Jornal do Conto

Sérgio Rebouças

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Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conto:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

Albrecht Dürer, Germany, Study of praying hands

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tércia Montenegro

 

 


Quem conhece Sérgio Rebouças, tão jovem, não imagina a densidade de seu poder de escrita. Seu estilo se constrói através de uma prosa clássica pela extrema correção lingüística, em contos ondeTércia Montenegro prepondera o naturalismo. O trágico e o escatológico convivem numa atmosfera de solidão e medo — ritmo comum à maioria das histórias.

O título deste volume aponta uma qualidade perceptível nos textos de Rebouças — esta canção silenciosa é, na maioria das vezes, a melodia de angústia de personagens entregues a situações de dor ou desespero. Com descrições que revelam um grande talento de observador, as narrações têm seu ponto alto no manejo do clímax.

Há, ainda, algumas histórias que se destacam do conjunto, como é o caso da primeira, Facheada. O inesquecível de suas cenas tem, certamente, boa dose da alquimia dos bons prosadores, na melhor herança de Machado de Assis e Simões Lopes Neto." (Tércia Montenegro, Mestra em Literatura Brasileira, autora dos livros de Contos O Vendedor de Judas, Linha Férrea, O Resto do Teu Corpo no Aquário e outros.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

Sérgio Rebouças

 

MADRUGADA NO CAIS

 

As duas se encontraram ao entardecer, à beira do cais, olhos bem abertos a esperar a partida dos que vinham e a vinda dos que partiam, uns para a cidade nostálgica, outros para o além-mar, imensidão espirituosa e intangível.

Helena pressionava a aliança desbotada, ocupando os dedos indecisos, no momento em que lhe fugiram da boca as palavras amargas da despedida e se viu em desconforto perante o marido mudo. Sabrina entregava ao vento frio as madeixas lustrosas e mordia os lábios trêmulos, guardando nas mãos o jantar do homem que cochilava ao seu lado. Foi quando despontou no horizonte o navio, e o silêncio foi quebrado por grande rebuliço.

Descortinaram-se as últimas lágrimas, seguiram-se beijos frouxos, e foi nessa atmosfera de alívio e tristeza que se viram pela primeira vez. Olharam-se intensamente, apartando-se dos homens que partiam para o desconhecido. E ali, à beira do cais, firmaram posto, para cumprir o dever da mulher, esperar que o navio desaparecesse no mar, e observaram nas primeiras horas o encontro dos recém-chegados com os familiares.

Findaram então sozinhas no porto, uma do lado da outra. No meio da noite, quando Sabrina, após muita hesitação, ousou fitar a desconhecida, deu com os olhos vivos de Helena a contemplarem-na, inocentes e penetrantes. Sabrina desviou o rosto rapidamente. Alguns segundos depois, tornou a olhar. Lá estavam os olhinhos negros, imperturbáveis.

— Há quanto tempo você me olha? – indagou Sabrina, tentando imprimir austeridade à voz aguda.

— Desde que o navio partiu.

— E por que você me olha? – inquietou-se.

— Pra passar o tempo. Estava esperando que você também me olhasse, já que sabe que estou aqui desde a partida do navio.

Sabrina riu-se:

— Quer dizer que preciso olhar pra você, só porque estou a seu lado, ou porque sei que está aí?

— Não precisa – apressou-se Helena; e depois, maliciosa:

— Mas sei que queria, desde sempre.

Sabrina calou-se. Assaltou-lhe fulminante o efeito das palavras que escaparam em contralto dos lábios da menina atrevida. O silêncio repentino, uma irritação. A insistência juvenil, uma impertinência. O movimento furtivo, um rato, um pavor. O macio subir e descer das águas, um suspiro. Esquecera o marido.

Helena inclinou-se com suavidade, aproximando-se da outra, que restou imóvel. Voltou então a tamborilar os dedos delgados sobre a aliançazinha de nada, que a mãe guardara por muitos anos e lhe dera no dia de seu casamento. A outra era até mais novinha, a que fora dada ao marido. Mas gostava da jóia, feita precisamente para seu dedo magro e pequeno. Lembrou-se das núpcias e dos dias que se seguiram. Olhou para o mar e avistou o navio quase se perdendo no distante. Voltaram os olhinhos de amêndoa à face pálida de Sabrina. Esqueceu então o marido. 

