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postal, expediente
e equipe
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Nelly Novaes Coelho
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São Paulo 11 de setembro de
1996
Home, tu tá demais da conta!!!
Entre a volumosíssima correspondência
de sempre, o teu opúsculo. Emerjo à superfície
do oceano de escrita em que estou mergulhada e leio Rio Macacos...
e releio Os
Poemas da Besta... Estás realmente de tirar o fôlego
a Hércules! Que bom!
Que enorme alegria descobrir neste
mundo tresloucado de punks, danceterias, epidemias de "bundites"
ou nudezas descaradas (ou totalmente alienadas?), de vulgaridades
e grosserias, encontrar alguém que viva com tal intensidade
a vida que outrora foi vivida por outros em dimensões
geniais.
Viva o POETA! Se você não
existisse, precisava ser inventado. Os poetas devem estar fazendo
festa na Eternidade por serem assim "curtidos"!!!
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As Carnaubeiras de Catuana
Meu caro e sempre lembrado poeta Soares
Feitosa
Há tempos que estou para te
esrever, comovida e agradecida pela lembrança amiga
de me mandar a homenagem ao Mestre Octavio Paz, com seu "Dio
insaciable que mi insomnio alimenta..." e tua caminhada pela
Rodovia Catuana e teu olhar que transfigurou metaforicamente
as carnaubeiras... e que interroga o "Senhor Engenheiro" que
nos oculta o mistério de Sua presença e criação...
Chorei como uma criança, quando ao abrir o Estadão
na manhã do dia 20 de abril, li na primeira página a
morte da Grande Presença de Octavio Paz... mas teu poema
tem razão:
— ¿Dom Octavio Paz?
— ¡Presente!
Criou para nós um universo
tão rico, amor, paixões, inteligência,
generosidade, interrogações vitais... que nos fez a todos seus
habitantes...Fisicamente, ele se foi, mas o universo que ele
criou para nós continua aí, cada vez mais aberto
a novas descobertas. Octavio Paz foi um dos meus primeiros
mestres-guias, a ajudar-me a encontrar meus próprios
caminhos no mundo da literatura, sondado em suas profundezas.
Ainda não mergulhei fundo no
teu poema final "Não
é aqui não". Emocionou-me; é
denso e vibrante de paixão, como tudo o que escreves.
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Poeta
Soares Feitosa
Recebi
o seu Roma,
— um soco no estômago e uma dor funda na alma! Que magia,
que poder tem a palavra da Poesia! Como pode em tão poucas
frases abarcar toda a maldade e selvageria!?
Nelly
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Weydson Barros Leal
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Os poemas de Soares Feitosa - este
novo poeta, que surge aos cinqüenta anos - são,
antes de poemas, uma explosão de amor. O amor de um
poeta que dormia, ou do poeta adormecido em si, e que acorda para
cantar a sua terra, a sua história pessoal (e ao mesmo tempo
universal), a sua e a nossa existência.
Os seus poemas, todos de nomes e estruturas
particulares, ora por sua simplicidade de aldeia, ora por sua
mesma universalidade, revelam ao leitor atento a cultura e
a erudição dos seminaristas de ontem, sabedores
do latim e do grego, leitores dos antigos almanaques e de múltiplas
traduções bíblicas. Pois este é o
caso do nosso poeta.
Também por isso, a leitura
dos poemas de Soares Feitosa requer cuidado. Como um Pound,
ele utiliza com intimidade os seus conhecimentos de latim e
grego; e como os ideogramas chineses nos Cantos do próprio
Pound, essas inserções, sempre buscando reforçar
o sentido primordial da palavra, pedem um leitor identificado
com sua busca.
Isto não quer dizer que esse
leitor precise de uma erudição ou de um conhecimento
que lhe permita a leitura de línguas mortas. Pois o
mesmo “miglior fabbro” que sabia fundamental o conhecimento de
outras línguas nessa nossa época mas não dominava
por completo outro idioma além do inglês, também
sabia que “nenhuma língua é completa” e que “um
mestre poderá expandir continuamente sua própria
língua, adequando-a para conter alguma carga até
então presente somente em alguma língua estrangeira”.
