mais ousado, que eu usava uma vez por semana. Não
passou muito daí. Apenas uma mão que suavemente me caiu uma vez num
ombro, esperando uma reação que não esbocei, e que então foi logo
levantada. Definitivamente não tinha aspecto de quem tivesse tocado
a filha muitas vezes. Talvez o irmão de Lu o tivesse feito com mais
freqüência. Vicejava ares de malícia que certamente não vinham do
pai, antes da mãe, sempre alvissareira. Lu, ao contrário de Cris,
era esbelta e graciosa, mas não tinha namorado. Devia ser mesmo o
irmão quem a tocasse. Cris, por sua vez, o pai, eu concluía sempre.
O meu fora mais adiante. Rendeu-me
duas vezes no quarto de hóspedes, onde eu gostava de ler, e numa
delas, à luz do dia, com o meu corpo todo exposto ao sol e a ele,
forjou comigo os frêmitos de desejo que havia muito eu adivinhara em
seus olhos. Entreguei-me em silêncio, assustada – meus seios
morenos, sempre ofegantes, punham nele uns olhos vivamente
arregalados – mas reverente, meu atrevimento jamais chegou para ele.
Não me disse nada. Surgiu silencioso, exibindo-me seu semblante
austero, e quando me pôs uma mão na cintura, adivinhei que aquele
primeiro carinho era apenas o início. Atravessou-me o busto com mãos
calosas e precipitou-as de uma vez no meu ventre, momento em que sua
língua já me umedecia o pescoço e os ombros nus. Levantei-me
bruscamente e o repeli com acanho, o sutiã desajeitado mostrando um
seio. Ele me endereçou um olhar severo. Pontilhou todas as suas
intenções num mexer de olhos e escanchou-as baixando suas calças
numa selvageria que nunca me surpreenderia nele, logo me exibiu seu
membro rígido e avermelhado, que ele quis me pôr na boca e que eu
rejeitei com asco. Foi transigente à minha repulsa. Tomou meus
braços trêmulos e lançou-me na escrivaninha, abrindo-me as pernas e
atirando-se dentro de mim feito um touro enfurecido. Eu só ouvia
então o barulho dos móveis se mexendo, meus braços e pernas
alarmando os objetos, o calor incendiando meus lábios, o rosnar
embrutecido do meu pai, o meu gemido quieto, nenhuma palavra.
Lu pelo irmão, Cris pelo pai. Cris até
me disse, uma vez. Lu era mais discreta; não o irmão, que tinha o
hábito de nos espiar tomando banho – lembro de lhe ter feito uma
graça certa vez –, quando eu saía me sussurrava uma indecência,
chegou a enviar-me um escrito, que eu rasguei sem ler. Lu me dizia
que era assanhado, e eu achava que era muito mais que isso.
Deixou-me em paz quando comecei a namorar; não à irmã, certamente,
que era ainda mais formosa do que eu. Um dia em que cruzei a porta
de entrada da casa de Lu, ele estava em ebulição, cheirando os dedos
com avidez. Lu, ao me ver, corou.
Ao terminar, ele me encarou sério e
desconfiado, temendo talvez que eu contasse algo a mamãe. Não
contei. Ele mesmo, alvoroçado, me pôs as roupas, amarrando meu sutiã
de renda e ajudando-me com o vestido, e de saída ordenou com
rispidez que eu tornasse a estudar. Assim o fiz. Escrevi duas linhas
no diário, apanhei o livro de filosofia que alcançara o chão e de
relance vi o rosto de meu irmão quebrado pelas persianas da janela,
os olhos muito abertos, percebi sua sombra enorme projetando-se na
parede. Talvez tivesse visto. Atrevido.
Ele tinha o hálito quente, cálido.
Beliscava-me as nádegas com suavidade, eu me eriçava toda,
buscando-o no banho de claridade que nos alentava sobre a mesa. Ele
vinha robusto, vigoroso, mas era delicado. Abrimos mão do ventilador
da sala para sentir o corpo arder e dourar, ele se inquietava ao ver
meu corpo moreno de donzela brilhar de suor, os bicos dos meus seios
se enrijecendo, meus cabelos colando na pele, logo despejados nas
bordas da mesa, minha boca sedenta. Apresentou-me seu membro rígido
e o quis meter-me na boca. Resisti. Ele insistiu. Repeli-o
novamente, e como ele ainda insistisse, agarrei-lhe o membro com uma
mão, enverguei-me e o lambi de leve. Levantei rapidamente e me
debrucei na mesa, chamando-o para mim. Veio alucinado. E foi meu. E
fui dele. Eu vinha da escola. Lu pelo irmão, Cris pelo pai. Então vi
um pássaro a cantar horrivelmente e a vizinha a murmurar para si
mesma os afazeres e as inquietações do dia. Eu acabara de encontrar
o meu amante. Restei na entrada do jardim, a contemplar os carros e
as motocicletas. Então o pássaro voou, sumindo no distante, a
vizinha foi arrebatada de sua letargia, ouvi uma voz vinda de
dentro, dirigi-me até à porta e entrei. Ele estava estendido na
poltrona. Ao me ouvir entrar, abriu os olhos, empertigou-se na
poltrona e ficou de pé. O pai de Lu era delicado e ingênuo;
olhava-me algumas vezes e numa delas descansou-me no ombro sua mão
macia, mas daí não passou. Eu encontrara o meu amante. Depois disso,
só minhas unhas sarapintadas de um vermelho vivo. Vi meu irmão, um
cão raivoso, e recuei dois passos. Minha mãe só à noite deu conta,
ao fim de todos os noticiários, o chamado de mamãe, o silêncio de
papai, um grito sem voz, um dedo fino apontado para mim, um cão
raivoso, minhas mãos vermelhas, o resto não sei contar. |