As nuvens fechavam-se, promessa de chuva. A luz escasseava, o mar sugeria um sobressalto, os mosquitos atinavam insolentes em torno dos faróis preguiçosos. Helena deitou-se de bruços, sentindo o frio do chão no corpinho descansado. Regia com o dedo indicador o movimento dos pernilongos que sondavam seu corpo suculento. Sabrina interrompeu a imobilidade para se agasalhar do frio repentino. Tentou deslocar o rosto na direção de Helena, mas não conseguiu.

— Você gosta do seu marido? – indagou Helena, recordando o esposo e gesticulando confusamente com as mãos.

— Como? – perguntou Sabrina, assustada.

— Perguntei se gosta do seu marido.

— Sim, eu gosto do meu marido. Que pergunta! – declarou Sabrina, com menos convicção do que queria, sem ter certeza de se realmente devia responder a tal pergunta.

— Gosto também do meu marido. No início não. Ele me assustava. Casei-me porque mamãe disse que era um homem bom. Mas aí me acostumei e hoje posso dizer que gosto dele, embora não o ame, de modo algum.

— Gosta dele, mas não o ama? – perguntou Sabrina, tentando deixar evidente a contradição do discurso. 

— É. Vá lá, tenho algum afeto por ele... aprendeu a me tratar bem, porque gostava do modo como eu fazia... meus deveres, você sabe... boa mulher é a que cumpre seus deveres.

Os deveres. Ares de malícia contaminando a respiração. Sabrina não queria mais falar. Para demonstrar claramente isso, desviou bruscamente o rosto do olhar de Helena, que recostou a face morena no chão gélido do cais. Alguns instantes de silêncio, e não se via mais o navio no mar. Findara o tempo de vigília, liberavam-se as donzelas da obrigação. Sabrina arrastou o olhar para a entrada do cais e não viu ninguém. Helena quase dormia ao lado. Sabrina cerrou os olhos, refugiou-se vacilante num velho mastro que pendia de um pequeno barco abandonado à beira do mar. Helena quase dormia... Sabrina perdia-se em divagações. Assim avançou a noite. 

Então os insetos, os ratos, o velho porto, a cidade nua, assistiram indolentes ao pulo de Helena no mar cristalino e ao salto de Sabrina que se seguiu, e como as duas se encontraram febris no frio das águas, e como se entrelaçaram suplicantes, e como sucumbiram felizes, plenas, viscerais, bem acolhidas pelo marzinho manso e fundo...

 

   
 
Culpa

 

Ana Guimarães

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

Sérgio Rebouças

 

 


II - INTIMIDADE

 

Não sei como contar. Eu voltava da escola, um pássaro ensaiava um canto feio de cima da figueira do jardim, a vizinha estendia roupas num varal murmurando para si mesma os afazeres e os aborrecimentos do dia. De repente, eu estava diante de uma porta, e atrás dessa porta havia o meu pai, pronto para mais uma indecência. Depois disso, minhas unhas sarapintadas de um vermelho muito vivo. Meu irmão espreitava de longe, embotado. Pensei que ele fosse avançar sobre mim feito um cão raivoso, cravando-me dentes afiados na pele lívida, e recuei dois passos. Minha mãe só à noite deu conta, porque dali a poucos instantes papai estava novamente sentado – não sei como isso foi feito –, e assim permaneceu até o fim de todos os noticiários, quando então a TV foi desligada, o chamado de mamãe, o silêncio de papai, o olhar assustado do meu irmão, um dedo fino apontado para mim, o grito que mamãe não fez porque estava sem voz. 