Conheci o poeta Soares Feitosa através
de um amigo comum que lhe indicara meu nome a fim de que conhecesse
sua poesia. Desde o nosso primeiro contato, procurei desvendar
o mistério que envolvia aquela voz explosiva que me
falava de seus poemas.
E seu processo criativo, ou da feitura
de seus poemas, sabe-se - como se sabe de uma explosão
no meio da noite - que são fruto de uma emoção
que, provavelmente represada durante décadas, rompera
os muros de seu inconsciente passando a fazer parte de sua
linguagem.
Isto me fez lembrar I. A. Richards
quando diz que “muito do que colabora na produção
de um poema é, naturalmente, inconsciente. “E muito
provavelmente, os processos inconscientes são mais importantes
do que os conscientes”. Este, no entanto, é um ponto
polêmico, e bons poetas-críticos, como Baudelaire e Auden,
têm posições opostas.
Mas I. A. Richards poderia nos ajudar
a esclarecer outros aspectos da poesia de Soares Feitosa, comuns
em toda boa poesia: a dificuldade de compreensão por
parte do leitor, ou mesmo a sua incomunicabilidade.
Em seus versos, a sintaxe, assim como
o encadeamento de algumas “passagens”, é proposital
e duramente rompida, o que transforma o poema em um labirinto
de luzes, em um terreno acidentado por declives e aclives de
compreensão onde, de uma passagem simples e clara, passa-se
a uma absoluta falta de direção. Esse desnorteamento,
entretanto, é sempre protegido pela estrofe seguinte
ou pelas notas que, abundantes, são como guias de sua
“commedia” pessoal.
Por isso, na Poesia, (como em outras
artes), o que muitas vezes é visto como dificuldade,
é o simples resultado da busca do poeta em “ajustar”
o seu poema de forma a este refletir com precisão a
sua “experiência”, harmonizando-se a ele e representando-a.
E mesmo que na obra artística a comunicação seja
um de seus principais objetivos, é preciso não
identificar, via de regra, “beleza” com “eficiência comunicativa”.
Outro aspecto que não deve
ser confundido nos poemas de Soares Feitosa é a sua
estrutura plástica. Pela utilização dos recursos de
computador, como o simples aumento do tamanho dos caracteres
ou utilização de letras e palavras do alfabeto
grego ou latino, esta poesia não pode ser chamada de
concreta. Não tem nada a ver!
Esses recursos, no caso, exclusivos
e característicos de nossa época (quando os computadores
fazem parte do mobiliário das casas, como uma cadeira
ou uma velha máquina de escrever), são os recursos
que marcaram o surgimento simultâneo da poesia visual.
E apesar das invenções
concretistas terem sido quase sempre marcadas por resultados
visuais, isto não dá ao Concretismo uma sobrevida
(equivocada) da nova poesia desenvolvida com a ajuda dos computadores.
A obra disponível de Soares
Feitosa está inicialmente dividida em sete volumes ou
poemas: PSI, a penúltima (que é o primeiro deles)
é um longo poema sobre a migração de raposas no Maciço
do Baturité, no interior do Ceará, cuja notícia
o poeta lera em um jornal. As raposas estariam invadindo os
municípios em torno das matas em busca de água,
e infectadas pela Raiva, atacavam as pessoas.
PSI, a penúltima, é
um belo poema, e seja pela carga dramática, seja pela
utilização de elementos regionais (nome de pessoas,
lugares, expressões locais) ou ainda pela aparição
de termos em grego e em latim no percurso do poema, o resultado
é uma pequena peça que poderia ser declamada
com os tempos e as impostações teatrais.
O segundo poema, Um Fractal - Ave,
Pax!, remete seus elementos ao poema anterior. De extensão
reduzida, é, no entanto, uma fábula; não
por sua estrutura sintática - sempre recortada, como se um
dos fantasmas de Guimarães Rosa lhe assaltasse a palavra -
mas pela utilização, como no poema anterior,
de animais que “agem” e “falam” como protagonistas.
Outro poema circunstancial, SIARAH,
narra com a linguagem “cifrada” ou codificada pelo poeta -
e por isso mesmo a necessidade absoluta das notas explicativas
- a saga dos cearenses na construção do canal
de 120 Km, recentemente concluído, que corta o sertão
do estado.
A notícia, que ouviu pelo rádio
juntamente com a informação de que a cidade de
Caruaru, no interior de Pernambuco, devido à seca só
recebia água a cada dez dias, foi a semente para o poema.
Os outros poemas Compadre-Primo, Padre-Mestre
e Castanholas de Toí são textos memorialísticos
e têm suas raízes em lembranças do poeta,
de sua infância e adolescência no Ceará, e até
em recordações de seu tempo de Seminário.
Pequenas variações quanto
ao ritmo podem ser observadas nesses três poemas, no
entanto, uma tendência dramática, como nos diálogos
entre os personagens recordados ou inventados que habitam o
poema, são uma marca constante até o último
verso.
Chegamos então ao último
volume: FORMAT CÊ DOIS PONTOS, que, como observou o poeta
e crítico César Leal, é obra de um portador da
verdadeira imaginação informática.
Como encerramento do conjunto, este
poema funciona como um final de rara força. O poeta
une neste texto todos os recursos utilizados anteriormente,
acrescentado-lhe, aí sim, termos em inglês que
reproduzem o próprio “raciocínio” dos computadores.
Palavras como Delete e Undelete (que
parecem gritar no papel, como em: Undelete:/ Não
O destruam, por favor,/ Recuperem-No!/ Meu
files, meus thesouros!
Ou ainda em Enter, Copy, Copied, Save!,
que aparecem quase sempre acompanhadas de exclamações
que lhes reforçam o sentido de velocidade informática
e do grito de sua poesia.
Ainda em FORMAT CÊ DOIS PONTOS
as reminiscências da infância no Ceará são
trazidas ao poema de forma curiosamente oportuna: a mistura
dos arreios de prata, do gato Mimoso, do Cachorro Foguete,
do gibão do capoeiro e outros elementos de um tempo passado ou
(paralelo) de um bad command or file name criam o contraste do
rústico com o contemporâneo, muito em voga, inclusive,
na arquitetura atual.
FORMAT tem a velocidade da
Informática, e é para ser lido, como faz o próprio
poeta, com rapidez mas com a impostação que se dá
sobre o palco ou o tablado.
Mas o poeta sabe que sua experiência,
como uma busca no passado, corre o risco de não ser
compreendida por todos:
“Vigiai, vigiai,
é longo
o caminho da Grécia
incerto o resultado
da viagem à Grécia !
Vigiai e orai!”
Este receio, entretanto, não
o impede em sua viagem, e a chegada ao final do poema - como
se o poeta chegasse a uma Grécia do futuro - é
o seu próprio conhecimento do Universo, e este, como a
imaginação humana, é o Infinito:
c CHRIST
the soft,
the omega!!!
:
UNIVERSE
the hard,
the infinite.
Gostaria de encerrar essas observações
sobre a poesia de Soares Feitosa lembrando um ensinamento e
uma constatação de Shelley, o maior poeta lírico
do romantismo inglês, autor da “Defesa da Poesia”.
Este ensinamento concerne ao problema
da incompreensão ou dos verdadeiros equívocos
de interpretação em que podem incorrer os leitores
comuns, ou analistas que não sejam verdadeiramente poetas,
quando tentam conceituar determinada obra.