Eu vinha da escola. Havia feito um amor extenuante, ele pesava sobre mim, um corpo suado sobre o meu, que também transpirava muito, meus cabelos longos despejados nas bordas da mesa da sala de aula que encontramos vazia, meus seios arfantes, lembro que gemi bastante. Ele suspirava muito, e acho que me disse duas ou três palavras atropeladas, porque não conteve o impulso de ficar me mordendo as orelhas, transido de volúpia, passando-me sua língua quente pelos ouvidos. Eu o puxava para mim, batendo-lhe nas costas, para que viesse com maior intensidade a cada vez. Ele era intenso. Prendi-o entre as pernas, e veio com ainda maior facilidade. Estávamos deliciosamente entorpecidos pelo calor. A claridade que se expandia na sala expunha meu corpo nu para ele, o dele para mim, meus pêlos abundantes, os dele ainda mais, ao final restávamos exaustos, uma nudez dourada e brilhante, as roupas atiradas pelos cantos, minha calcinha molhada desde as preliminares, que ele gostava de cheirar antes e depois do amor. Suas mãos acalentavam-me o corpo extenuado, até que, advertidos por passos e vozes que se aproximavam, pusemos rapidamente as vestes, ele ainda se disse excitado ao me ver em rendas íntimas – as rendas com que mamãe me mimava desde sempre –, que me salientavam os seios firmes, bem ajustados, e a graciosidade do ventre e das curvas. Sorri em resposta, retribuí o elogio espremendo-lhe um beijo nos lábios ainda úmidos apesar do calor, e ele me trouxe para si instalando-me suas mãos cálidas nas nádegas, com dedos ansiosos fustigando minhas sinuosidades, desfilando por dentro, levantando a calcinha sem arrancá-la, arrepiei-me toda ao sentir aqueles dedos sedosos. Quando bateram à porta estávamos devidamente vestidos. Uma turma entrou sem se dar conta do amor depositado na mesa da sala; uma ou outra menina olhava-nos com desconfiança. 

Eu vinha da escola, e de lá saí muito satisfeita. Acendi um cigarro ao deixar a sala e o apaguei a cem metros de casa, antes de deparar com o pássaro que cantava horrivelmente e com a vizinha infeliz falando sozinha. Parei na entrada do jardim e fiquei contemplando o passar de carros e motocicletas. 

Tomei emprestada uma caneta a Luciana, que também me passou alguns exercícios de uma aula perdida. Lu tinha pais maravilhosos. Acredito até que o pai dela não tinha o hábito de tocá-la. Percebi por seu rosto alinhado de insinuações de ingenuidade, e pelo ar de certa irreverência que Lu mantinha diante dele, que no entanto chegou a espiar-me algumas vezes, notoriamente quando eu deixava os lábios semi-cerrados e o olhar levemente caído sobre um decote mais ousado, que eu usava uma vez por semana. Não passou muito daí. Apenas uma mão que suavemente me caiu uma vez num ombro, esperando uma reação que não esbocei, e que então foi logo levantada. Definitivamente não tinha aspecto de quem tivesse tocado a filha muitas vezes. Talvez o irmão de Lu o tivesse feito com mais freqüência. Vicejava ares de malícia que certamente não vinham do pai, antes da mãe, sempre alvissareira. Lu, ao contrário de Cris, era esbelta e graciosa, mas não tinha namorado. Devia ser mesmo o irmão quem a tocasse. Cris, por sua vez, o pai, eu concluía sempre. 

O meu fora mais adiante. Rendeu-me duas vezes no quarto de hóspedes, onde eu gostava de ler, e numa delas, à luz do dia, com o meu corpo todo exposto ao sol e a ele, forjou comigo os frêmitos de desejo que havia muito eu adivinhara em seus olhos. Entreguei-me em silêncio, assustada – meus seios morenos, sempre ofegantes, punham nele uns olhos vivamente arregalados – mas reverente, meu atrevimento jamais chegou para ele. Não me disse nada. Surgiu silencioso, exibindo-me seu semblante austero, e quando me pôs uma mão na cintura, adivinhei que aquele primeiro carinho era apenas o início. Atravessou-me o busto com mãos calosas e precipitou-as de uma vez no meu ventre, momento em que sua língua já me umedecia o pescoço e os ombros nus. Levantei-me bruscamente e o repeli com acanho, o sutiã desajeitado mostrando um seio. Ele me endereçou um olhar severo. Pontilhou todas as suas intenções num mexer de olhos e escanchou-as baixando suas calças numa selvageria que nunca me surpreenderia nele, logo me exibiu seu membro rígido e avermelhado, que ele quis me pôr na boca e que eu rejeitei com asco. Foi transigente à minha repulsa. Tomou meus braços trêmulos e lançou-me na escrivaninha, abrindo-me as pernas e atirando-se dentro de mim feito um touro enfurecido. Eu só ouvia então o barulho dos móveis se mexendo, meus braços e pernas alarmando os objetos, o calor incendiando meus lábios, o rosnar embrutecido do meu pai, o meu gemido quieto, nenhuma palavra. 