Diz Shelley: “O júri - essencialmente
intemporal - que julga um poeta, deve ser composto por seus
pares; e estes devem ser eleitos pelo tempo e dentre os mais
doutos de muitas gerações, pois os poetas são
os espelhos das gigantescas sombras que a futuridade lança
sobre o presente; as palavras exprimem o que não compreendem;
as trombetas conduzem a batalha e não sentem o que inspiram;
a influência que não é movida, mas move”. Soares
Feitosa é certamente um poeta que deve ser
considerado pela sua criação.
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Lucila Cândida Sobrinha
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Psi,
a Penúltima
"Balançando Devagarinho"
e sentindo o cheiro da imburana, que cheira a pessoas e lugares
queridos, fui lendo seu livro, Psi, a Penúltima, sorvendo
seus cantares, meio terra-terra, meio rústicos, deixando
a imaginação divagar aos sabores de cada poema, cada
enfoque.
Sua linguagem, rica nas imagens e na correção do
idioma, é uma fonte de aprendizado literário. Lembra,
em certos aspectos, Guimarães Rosa, meu conterrâneo.
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Natércia Campos
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Fortaleza, 14/agosto/96
Louvado seja Nosso Jesus Cristo!
Meu compadre Soares Feitosa
Ando convivendo devagarinho com o "sol".
Vou leve para não me encandear... Sinto que estou pegando
estima, me afeiçoando como os domésticos xerimbabos.
"Mundo, mundo, vasto mundo se me chamasse... Esse mundo em "réquiem" é feito
de ressurreições: viventes, cheiros, costumes,
cânticos, mitos, "cacimba clara", fria e cheirosa. Já
sentiu o cheiro da água, das levadas? E seus sussurros...!
"Mundo velho sem porteira"... Vontade
de me apoiar na parte da porta-de-baixo de uma casa nordestina,
perdendo o olhar nos caminhos e sentir que longa será
a nossa caminhada por este mundo de de meus Deus...
Havia de ter tido início no mês
de agosto, de céu escampo e do mais belo luar. Do mês
só me arrepia — o mais aziago dia do ano — em dia de São
Bartolomeu. Tem o demo uma hora de seu, diziam assim em Beira,
Portugal. Já o Leandro Gomes de Barros Cantava:
A 24 de agosto,
data este receosa
por ser a em que o diabo pode
soltar um dedo de prosa
Mas este agosto para mim chegou pleno
de alvíssaras com o seu Réquiem em sol da tarde,
que me transporta:
"Era assim
já foi assim:
a missa do Padrinaço
com toda a pompa...
fervoroso na batina
sacerdos in aeternum...
Cum laude!
Retorno da liturgia, do latim, da Missa
Sollemnis, dos Cantos Gregorianos, aquela grandiosidade, a eloqüência,
o Magnificat, o Bispo Conde, José Tupinambá e seu
séqüito de glória...
"... a morte tangencida/ às vezes/
morrida!"
Antífona, sete, deu o número
perpetuado desde a Babilônia, está na Bíblia,
no Alcorão, misterioso, sagrado, sete-estrelo, sete as da lira,
sete as forças do banho-de-cheiro, feito de sete-ervas;
sete os céus que cobrem o mundo antiqüíssimo
que você acalanta e nos faz pródigos no retorno
à casa paterna.
Para sempre seja louvado.
Natércia
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Juarez Leitão
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A sina do eterno caminhador
Lá no Soares, lugarejo nos confins
do Nordeste, sertão brabo de Independência, Ceará,
onde todos os habitantes são primos entre si, um que passava para
a roça cruzou com outro que ia chegando e perguntou:
— Compadre, dizem que filho da Anísia
do tio Zé Fenelon, aquele que mora para as bandas do Pernambuco,
foi mordido por uma raposa doida, você sabe?
— Sei - respondeu o outro - e também
ouvi dizer que o rapaz ficou de tal modo afuleimado por causa do veneno
da bicha, que agora anda espalhando a maior confusão pelo mundo
todo, um grande labacé, que já 'tá saindo até
em jornal, com retrato e tudo...
O boato acendeu a confabulação
naqueles longínquos sertões e tem rendido noites de prosa
gorda por aquelas bandas, o pacato planeta dos soaristas, onde tudo
é, a um tempo, importante e banal, e, onde a ventura, a desdita
e próprio susto se medem pela régua fatal do destino. Neste
caso, porém, a notícia saiu acanhada e os versos que
aqueles cantadores do sertão estão glosando nas noites
de lua cheia, sob o mote de - “a raposa mordeu Chico José” -
está muito aquém do real. Não estão sabendo nem
um terço da missa.
Devo ir lá - posto avançado
que sou daquela pequeno e insignificante clã de matutos, na
cidade grande - para repor a verdade junto à parentela. O filho
da Tia‘Nísia não foi mordido por uma raposa, apenas. Foi muito
mais. Devem ter sido mil, no mínimo, todas com os três
cabelos do cão da ponta do rabo, as raposas que morderam o Chico
José.
Pelo mês do setembro do ano passado,
Seca do 93, recebi de Soares Feitosa, o Chico José - de quem
nunca se soube poeta - a notícia inesperada: estava fazendo
versos. Sempre muito esquisito e surpreendente, anormal pelo gênio
e capacidade de pensar, criar e fazer dar frutos aos mais desafiadores
projetos de vida, parecia-me que desta vez estava caçando onça
muito longe de seu território.
Mas ao primeiro contato com o seu novo empreendimento,
o poema SIARAH,
percebi que Chico José já vinha da estação
da caça, e não só matara a onça como já
dela se vestia, gibão de vaqueta da pintada, peito, pulo e destreza;
pisada macia e urro de trovão!
Chico José, fiscal do consumo aos vinte
anos de idade, também concursado brilhante do Banco do Brasil,
desertor entediado da Faculdade de Direito, foca petulante aos 16,
no jornal Gazeta de Notícias - de saudosa memória - "cassaco"
aos 14, seca do 58, - no que levou uma belíssima reprimenda do
Padre-Mestre - abridor de caminhos difíceis, herdeiro de algumas
tragédias pessoais, açougueiro na praça do Recife,
mil vezes vencedor... mas, poeta - quem haveria de suspeitar?
Pois é poeta e tem necessidade urgente
de falar! Sua poesia tem a exuberância das festas sertanejas.
É leite com espuma, paçoca de pilão, cozido de
carneiro gordo, capote (guiné) morto a tiro de lazarina, gosto,
tempero e sustança dos tempos de safra. Entretanto, é
também alimento de absorção abrangente e intemporal.
Não tem limites nem endereços curtos ou mesquinhos.
Argúi sobre o fato explícito
- a notícia de jornal, o calor do cotidiano, prevalências
subjetivas de alto resultado expressivo e humano. Da circunstância
paroquial, ribeirinha, atinge sem problema o patamar universal dos
temas clássicos do destino.
A dor, a injustiça, o infinito sofrimento
e a resistência heróica da raposa do maciço de
Baturité são a interminável e rude saga do pequeno
homem frente à ambição de sua espécie. A
história que esconde, não titubeia em apresentar com
os nomes e os papéis trocados o resultado de sua luta.
Notável não foi o massacre de
Roma sobre a pátria de Aníbal, mas a certeza do opressor
de que os cartagineses iriam sempre resistir!
A poesia de Chico José quer pôr
ordem na informação. Com o facão do açougue
e o velho chiqueirador dos Feitosas dos Inhamuns, esse descendente dos
audazes colonizadores do século XVIII não está
mais em guerra de sangue com os Montes, seus inimigos remotos. Tem
briga maior.
Quer mostrar aos seus contemporâneos
e aos que hão de vir que é preciso discutir, sempre,
os caminhos do homem. A luz que vem de antes, dos primeiros vagidos
da consciência, tem sempre que produzir auroras, não a
brutalidade da morte muda, do golpe sem razão: Format Cê Dois
Pontos.