Lu pelo irmão, Cris pelo pai. Cris até me disse, uma vez. Lu era mais discreta; não o irmão, que tinha o hábito de nos espiar tomando banho – lembro de lhe ter feito uma graça certa vez –, quando eu saía me sussurrava uma indecência, chegou a enviar-me um escrito, que eu rasguei sem ler. Lu me dizia que era assanhado, e eu achava que era muito mais que isso. Deixou-me em paz quando comecei a namorar; não à irmã, certamente, que era ainda mais formosa do que eu. Um dia em que cruzei a porta de entrada da casa de Lu, ele estava em ebulição, cheirando os dedos com avidez. Lu, ao me ver, corou. 

Ao terminar, ele me encarou sério e desconfiado, temendo talvez que eu contasse algo a mamãe. Não contei. Ele mesmo, alvoroçado, me pôs as roupas, amarrando meu sutiã de renda e ajudando-me com o vestido, e de saída ordenou com rispidez que eu tornasse a estudar. Assim o fiz. Escrevi duas linhas no diário, apanhei o livro de filosofia que alcançara o chão e de relance vi o rosto de meu irmão quebrado pelas persianas da janela, os olhos muito abertos, percebi sua sombra enorme projetando-se na parede. Talvez tivesse visto. Atrevido.

Ele tinha o hálito quente, cálido. Beliscava-me as nádegas com suavidade, eu me eriçava toda, buscando-o no banho de claridade que nos alentava sobre a mesa. Ele vinha robusto, vigoroso, mas era delicado. Abrimos mão do ventilador da sala para sentir o corpo arder e dourar, ele se inquietava ao ver meu corpo moreno de donzela brilhar de suor, os bicos dos meus seios se enrijecendo, meus cabelos colando na pele, logo despejados nas bordas da mesa, minha boca sedenta. Apresentou-me seu membro rígido e o quis meter-me na boca. Resisti. Ele insistiu. Repeli-o novamente, e como ele ainda insistisse, agarrei-lhe o membro com uma mão, enverguei-me e o lambi de leve. Levantei rapidamente e me debrucei na mesa, chamando-o para mim. Veio alucinado. E foi meu. E fui dele. Eu vinha da escola. Lu pelo irmão, Cris pelo pai. Então vi um pássaro a cantar horrivelmente e a vizinha a murmurar para si mesma os afazeres e as inquietações do dia. Eu acabara de encontrar o meu amante. Restei na entrada do jardim, a contemplar os carros e as motocicletas. Então o pássaro voou, sumindo no distante, a vizinha foi arrebatada de sua letargia, ouvi uma voz vinda de dentro, dirigi-me até à porta e entrei. Ele estava estendido na poltrona. Ao me ouvir entrar, abriu os olhos, empertigou-se na poltrona e ficou de pé. O pai de Lu era delicado e ingênuo; olhava-me algumas vezes e numa delas descansou-me no ombro sua mão macia, mas daí não passou. Eu encontrara o meu amante. Depois disso, só minhas unhas sarapintadas de um vermelho vivo. Vi meu irmão, um cão raivoso, e recuei dois passos. Minha mãe só à noite deu conta, ao fim de todos os noticiários, o chamado de mamãe, o silêncio de papai, um grito sem voz, um dedo fino apontado para mim, um cão raivoso, minhas mãos vermelhas, o resto não sei contar.

 

 

Manoel de Barros

 

Astrid Cabral

 

 

 

 

 

 

1.11.2008