E o verso dispara como um arcabuz, vindo das
brenhas, do áspero chão da memória, às
vezes num plano abstrato e imaterial, outras, e muito mais, terreno
e duro como a pedra e os dias. É um homem do ontem, do agora e do
futuro, revivendo com amor e macia mão ternural a história
dos filhos do Sol. Com esperança e brilho.
Nestas qualidades repousa essencialmente sua
grandeza emocional, quando abraça com fervor os velhos fantasmas
da infância, os bois, os jumentos, os gatos, os cachorros, a
mata passarinheira, o rude cinturão das estradas com suas fivelas-cancelas
rangedoras e toscas, o microcosmos do oeste cearense, que carrega por
outros mundos e guarda no santuário da alma com devoção
perene e vela acesa.
Conheci-o de perto - somos primos - na casa
do padre Leitão, personagem de um dos poemas deste livro (Padre-Mestre).
Assustou Nova Russas com sua inteligência largamente alardeada
pelo padre, e pelo comportamento inusitado de matuto presepeiro e misterioso.
Mandigüeiro do surreal, agente metafísico,
adquiriu nas fontes do conhecimento natural, o sertão, a arte
de curar bicheiras e capar bichos, pasmem, NO RASTRO! Em Nova Russas
dispôs-se a exercitar tais dotes de capador e, à falta
de bodes e carneiros, anunciou que caparia alguns meninos, pondo em
medo pânico todos os colegas. Alguns, sobre cujas passadas executou
o sinistro ritual, até hoje se queixam de problemas no cumprimento
das funções maritais e... culpam o Chico José!
Tomando contato com um livro de hipnotismo,
evoluiu rápido para outras danações, ponto sob
seu controle, entre outros, o amigo José Pires, que também
morava na casa do Padre-Mestre.
Com gestos cabalísticos e severo comando,
punha o Zépires a gargalhar à toa ou dançar freneticamente,
num espetáculo que além de divertir muito o tornava temido
e admirado no colégio: muitos tinham medo de ser a próxima
vítima do feiticeiro adolescente.
Pois Chico José reedita agora, na poesia,
com grande estilo, aqueles dons do feiticeiro adolescente: ele enfeitiça
as palavras, tece e coze sentimentos, e, qualidade maior, sabe retirar
do vazio como é aquela notícia de jornal sobre as raposas
doentes e famintas - uma prosaica e inocente nota de saúde pública
- e assentou sobre tão insignificante material, uma verdadeira
catedral, um templo grego, gótico e moderno a um só tempo!
Leitor obsessivo de Kafka e de Shakespeare,
é caboclo perfeito, com voz e passo, comedor de canjica e de
rapadura, semeador de espantos, capaz de caminhar léguas sozinho
pelas estradas ermas do interior com a desenvoltura de um romeiro.
Quantas vezes ele partiu da fazenda Catuana, Santa Quitéria, CE,
à margem do rio Macacos, (onde matou a cascavel gigante, do poema da Raposa),
onde sua mãe construía um açude, para fazer as provas
mensais no Ginásio de Nova Russas, percorrendo de noite, sozinho,
quase 50 quilômetros. Saía à noitinha, livros no
matulão - lençol enrolado em diagonal e carregado também
em diagonal do ombro para o quadril oposto - e chegava ao clarear do
dia, a tempo de ajudar a missa do tio Leitão.
Chico José está outra vez na
estrada. Sabe que vai caminhar - longa é a viagem à Grécia
- não escolhe lugares, mas os nomeia e canta os sentimentos
com a força de um gigante. Atrás vem deixando uma renda
tecida de grandes realizações telúricas: mergulhos
nos riachos, filhos, cálculos fiscais, manhãs de perplexidade,
aboios e canapuns.
Pela frente tem o horizonte perpétuo
dos filhos de Orfeu, a delirante aventura da Poesia, Deusa e Vampira,
cujo abraço é de ventura extrema e de eterna maldição.
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